A dupla tragédia das vítimas de doenças oncológicas profissionais

A situação dos cidadãos atingidos por doenças oncológicas é, já de si, bastante dramática, não apenas pelo elevado grau de morbilidade das mesmas, mas também pela dor e sofrimento que lhes estão muitas vezes associados e pelo elevado grau de incapacitação, quer física, quer também psicológica, que as caracterizam.

As mortes anuais em Portugal por doenças oncológicas (cerca de 28.000) representam cerca de 25% do número total de óbitos (113.000 em 2018), constituindo a segunda causa de morte no nosso país, ficando apenas atrás das doenças circulatórias, as quais representam 29,3% do total.

A situação dos doentes oncológicos é ainda mais dificultada pela não concretização prática dos direitos que formalmente a lei lhes concede, muito em particular quando se trata da celebração de contratos de seguros de vida (relacionados, por exemplo, com empréstimos para compra de habitação), das baixas por doença e da bonificação das pensões de reforma por invalidez (com as tristemente célebres Juntas Médicas, quer da Segurança Social, quer da Caixa Geral de Aposentações, a mandarem trabalhar cidadãos manifestamente incapacitados e até em fase terminal ou a negarem o nexo de causalidade entre a doença e a incapacidade) e do efectivo asseguramento dos cuidados de que carecem (seja pela insuficiência dos sistemas e unidades de cuidados paliativos, seja pela desprotecção social dos respectivos cuidadores).

Mas mais grave ainda é a situação dos cidadãos trabalhadores afectados por uma doença profissional e, em particular, por uma doença oncológica.

Na verdade, a subnotificação e as dificuldades suscitadas no nosso País quanto ao reconhecimento de uma doença profissional de alguém que já está debilitado por natureza são absolutamente escandalosas.

Basta atentar em que quase ninguém fala das doenças profissionais, as quais são mesmo o “parente pobre” da Medicina do Trabalho.

Segundo as estatísticas da própria Organização Internacional do Trabalho (OIT), as doenças profissionais fazem 7 vezes mais vítimas que os acidentes de trabalho e, todavia, os números oficiais daqueles são, entre nós, absolutamente irrisórios.

Assim, se o número oficial total dos acidentes de trabalho é um pouco superior a 200.000 (208.451 em 2015 e 207.567 em 2006, por exemplo) e o número de vítimas mortais de acidentes do trabalho ascendeu a 149 em 2018, o número total de doenças profissionais certificadas foi de apenas 3.411 em 2014 e de 3.659 em 2015. E não se têm dados seguros nem estatísticas fiáveis que permitam saber onde estão verdadeiramente as doenças profissionais e desenvolver políticas públicas coerentes de ataque a este fenómeno.

Não obstante a criação em 2017, pela Lei nº 53/2017, do chamado Registo Oncológico Nacional e, antes disso, a aprovação, pela Resolução do Conselho de Ministros nº 77/2015, da pomposamente denominada “Estratégia Nacional para a Segurança e Saúde no Trabalho 2015-2020” (que reconhece, no seu ponto 2.3, que “de um modo geral existe uma tendência para a subnotificação do número de casos, em especial das doenças com um longo período de latência” e que assume, no ponto 2, como objectivo estratégico o “diminuir os factores de risco associados às doenças profissionais”), a situação dessas doenças profissionais, e em particular das doenças profissionais oncológicas, é dramaticamente grave e dramaticamente escondida.

Desde logo, não há a devida articulação entre a Saúde Pública e a Saúde Ocupacional, verificando-se uma enorme subnotificação das doenças profissionais, que aparecem assim, na esmagadora maioria dos casos, disfarçadas de “doenças naturais” e cobertas pelo regime de baixas da Segurança Social.

Segundo um relatório do próprio Instituto Nacional da Saúde Ricardo Jorge, 97% dos mesoteliomas malignos provocados pela exposição ao amianto nãoforam notificados como doença profissional. E se doenças como tendinites, surdez (hipoacusia), lesões músculo-esqueléticas, silicose e certo tipo de cancros ainda constam da Lista das Doenças Profissionais, já uma série de outras doenças ligadas ao uso das novas tecnologias e à exposição a novos materiais dela não constam.

Os cancros profissionais, por seu turno, são aqueles que se manifestam como consequência do exercício regular de certas actividades em resultado da exposição a agentes – no campo laboral – de natureza física ou química, ou até virulenta.

Historicamente, os primeiros casos de doenças oncológicas profissionais (ou de “cancro ligado ao trabalho”) conhecidos e identificados como tal foram o cancro do escroto dos limpa-chaminés (num estudo de P. Pott entre 1714 e 1788), o cancro do pulmão na mina de urânio St. Lawrence por exposição dos trabalhadores a emissões de radão (1879), a leucemia ligada às radiações ionizantes (1902) e o cancro ósseo por exposição ao rádio 226 na indústria dos relógios, com contaminação digestiva pelo composto de zinco utilizado na pintura dos respectivos ponteiros (1929).

