Cama, mesa e roupa lavada. Têm a certeza?

Subitamente, ao final da tarde da passada terça-feira 4/12, o país foi sacudido com notícias de uma revolta de cerca de 170 presos da ala B do EPL – Estabelecimento Prisional de Lisboa que se recusaram a ser fechados nas celas após o jantar e deitaram fogo a colchões e caixotes do lixo.

E, logo no dia a seguir, mais de metade dos detidos na cadeia de Custóias recusaram-se a almoçar e cerca de 200 reclusos da prisão de Santa Cruz do Bispo, em Matosinhos, recusaram-se a jantar, em protesto e solidariedade com os reclusos do EPL.

Para quem conhece a miserável situação das prisões portuguesas estes acontecimentos constituem tudo menos uma surpresa. Entidades diversas, desde a APAR – Associação Portuguesa de Apoio ao Recluso até ao capelão do próprio EPL, passando pela Provedoria de Justiça e pela OVAR – Obra Vicentina de Auxílio aos Reclusos, vêm por diversas formas e desde há muito, mas até agora sempre em vão, denunciando aquilo que é um estado de coisas absolutamente indigno de um Estado que se diz de Direito democrático.

Costuma dizer-se que quem quer conhecer verdadeiramente um país deve visitar, antes de tudo o mais, as suas prisões, os seus hospitais e as suas escolas.

Ora, desde logo quanto às prisões, a nossa realidade é de uma gravidade e desumanidade extremas.

E entendamo-nos: não se trata de desculpabilizar ou branquear, de algum modo que seja, os crimes cometidos por aqueles que se encontram detidos, nem de pôr em causa, de forma geral, a justeza das condenações de que foram alvo. Isto ainda que existam questões, prévias às do encarceramento, que não podem deixar de ser examinadas e discutidas. Desde logo o elevadíssimo número de presos (uma taxa de 115,7 reclusos por cada 100 mil habitantes, muito acima da média europeia), bem como de presos preventivos que depois não chegam a ser acusados ou pronunciados ou, chegando a julgamento, são absolvidos ou condenados a penas que não a prisão, mas que, todavia, passaram meses e meses, ou até anos, injustificadamente presos.

Um estudo da própria Direcção Geral da Política de Justiça, tendo por objecto os processos-crime findos em julgamento na primeira instância entre 2007 e 2013, assinalou que a percentagem de absolvições por carência de prova oscilou entre 40,4% e 48% do total dos arguidos não condenados, cujo número, nesse período de 7 anos, foi de 154,569 cidadãos!? E já em Agosto deste ano, uma investigação do Jornal “Expresso” registou, só na última década, 562 presos preventivos que foram depois absolvidos em Tribunal.

Por outro lado, e para não ir por ora mais longe, e tal como declarou Manuel Almeida dos Santos, Presidente da OVAR, na sessão solene da Assembleia da República da passada segunda-feira 10/12, onde foi atribuída àquela instituição o Prémio Direitos Humanos 2018, no nosso país (que tem das mais altas percentagens de presos da União Europeia) “persiste-se nas penas mais longas da U.E. – o tempo médio de cumprimento de pena em Portugal é o triplo da média”.

Mas na fase do cumprimento da pena de prisão, que supostamente deveria servia para promover a reinserção social do recluso, o que se passa é exactamente o oposto. O cidadão é encarcerado pelo Estado porque terá violado a lei. Mas, uma vez entrado na cadeia (numa situação em que perdeu um bem precioso como a liberdade, mas não os seus direitos civis e políticos), é afinal o mesmo Estado que incumpre, e repetida e descaradamente, a lei:

– Cada recluso tem o direito a permanecer numa cela individual, mas esta não existe e, pelo contrário, o que se verifica é a sua colocação em celas sobrelotadas com outros 2, 3 ou mais reclusos;

– a maioria das prisões encontra-se em situação de completa degradação e, por exemplo, no EPL, desde infiltrações de água, frio e humidade elevadíssimos, ratos, baratas e percevejos, há de tudo;

– aqueles que dizem (como é frequente ouvir-se) que os presos têm uma vida regalada, “com cama, mesa e roupa lavada”, desconhecem que a alimentação nas prisões é, regra geral, absolutamente intragável (o que não admira quando o Estado gasta 3,20€ com o custo das 4 refeições diárias…);

– situação esta agravada com o facto de que, face ao reduzido número de guardas prisionais e a preocupações ditas de segurança, desde há anos as famílias só podem trazer 1 Kg de comida por semana. O que é também uma forma de forçar os presos (apenas aqueles cujas famílias têm posses, claro está) a adquirirem quase tudo nas cantinas dos estabelecimentos prisionais, que praticam preços exorbitantes e assim obtêm lucros que, de acordo com uma Auditoria de 2014, foram “em média de 680 mil euros por ano”, dos quais “só entregam 600 mil à Direcção Geral”, fazendo assim retenções ilegais de 80 mil euros;

– a nível da saúde, e para além das situações de promiscuidade agravadas pela sobrelotação e pela falta de condições de higiene das cadeias (com roupas de cama e de trabalho a não serem lavadas há anos, como por exemplo na Carregueira), os reclusos não têm, notoriamente, as mesmas condições de acesso da restante população, os respectivos profissionais da saúde são manifestamente insuficientes e grande parte deles são contratados em outsourcing através de empresas de trabalho temporário e em condições de quase escravatura;

