A guarda alternada e a (des)igualdade parental: história de uma falácia convertida em lei

Na semana passada, o Parlamento português praticou mais duas indecorosas façanhas contra inúmeras pessoas das mais vulneráveis da nossa sociedade.

Primeiro, na quinta-feira 12/12 e com o decisivo voto contra do PS, chumbou sucessivamente quer os projectos de lei (apresentados pelo BE e pelo PAN) que previam o reconhecimento do estatuto de vítima às crianças que testemunhem ou vivam em contexto de violência doméstica, quer o projecto de lei do Verdes que criava um subsídio de apoio às vítimas de violência obrigadas a abandonar o seu lar, quer ainda o projecto de lei do BE que tornava obrigatória (já que actualmente, sendo facultativa, raras vezes é ordenada) a recolha de declarações para memória futura.

Depois, na sexta-feira 13/12, o mesmo Parlamento aprovou, e por unanimidade, com a consequente baixa, para apreciação e votação na especialidade, à Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, os projectos de lei apresentados pelo PS, pelo PSD, pelo CDS, pelo BE e pelo PAN(1) prevendo o estabelecimento, como regime-regra do Código Civil, da residência alternada dos filhos menores em caso de divórcio, separação judicial de pessoas e bens, declaração de nulidade ou anulação do casamento.

Esta unanimidade foi alcançada após uma enorme campanha de influências levada a cabo pelos adeptos e apoiantes das teorias da chamada “igualdade parental” e habilidosa e convenientemente apresentada como uma expressão dos princípios – com que, em abstracto, todos concordarão – da igualdade entre cônjuges ou ex-cônjuges e do mais amplo envolvimento de ambos os progenitores na formação e na educação dos seus filhos.

A verdade, porém, é que essa fundamentação, ainda que atractiva à primeira vista, é profundamente falaciosa e, pior do que isso, a solução legal que sustenta é não só contraditória com os referidos princípios, mas até especialmente perigosa.

Assim, e antes de mais, convirá sublinhar que a presunção legal ou o estabelecimento de um regime-regra só afastável por prova em contrário constituem, normalmente, técnicas legislativas adoptadas em nome do princípio constitucional da igualdade material, visando, precisamente em nome desse mesmo princípio, conferir um pouco mais de protecção precisamente à parte mais fraca e reequilibrando assim os pratos da balança.

De que forma? Deixando de fazer recair sobre essa mesma parte mais fraca – normalmente a vítima da situação de conflito cujos direitos ou legítimos interesses estão a ser lesados – todo o peso do ónus da prova, ou seja, toda a obrigação de fazer a demonstração, e uma demonstração inequívoca, de que não há razão jurídica válida para essa negação ou inutilização dos seus direitos.

Exactamente por virtude da desigualdade substancial das partes, a aplicação das regras normais da prova faria com que fosse a vítima, por exemplo, de um despedimento sem justa causa ou de uma discriminação (salarial ou outra) em função do género, da raça ou da idade, a ter de demonstrar que não existia razão jurídica válida para o despedimento ou para a diferenciação de tratamento. E se todos sabemos que a prova de um facto negativo já é muito difícil, para não dizer literalmente impossível (constituindo aquilo a que, precisamente por essa razão, os juristas chamam de “prova diabólica”…), essa impossibilidade é ainda mais evidente precisamente para a parte que é mais fraca e que de menos recursos (financeiros, logísticos, etc.) dispõe.

Ora, se assim é, estabelecer um regime-regra ou uma presunção (neste caso, o da guarda partilhada ou o da residência alternada) em prejuízo ou detrimento da parte mais fraca e a favor daquela que já é a parte mais forte só significa uma coisa: agravar ainda mais a desigualdade e liquidar, na prática, o tão citado e elogiado princípio da igualdade.

Em Portugal, hoje em dia, verifica-se uma queixa por violência doméstica de 20 em 20 minutos, o que significa mais de 26 mil queixas por ano(2). Mesmo que se admitisse, por mera hipótese de raciocínio, um dos grandes argumentos dos defensores das teorias da guarda alternada e da igualdade, ou seja, que uma parte de tais queixas possa ser infundada (o que é, aliás, completamente diferente de os processos-crime serem arquivados como são, numa percentagem da ordem dos 65%(3), já que muitos deles o são precisamente pela dificuldade da prova), estaremos sempre a falar, seguramente, em muitos e muitos milhares de queixas fundadas em situações reais de agressões graves e até antecessoras de homicídios tentados ou consumados.

Por outro lado, é sabido que apenas uma parte (bem menos de metade) das vítimas, e por várias razões (os filhos, a incapacidade financeira, o medo de represálias), é que chega a apresentar formalmente queixa, pelo que não é difícil estimar que o número real de vítimas de violência doméstica atingirá as 20.000 ou até bem mais, e que a grande parte destes casos estarão ligados a, ou se verificarão simultaneamente com, problemas e conflitos de regulação das responsabilidades parentais.