Por outro lado, estudos feitos em Inglaterra apontam para que o cancro ligado ao trabalho representará cerca de 8% (mais exactamente entre 5% e 10%) de todos os cancros e 4% (entre 2% e 8%) de todas as mortes por cancro, variando essa percentagem com o tipo de doença e o sexo dos trabalhadores. Por exemplo, verifica-se uma percentagem muito elevada nos cancros do pulmão nos homens (cerca de 17%) e mais baixa nos cancros de pele e de bexiga nas mulheres (5%).

Significa isto que, dos cerca de 60.000 novos casos de cancro em Portugal, 4.800 deverão ser verdadeiramente cancros profissionais e que dos 28.000 óbitos anuais, mais de 1.100 deverão ser mortes por doença oncológica. E, todavia, o número de tal tipo de doença profissional é absolutamente irrisório e o número de óbitos registados como tal praticamente inexistente…

Enquanto que noutros países como a Itália, a Alemanha e o Reino Unido, do número de pensionistas por doenças profissionais é muito relevante o dos afectados por algum tipo de doença oncológica, esse dado é inexistente em Portugal. Onde as doenças profissionais mais frequentes são as lesões músculo-esqueléticas, a surdez, as doenças respiratórias e as doenças de pele.

Nos países industrializados, as estatísticas conhecidas indicam (estudo de Doll and Peto, 1981) que 15% de todos os cancros do pulmão estão relacionados com a exposição ao crómio, ao cádmio e ao níquel. E ainda que 25% dos cancros da bexiga e 20% dos cancros do pulmão são de origem profissional. 

Estudos mais recentes, quer no Reino Unido (onde morrem anualmente cerca de 4.000 pessoas por cancro devido ao amianto, número esse que constitui o dobro das vítimas dos acidentes rodoviários), quer nos países nórdicos, apontam para que o cancro do pulmão tenha uma componente ocupacional muito elevada (entre 18% e 21% nos homens).

A International Agency for Research on Cancer (IARC) identificou 417 agentes causais “carcinogénicos” ou “possivelmente carcinogénicos” para quem a eles seja exposto. E um estudo de 2015 estimou que 70% dos mesoteliomas e 5% dos cancros da laringe (uns e outros causados pelos asbestos), 20% dos cancros sino-nasais (causados por pó de serradura, por exemplo) podiam ser evitados se a respectiva exposição ocupacional tivesse sido eliminada!

Entre nós não existe qualquer política de prevenção das doenças profissionais. Os dados estatísticos são irrisórios e não fiáveis. A gigantesca subnotificação é um dado indiscutível. Existe a obrigatoriedade de seguro contra acidentes, mas não contra doenças profissionais. A Lista de Doenças Profissionais está completamente ultrapassada. A dilação na manifestação da doença faz com que muitas vezes, quando essa manifestação ocorre, a pessoa já está reformada e, nessa altura, é quase impossível estabelecer uma relação de causalidade adequada entre a profissão que exerceu e o meio laboral em que esteve inserida, por um lado, e o estabelecimento da doença por outro.

No nosso País, o amianto foi largamente utilizado na construção civil, em particular nos anos 70 e 80 do século passado, expondo gravemente ao agente carcinogénico não só os trabalhadores que produziam os materiais da construção, mas todos os que trabalhavam nos edifícios onde eles haviam sido instalados. E há poucos anos a prestigiada revista Lancet publicou um estudo segundo o qual todos os anos se registam no mundo 194.000 óbitos por cancros devidos ao amianto.

Não obstante tudo isto, não existe entre nós qualquer estudo epidemiológico deste tipo de doenças, como não existe uma séria e rigorosa análise quer da exposição laboral, quer da exposição ambiental ao amianto.

A situação dos trabalhadores expostos nos seus locais de trabalho a agentes carcinogénicos é assim gravíssima e a sua desprotecção, enquanto afectados por uma doença profissional, é total.

Ora, não só o número de trabalhadores alvo de inspecções na área da Saúde Ocupacional e Segurança no Trabalho tem vindo a descer sucessivamente (tendo caído 67% em apenas 3 anos), como o número de inspectores é cada vez menor (como, aliás, consta do alerta do Conselho da Europa ao Governo português feito em 2018).

O próprio Comité Europeu dos Direitos Sociais do mesmo Conselho da Europa, que avalia a aplicação em cada país dos normativos da Carta Social Europeia, manifestou explicitamente a sua estranheza pelo muito baixo número de casos oficialmente registados em Portugal como doença profissional.

Ora, é num panorama dramático e dramaticamente perigoso como este que o Ministro do Ambiente Pedro Matos Fernandes, ao ser recentemente questionado no Parlamento sobre a questão das medidas que o Governo estava a tomar em relação às condições de trabalho e à (des)protecção dos técnicos que têm estado a remover o amianto de vários edifícios, designadamente públicos, respondeu que “por não ser considerado um ‘resíduo perigoso’ não tinha notícia de qualquer preocupação relativa às regras deste trabalho nem ao destino final do material”!?

É, pois, caso para os trabalhadores sujeitos a ambientes de trabalho perigosos como esses concluírem que, com governantes “amigos” e irresponsáveis como estes, não precisam decerto de inimigos!…

António Garcia Pereira

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