A degradante farsa de Tancos

Os recentes desenvolvimentos do caso do assalto, em Junho de 2017, ao paiol da Base Militar de Tancos, com a detenção de 4 altos responsáveis da PJM – Polícia Judiciária Militar, a começar pelo seu Director, Coronel Luís Augusto Vieira, e de 3 elementos da GNR de Loulé – desde logo o Comandante do Posto – permitem já pôr a claro a enorme gravidade não apenas de tudo quanto rodeou o referido assalto, como também de tudo quanto se lhe seguiu.

E comprovam desde logo que o primeiro e principal responsável político quer pelo assalto, quer pelo respectivo encobrimento, ou seja, o Ministro da Defesa Azeredo Lopes (o tal que, em Setembro de 2017, afirmou explicitamente que “no limite pode não ter havido furto nenhum, porque como não existe prova visual, como não temos prova testemunhal, como não temos confissão, por absurdo, podemos admitir que o material já não existisse”) e o primeiro e principal responsável militar, o CEME – Chefe do Estado-Maior do Exército, General Rovisco Duarte, há muito que deveriam ter sido demitidos. E, todavia, não o foram, nem na altura, nem agora, e estão é a procurar passar, tal como o Primeiro-Ministro António Costa, por entre os pingos da chuva.

Na verdade, e desde logo pelos elementos que têm vindo a público, vê-se que o dito assalto só pôde ocorrer por a segurança no quartel de Tancos ser uma autêntica anedota: não havia nem torres nem câmaras de vigilância, as rondas a pé e de viatura que deveriam ser realizadas, não o eram, e o estado de segurança definido para aquela instalação militar era mesmo o mais baixo de todos (“Alfa+”). E por ser assim tão fácil quanto não detectável de imediato fazer buracos na rede exterior, arrombar portas dos paióis e até fazer entrar veículos para o pé destes (o que, dado o elevado peso de diverso do material roubado, seguramente aconteceu) é que o assalto já era mais do que previsível.

Mas todas as circunstâncias entretanto conhecidas também demonstram o que é óbvio para a mais leiga das pessoas, excepto para o Ministro da Defesa, para o Chefe do Estado-Maior do Exército (que, no final de Julho de 2017, negou ao Parlamento a lista do material roubado) e para os investigadores da Polícia Judiciária Militar. Ou seja, que tal assalto – logo inacreditavelmente desvalorizado no perigo das suas consequências pelo próprio CEME – teve de contar com a cumplicidade activa de alguém de dentro da instituição militar, fornecendo as informações necessárias quer quanto à exacta localização dos materiais, quer quanto às condições em que se encontravam.

De seguida, a permanente obstaculização feita aos investigadores e magistrados civis – inclusive com o impedimento do acesso dos inspectores da PJ ao local do roubo e depois ao local do pretenso “achamento”, bem como ao próprio material e respectivos vestígios de prova que foram, assim, propositadamente contaminados e inutilizados – era, de igual modo, já mais que suspeita.

Os procedimentos e inquéritos internos das Forças Armadas e da respectiva Inspecção-Geral revelaram-se outra perfeita anedota, com a aplicação de (somente) umas medidas de suspensão – entretanto posteriormente levantadas – aos militares responsáveis pelas rondas, e nada mais!

Durante todo este tempo, o Exército e o Ministro da Defesa tentavam convencer a opinião pública de que, para além de “não se ter bem a certeza” de que houve furto, o material roubado (que incluía 102 cargas de corte explosivas, 264 velas de explosivo plástico PE-4A, 30 lâminas explosivas, 44 LAW-bazucas anti-carro, 18 granadas de gás lacrimogénio, 120 granadas de mão ofensivas e 30 granadas de mão de instrução) não representaria nenhum risco, designadamente se chegasse às mãos de pessoas ligadas à criminalidade altamente violenta e/ou ao terrorismo.