Por tudo isto, exactamente ao invés do que aqueles que desvalorizam o fenómeno da violência e que tendem a desculpabilizar os agressores sempre sustentam, o número de situações em que os progenitores não se entendem, em particular por existir uma situação de conflito grave e mesmo de violência doméstica, é assim significativamente elevado. E esta é outra razão por que, se já era grave instituir um sistema legal que prejudicasse uma só vítima que fosse, muito mais grave é se ele prejudica, ou é susceptível de prejudicar, dezenas de milhares de vítimas.

Acresce que os processos de regulação do poder parental são processos chamados de  jurisdição voluntária, ou seja, processos em que os juízes não apenas se não regulam por critérios de estrita legalidade, mas essencialmente de justiça e de equidade, como também em que os mesmos juízes têm o dever – embora muitas vezes incumprido… – de ordenar, por sua iniciativa e sem ser necessário que qualquer das partes lho sugira ou requeira, todas as diligências que se revelem adequadas a apurar a verdade material dos factos e a fundar uma solução mais justa e acauteladora dos direitos da criança. 

Ora, se já hoje, mesmo com o regime actualmente vigente (fundado na lógica da solução que, caso a caso, se revelar mais adequada) esse dever é largamente incumprido, com os juízes a decretarem medidas baseadas, quando muito, em relatórios elaborados por técnicos sem qualquer controle da sua veracidade, fácil é de imaginar o que ainda mais facilmente sucederá se passar a existir um regime-regra (o da guarda alternada) que só é afastado se uma das partes conseguir fazer prova de que ele não é adequado (ou seja, se conseguir fazer literalmente o impossível, a tal prova diabólica). 

A isto acrescente-se outra circunstância igualmente muito relevante, e que é a da pressão que hoje é exercida sobre os juízes para que despachem muito e depressa e do “modelo” de “juiz muito bom” que o Conselho Superior da Magistratura (CSM) está a construir ao definir como critério largamente dominante, para não dizer praticamente exclusivo, da avaliação dos juízes a sua capacidade de despachar a todo o transe e a toda a velocidade os processos que lhes estão atribuídos.

Todos aqueles que lidam com a Justiça, e em particular os que nela representam os cidadãos e cidadãs, ou seja, os advogados “de barra”, sabem bem que se, para se afastar de um regime-regra ou ilidir uma presunção legal, o juiz tem de apurar factos que o justifiquem e que fundamentem devidamente essa sua decisão desviada do tal regime-regra, as consequências são a da multiplicação das (muito mais rápidas, é claro) decisões de aplicação “de chapa” do dito regime-regra e a da enorme dificuldade em conseguir que o Tribunal defira, mais ainda que promova por sua iniciativa, a realização de diligências de prova que, sendo úteis, senão mesmo indispensáveis, à descoberta da verdade, todavia afectam e atrasam a tão preciosa agenda do juiz.

Mas uma medida legal que prejudique a parte com maiores dificuldades em provar o contrário da presunção ou do regime-regra tem ainda um outro efeito perverso: se já hoje, sob a ameaça de que se não permitirem o contacto com o cônjuge agressor poderão ser privadas da guarda ou até do simples contacto com os filhos, muitas vítimas ou não apresentam queixa-crime ou cedem às teorias dos juízes ditos “reconstrutivos” (no sentido de que, por exemplo, um marido que bata violentamente na mulher à frente dos próprios filhos, ou até ameace ou inclusive agrida directamente estes, “pode ser um bom pai” e, por isso, até mesmo depois de definitivamente condenado pelo crime de violência doméstica agravada, a vítima tem de propiciar o contacto com esse seu agressor), imagine-se então o que não sucederá em tal tipo de casos se o “ponto de partida” das decisões judiciais passar a ser o do estabelecimento da referida guarda partilhada.

É preciso assim dizer com toda a clareza que esse estabelecimento da guarda partilhada (ou residência alternada) como regime-regra, que só pode ser afastado pelo cônjuge que com ele não concorde se fizer uma prova inequívoca de factos que provam a sua inadequação e ainda se o juiz fundamentar devidamente o afastamento desse mesmo regime, tem assim apenas um grande e terrível “mérito”: o de facilitar a vida aos agressores, mesmo aos mais violentos, aos homicidas e aos pedófilos (que os há!).

Convenientemente embrulhada numa habilidosa argumentação jurídico-constitucional acerca da igualdade, a verdade é que esta “obra-prima” dos defensores da igualdade parental(4) representa, afinal, o inaceitável aproveitamento e agravamento da situação de desigualdade substancial da vítima e parte mais fraca. Ou seja, representa uma grosseira e absolutamente intolerável violação do princípio da igualdade e uma insidiosa estratégia defensora dos poderosos e dos agressores, sempre assente, mesmo que não expressamente, na teoria da mulher como ser inferior – senão mesmo como mero receptáculo de sémen, como defendia Gardner no seu livro de 1992, True and False Accusations of Child Sex Abuse, e também falso, malicioso e manipulador.