– segundo o próprio Jorge Alves, Presidente do Sindicato dos Guardas Prisionais, das 49 cadeias, só meia dúzia é que tem médicos e enfermeiros em permanência e, por exemplo, na de Setúbal, onde não há serviço de enfermagem, são os Chefes dos Guardas que dão a medicação aos reclusos;

– o direito de votar que formalmente os reclusos mantêm, na prática (e por responsabilidade da Direcção-Geral da Reinserção e dos Serviços Prisionais) não existe;

– toda a lógica do sistema prisional está montada, não para assegurar que os reclusos trabalhem e até se especializem ou qualifiquem profissionalmente como forma de preparar a sua reintegração na sociedade, mas antes para fomentar a inactividade e o ócio. Extinguiram-se oficinas e quintas e os poucos postos de trabalho que existem são remunerados a 2€ por dia (não obstante a lei[1] estipular que é devida remuneração equitativa pelo trabalho prestado pelos reclusos). Assim, o sistema prisional, em vez de fomentar a aprendizagem de profissões, a criação de hábitos de trabalho e de sentido de responsabilidade, prefere ter os reclusos a maior parte do tempo encerrados nas celas, de onde saem apenas para os refeitórios (nas prisões onde eles existem) e para 1 ou 2 horas de passeio no pátio;

– as visitas estão sujeitas não apenas aos horários de cada estabelecimento prisional, como à duração (teórica) de 1 hora apenas e ao número máximo de 3 visitantes (mesmo que se trate de um pai com mulher e 3 filhos), e ainda ao número e capacidade dos guardas para efectuar as revistas às mesmas visitas. Por exemplo, no EPL tem-se verificado haver uma única guarda para revistar as visitas femininas, o que faz com que familiares que às vezes viajaram 2 ou 3 horas para virem visitar o recluso só consigam entrar para a visita a 10 minutos do fim desta.

Ora, acontece que, por virtude da realização de uma sucessiva série de greves dos guardas prisionais (cuja justeza de objectivos relacionados, designadamente, com questões de horários, de remunerações e de condições mínimas de trabalho, os reclusos de um modo geral não põem em causa), as já deficientíssimas condições dos presos agravam-se ainda mais.

É que os “serviços mínimos” definidos para tais greves não têm (até à recentíssima decisão do Colégio Arbitral da Administração Pública) abrangido de forma efectiva as visitas aos reclusos, bem como a entrega do tal 1 Kg de produtos alimentares, inclusive os que se destinam às crianças até 3 anos que vivem com as mães reclusas. Como têm impedido o contacto dos presos com os seus advogados. Ou a condução daqueles a diligências, designadamente junto do juiz de instrução criminal ou do juiz de execução de penas ou até do juiz do julgamento, das  quais poderia resultar a sua libertação. Ou a recepção e envio de correspondência. Ou a aquisição de produtos de primeira necessidade (por exemplo, papel higiénico e pensos higiénicos) nas cantinas.

É evidente que um autêntico “barril de pólvora” como este – a que se somam também sempre impunes agressões aos presos mais reivindicativos ou recalcitrantes e que parece que só o Director-Geral de Inserção e dos Serviços Prisionais não quer ver, desvalorizando sistematicamente todas as denúncias e todas as situações – ao mínimo rastilho pode explodir. E foi isso que se passou na passada terça-feira no EPL, um estabelecimento completamente ultrapassado e decadente, que inclusive já terá sido vendido pelo Estado que agora paga uma elevada renda por ele, e que já há muito deveria ter sido encerrado.

Após 4 dias de greve em que não houve visitas, o anúncio de um novo Plenário de Guardas Prisionais que as inviabilizaria também ao quinto dia e a marcação de greves que foram anunciadas como impossibilitando quer as visitas quer o tradicional jantar de Natal, fizeram explodir a revolta, para cuja inevitabilidade (apenas) alguns vinham insistentemente alertando desde há muito tempo.

Um Estado que mete na cadeia cidadãos porque incumpriram a lei e depois, na execução da respectiva pena de prisão, lhes nega a cidadania e incumpre sistemática e repetidamente a lei, mostra bem a sua natureza opressiva e de classe.

Que é afinal a mesma que faz com que os pilha-galinhas sejam rápida e eficazmente encarcerados, mas, ao fim de uma década de fraudes e trafulhices financeiras, não haja um banqueiro preso. Ou que condena a penas efectivas de anos de prisão quem roubou para comer, mas permite que um reitor (Salvato Trigo) de uma universidade (Fernando Pessoa) seja “simpaticamente” acusado pelo Ministério Público apenas pelo crime (mais leve) de infidelidade, e não pelo de burla, seja julgado não publicamente mas à porta fechada, praticamente de forma clandestina e, embora condenado pelo desvio, em proveito próprio, de 2,2 milhões de euros, lhe seja fixada uma pena de apenas 15 meses de prisão e ainda por cima suspensa por igual período!

Ainda haverá quem duvide que há, de facto, uma Justiça e uma Prisão compassivas, indulgentes e quase sempre tardia para ricos, e uma Justiça e uma Prisão para pobres, duras, inflexíveis, violentas e até contrárias à própria Lei?

António Garcia Pereira


[1]Cf. artº 41º, nº 5 da Lei nº 115/2009, de 12/10.

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