A culminar toda esta farsa, em 18 de Outubro de 2017, a Polícia Judiciária Militar veio, com toda a desfaçatez, “informar” publicamente que “com a colaboração do núcleo de investigação criminal da Guarda Nacional Republicada de Loulé” (!?) e a partir de um alegado telefonema anónimo, teria recuperado, a cerca de 21 Km de Tancos, na zona da Chamusca, não apenas todo o material de guerra furtado de Tancos (com a única excepção das 1450 munições de 9 mm) como também… uma caixa de petardos que não constava da lista oficial de material desaparecido!? Isto é, teriam encontrado mais do que aquilo que supostamente tinha desaparecido.

E, não contentes com tudo isto, os investigadores da PJM teriam, antes da chegada dos inspectores da PJ a quem a Procuradora-Geral da República entregou a investigação, já tratado de pegar no material e de levá-lo para as instalações militares de Santa Margarida, com nova e “oportuna” contaminação e inutilização de meios de prova.

Com semelhante “história” – que, se não fosse a gravidade do caso, seria de rir até às lágrimas! – ficaram, uma vez mais, muito satisfeitos o Ministro da Defesa, o Primeiro-Ministro e as estruturas dirigentes do Exército que, recorde-se, tudo fizeram então para dar por totalmente encerrado o assunto.

O próprio António Costa apressou-se em 20/10/2017 a “felicitar o trabalho desenvolvido pela PJM e pela GNR na recuperação do material” e, ao longo do Verão de 2018, foi sempre afirmando que “o que competia ao Governo fazer, está feito” e que “Tancos é um assunto arrumado”, mostrando-se muito satisfeito com o que se fora passando.

Não ficou satisfeita a generalidade dos cidadãos que não gostam que lhes deitem areia para os olhos e lhes cuspam na sua inteligência. E, felizmente, também não ficaram os inspectores da PJ, tendo sido da continuação dessa investigação que se ficou agora a saber que a PJM, afinal, sabia desde o início quem era(m) o(s) assaltante(s), que manteve contacto com ele(s) para organizar e montar a palhaçada da recuperação do material roubado, apresentando-a como um “grande êxito investigatório” e, ao mesmo tempo, encobrindo o(s) mesmo(s) assaltante(s). E que era por isso que sempre quis – contra a lei e contra as decisões das autoridades judiciárias – guardar a pseudo-investigação dentro dos seus próprios muros e desvalorizar e fazer esquecer o mais possível a importância e real dimensão do caso.

Apurou-se agora que foi a PJM, ao seu mais alto nível (Director), que engendrou a encenação. Assim, colocou, num determinado dia e por pretenso “acaso”, guardas da GNR do posto de Loulé e inspectores da PJM do Porto no Parque das Nações, supostamente a trabalhar noutra investigação.

De seguida, encomendou e fez realizar nessa mesma data uma pretensa chamada anónima para o piquete da PJM a alertar para o singular aparecimento do material de guerra na zona da Chamusca. O dito piquete, por seu turno, enviou os elementos que “por acaso” estavam mais à mão e que eram precisamente os referidos elementos da PJM do Porto e da GNR de Loulé, os quais logo trataram de “encontrar” o mesmo material e de o levar a correr dali para Santa Margarida, antes que o Laboratório de Polícia Científica da PJ pudesse efectuar qualquer perícia que permitisse demonstrar toda esta inacreditável marosca.

E sabe-se também que a intervenção de elementos da GNR, não da zona mas de um posto a mais de 300 Km de distância – sem que, na altura, ninguém, quer o Chefe do Estado Mario do Exército, quer o Ministro da Defesa, quer o Primeiro Ministro, achassem nada de estranho nisso… – decorrerá  do facto de um dos assaltantes de Tancos ser conhecido ou amigo de um dos elementos daquele posto, cujo comandante terá então tratado, juntamente com os seus amigos da PJM, de participar ele e fazer participar os outros em toda esta mascarada.

