Conselho Superior ou Conselho Inferior da Magistratura?

Fomos recentemente confrontados com inúmeras notícias anunciando, em grandes parangonas, que o CSM – Conselho Superior da Magistratura se pronunciara – e aprovara, no plenário do passado dia 30 de Outubro, um parecer nesse sentido – a favor de que seja legalmente estabelecido “o princípio de que, salvo motivo ponderosos, a residência dos filhos de pais separados deve ser com ambos os progenitores”.

Trata-se, assim, de o dito CSM assumir a defesa da posição sustentada pela denominada Associação Portuguesa para a Igualdade Parental e Direitos das Crianças (a recauchutada denominação assumida após a designação inicial de “Alienação Parental” ter sido cientificamente desmascarada) que conta com um poderosíssimo lobby, desde a Justiça até à Comunicação Social. E que pretende revogar o actual regime legal, o qual estabelece, e bem, que o regime de tutela e de residência deve ser, caso a caso, fixado pelo juiz em função da situação concreta (designadamente da postura e do entendimento, ou não, dos progenitores) e, sobretudo, do interesse da criança.

O que a dita Associação para a Igualdade Parental pretende é, ao invés, que a residência alternada passe a ser o regime-regra e que só se for feita prova inequívoca da sua inconveniência é que possa ser definida outra solução pelo juiz do caso, prova essa as mais das vezes muito difícil, senão mesmo impossível, para o progenitor mais fraco ou mais vulnerável, por exemplo por não ter autonomia económica ou por ser vítima de violência doméstica.

A questão é muito séria e a iniciativa legislativa desencadeada neste sentido pela Associação para a Igualdade Parental em Julho último mereceu uma veemente tomada de posição contrária por parte de cerca de 2 dezenas de associações, com a Associação Portuguesa de Apoio à Vítima, a Associação das Mulheres Contra a Violência, a Associação Portuguesa de Mulheres Juristas e a Dignidade à cabeça.

Mas o que importa agora realçar sobretudo é o modo como o CSM – ao que parece na sequência de solicitação da Comissão Parlamentar de Direitos, Liberdades e Garantias – se atreve, para mais sem respeito pelo contraditório pois se limitou a ouvir ou a ler os argumentos dos proponentes e não fez o mesmo relativamente às inúmeras e bem qualificadas vozes discordantes, a intervir num processo de produção de normas que é da competência do Poder Legislativo, e ainda por cima para apoiar uma das duas posições em confronto.

O Conselho Superior da Magistratura, como órgão superior de gestão e disciplina da magistratura judicial, está previsto na Constituição[1] como o órgão que tem por competências “a nomeação, a colocação, a transferência e a promoção dos juízes dos Tribunais Judiciais e o exercício da acção disciplinar”, e somente essas.

E mesmo a Lei Orgânica do Sistema Judiciário prevê[2] – mesmo assim em normas de duvidosa constitucionalidade – que o CSM possa apenas “b) Emitir parecer sobre diplomas legais relativos à organização judiciária e ao Estatuto dos Magistrados Judiciais e, em geral, sobre matérias relativas à administração da Justiça; c) estudar e propor ao membro do Governo responsável pela área da Justiça providências legislativas com vista à eficiência e ao aperfeiçoamento das instituições judiciárias”.

Apoiar posições ou propostas de alteração do regime de regulação do poder paternal defendidas por associações, mesmo que estas contem entre os seus membros com vários e conhecidos juízes e procuradores do Ministério Público dos Tribunais de Família, é que está vedado ao CSM pela Lei e pela Constituição. E deveria estar também pelo mais elementar espírito de bom senso e de razoabilidade…

Mas bom senso e razoabilidade é coisa que há muito não habita naquele Conselho.

Embora composto[3] por 17 membros, presidido pelo Presidente do Supremo Tribunal de Justiça e com 7 juízes eleitos pelos seus pares, 2 vogais designados pelo Presidente da República e outros 7 eleitos pela Assembleia da República (estes 9 já não necessariamente juízes), a verdade é que quem detém nele o poder são os juízes, ou melhor, certos e determinados juízes que estão lá a tempo inteiro em comissão de serviço. E é ainda certo que, nos termos do respectivo Regulamento dos Serviços de Inspecção (aprovado pelo próprio Conselho), os inspectores do CSM são nomeados, também em comissão de serviço, e pelo Plenário do próprio Conselho, “de entre juízes da Relação ou, excepcionalmente, de entre juízes de direito com mais de 15 anos de serviço e última classificação de Muito Bom”[4].