Porém, o certo é que o fortíssimo lobby da “igualdade parental” está em toda a parte e em particular em sectores importantes da Justiça e da Política(5). Por isso mesmo, o Centro de Estudos Judiciários (CEJ) ensina essas teorias aos futuros juízes e procuradores(6) e o CSM deu(7) parecer favorável sobre a proposta de lei da guarda partilhada preconizada pela Associação da Igualdade Parental. Da mesma forma, mas claro que perorando sempre sobre o tão nobre tema da igualdade, os deputados dos partidos políticos representados no Parlamento aprovaram de cruz os já citados projectos de lei nesse mesmo sentido.

As vítimas (quase sempre silenciosas por natureza, por medo ou por imposição), essas, não foram nem são ouvidas. Mas o muito que têm a dizer sobre o tema destruiria com facilidade as vestes pseudo-científicas e de “ideologia política e socialmente avançada” das teorias dos defensores da “igualdade parental” e da “guarda alternada”.

E é por isso mesmo que os seus doutros defensores só aceitam ir a conferências e formações por si organizadas, dominadas ou controladas, ou então a debates fofinhos, onde estejam em maioria e saibam que ninguém, com a frontalidade e a crueza que a gravidade do tema exige e impõe, irá pôr não apenas a nu a sua arrogância intelectual como, mais do que isso, a real perversidade dos seus propósitos(8).

Já uma vez, e muito recentemente, rejeitaram o desafio que lhes foi (quer pessoal, quer publicamente) feito pelo Senhor Dr. Gameiro Fernandes, advogado de muitas destas vítimas, para um debate público, televisivo e em total pé de igualdade (nomeadamente de número de participantes e de tempo de intervenção).

Renovo, pois, aqui, esse mesmo desafio ao Sr. Dr. Ricardo Simões, Presidente da denominada Associação para a Igualdade Parental e aos seus e às suas habituais apoiantes, para que aceitem fazer o referido debate público, nas indicadas condições de igualdade, sobre todas estas matérias.

Mas tão ou mais importante do que tal debate era que se ouvissem verdadeiramente os estarrecedores relatos de vítimas de violência doméstica, vítimas também das teorias e das práticas judiciárias da alienação parental e da guarda partilhada. Para se poder perceber, de viva voz, onde já hoje conduz o actual quadro legal e compreender ainda melhor onde poderá, e irá, conduzir uma eventual consagração legal do regime-regra da guarda ou residência partilhada.

António Garcia Pereira


  • (1) Tratou-se dos requerimentos relativos aos Projectos de Lei, respectivamente, nº 87/XIV/1ª(PS), nº 107/XIV/1ª(PSD), nº 110/XIV/1ª(CDS), nº 114/XIV/1ª(BE) e nº 57/XIV/1ª(PAN).
  • (2) Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna (RASI) de 2017, o número de queixas desse ano foi de 26.713 (22.599 das quais entre cônjuges ou ex-cônjuges) e segundo o de 2018 esse número foi de 26.432, referente a um total de 32.067 vítimas.
  • (3) Segundo o Relatório Anual de Segurança Interna de 2018, dum total de 32.042 inquéritos-crime findos, 20.990 foram arquivados.
  • (4) A “igualdade parental” é a versão recauchutada e “modernizada” dos defensores da teoria da Síndrome de Alienação Parental (SAP), inicialmente designada, muito significativamente, de “Síndrome de Mulher Maliciosa” após o completo desmascaramento da sua falta de fundamento científico, convenientemente dizendo-se agora seguidores, já não do defensor de pedófilos Richard Gardner, mas de outras variantes das mesmas teses, como as de Craig Childres e de Dorcy Pruter.
  • (5) A Associação para a Igualdade Parental e Direitos dos Filhos chegou mesmo a intentar, em 2011, uma providência cautelar para procurar impedir que houvesse qualquer apoio público ou até que simplesmente estivessem presentes figuras do Estado ou até dirigentes de Ordens numa Conferência promovida pela Associação Portuguesa das Mulheres Juristas, pelo Instituto de Apoio à Criança, pela Universidade Católica e pela Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação do Porto.
  • (6) Basta ver o tipo de estudos e textos publicados pelo CEJ e a composição das conferências e colóquios por ele organizados.
  • (7) O mesmo Conselho Superior da Magistratura que se mantém mudo e quedo perante a barbárie como, por exemplo, a das violências sexuais e, sobretudo, a dos homicídios em contextos de violência doméstica, acorreu assim a dar o seu prestimoso auxílio às teses da guarda partilhada.
  • (8) Num recentíssimo debate televisivo, o presidente da Associação da Igualdade Parental, Ricardo Simões, arrogou-se mesmo exclamar para uma outra interveniente que dele discordou: “se não sabe o que é evidência científica, eu explico-lhe”. E a psicóloga do Instituto Nacional de Medicina Legal, Rute Agulhas, permitiu-se significativamente sustentar a tese de que as mães maltratam mais os filhos do que os pais!…

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