Do ponto de vista jurídico, estamos, assim, perante crimes de uma enorme gravidade pois trata-se, primeiro, da permissão da consumação de um crime, e depois de associação para o encobrimento do respectivo autor, para a falsificação de documentos, para a sabotagem da investigação criminal e para a consequente prevaricação e denegação de Justiça, num nefando tráfico de influências facilitador e encobridor de tráfico de armas.

Mas, porventura mais importante ainda, do ponto de vista social e político, estamos perante uma situação de uma ainda maior gravidade e que é a da utilização e do abuso de poderes de cargos e instituições – e de polícias, meios e forças militares que, em boa verdade e em pleno século XXI, já não têm nenhuma razão de existir – para procurar alcançar vantagens, fossem elas patrimoniais ou não patrimoniais, designadamente a do pretenso prestígio (e consequentes louvores e até condecorações) baseado na falsidade e aldrabice.

E, ainda pior do que isso, de responsáveis de cargos públicos que se comportam de forma perfeitamente indigna e democraticamente inaceitável. Na verdade, em vez do velho princípio de que quando se é chefe de um qualquer conjunto de soldados ou elementos de base, o mérito das vitórias é de todos, mas as responsabilidades das derrotas são de quem lidera, os dirigentes envolvidos neste caso (do Chefe do Estado-Maior do Exército ao Primeiro Ministro, passando pelo Ministro da Defesa) adoptam a postura de, por todas as formas, tratarem de cuspir para baixo tais responsabilidades e de manter o respectivo “tacho” a todo o custo.

Por isso, num país a sério, para além dos agora detidos, o Chefe do Estado-Maior do Exército, o Ministro da Defesa e o próprio Primeiro-Ministro, ou já se tinham demitido ou já tinham sido demitidos, por ser absolutamente insustentável a sua posição!

Por outro lado, é muito relevante que, dos meios castrenses e ao pior estilo corporativo, se comecem já a ouvir vozes no sentido de que seria preciso salvaguardar a PJM e outras instituições militares, pois extingui-las “seria um erro”.

É certo que, para mais se se deixarem escamotear as responsabilidades políticas e dos políticos, questões como esta não se resolvem pela simples e burocrática extinção de um dado serviço, mas não é menos verdade que num Estado que se diz de direito democrático, não são aceitáveis nem forças nem polícias especiais, proibindo, aliás, a Constituição, desde a sua revisão de 1997[1], a existência de Tribunais militares fora da vigência do estado de guerra.

Mesmo relativamente aos chamados crimes estritamente militares em tempo de paz, a competência para o respectivo julgamento é, e correctamente, sempre dos Tribunais Judiciais [2] e poderá até haver uma assessoria militar [3] prestada por oficiais das Forças Armadas através, essencialmente ,de pareceres prévios, não vinculativos, junto do Ministério Público.

Em suma, a permissão de que haja feudos ou “quintais” de investigação, seja ela disciplinar ou criminal, sobre factos ocorridos na instituição militar e que fiquem a cargo dos próprios militares, não só não tem justificação política ou constitucional como também já se viu noutros casos (por exemplo, no das agressões no Colégio Militar) que tende a conduzir ao fácil e “conveniente” abafamento das averiguações.

O que tudo significa que, como toda esta lástima do caso de Tancos bem demonstra, a possibilidade da existência e funcionamento de mecanismos e investigações corporativas como os da PJM, deve ser definitivamente extinta, e que políticos e chefes militares, sejam eles quais forem, que não sabem assumir as suas responsabilidades, devem ser de imediato corridos dos respectivos cargos já que não tiveram a hombridade de apresentar a sua própria demissão.

António Garcia Pereira

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[1]Nos termos dos seus artigos 209º, nº 4, e 213º.

[2]Nos quais podem participar juízes militares, nos termos do artº 211º, nº 3, da Lei Fundamental.

[3]Artº 219º, nº 3 da Constituição.

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