Vogais a tempo inteiro e inspectores são, pois, exclusivamente juízes.

Há muito que defendo que a actuação de titulares de órgãos de poder e de autoridade, como juízes e polícias, em particular nos aspectos que contendam com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, deve ser fiscalizada não por organismos da Administração directa do Estado e muito menos dos próprios, mas sim por comissões presididas, por exemplo, pelo Provedor de Justiça e constituídas por cidadãos idóneos e independentes.

Creio que se vê agora a grande relevância deste ponto.

É que sendo os juízes – ao contrário do que alguns deles gostam de invocar, esgrimindo apenas com a aritmética  do número de vogais e esquecendo tudo o resto – quem, através das inspecções e das deliberações, manda verdadeiramente no CSM, há que dizer também que não são todos os juízes mas aqueles que fazem parte do “aparelho” da judicatura e se vão eternizando no Poder através de um estarrecedor sistema de vasos comunicantes entre o Conselho Superior da Magistratura (exactamente como vogais ou inspectores), a Associação Sindical dos Juízes e altos cargos públicos, inclusive de natureza política em especial na área da Justiça. Bastará analisar a lista de nomes de cada uma dessas 3 “frentes” de actividade para se constatar o alto nível de circulação entre elas de um muito reduzido número de juízes, sempre praticamente os mesmos.

E para mais, nos termos do Estatuto dos Magistrados Judiciais[5], não só o tempo em qualquer comissão de serviço é considerado, para todos os efeitos, como tempo de serviço dos juízes[6], como, se não for uma comissão de serviço em funções judiciais, considera-se, designadamente para efeitos de promoções futuras, actualizada a última classificação obtida[7]. Para além de que os magistrados judiciais na efectividade de serviço podem desempenhar cargos públicos[8] (como os de Director da PJ ou da PSP, ou Director-Geral, ou membro de Gabinete de membros do Governo, em particular na área da Justiça) e até – pasme-se – os cargos políticos de membro do Governo, e de membro do Conselho de Estado ou de Presidente da República.

Significa tudo isto que um juiz que teve há 10 ou 15 aos atrás uma classificação de “muito bom” e tem estado desde então em comissão de serviço no exercício de uma daquelas funções públicas ou no das funções de vogal ou inspector do CSM (não exercendo, por isso, de todo as funções de juiz) pode ir sendo sucessivamente promovido a juiz desembargador e depois a juiz conselheiro do Supremo Tribunal de Justiça e chegar deste modo ao topo da carreira.

Aliás, ainda na mesma Sessão Plenária (de 30/10/18) em que decidiu apoiar a posição da Associação para a Igualdade Parental, o CSM aprovou também o Aviso de Abertura do 8º Concurso Curricular de Acesso aos Tribunais da Relação. O qual define como critério a ser globalmente ponderado com até 3,5 pontos “as funções exercidas no âmbito do CSM, designadamente Vogal, Juiz Secretário ou Inspector Judicial ou ainda o exercício de funções como Chefe ou Membro do Gabinete, membros do Governo na área da Justiça, do Supremo Tribunal de Justiça ou do Conselho Superior da Magistratura”, enquanto, por exemplo, a obtenção do doutoramento em área jurídica com mais-valia e relevo para as funções de magistrado vale apenas 1 ponto e o ensino jurídico até 1,5.

Melhor forma de fomentar, cimentar e de premiar a pertença ao aparelho seria, na verdade, difícil de encontrar!…

Por outro lado ainda, no exercício das suas competências inspectivas, classificativas e disciplinares, o Conselho Superior da Magistratura faz praticamente o que quer, não estando as suas decisões – como, aliás, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem já consecutivamente declarou, condenando o Estado português por violação do direito a um processo justo e equitativo consagrado no artº 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem[9]– sujeitas a regras suficientes de isenção e distanciamento, bem como de respeito pelo contraditório e pelo duplo grau de jurisdição.

Na verdade, o Conselho Permanente, quer nos processos de avaliação, quer nos processos disciplinares, dá quase sempre por bom tudo o que o juiz inspector declare no seu relatório, mesmo que se demonstrem (inclusive por documentos autênticos como certidões judiciais) erros óbvios, por exemplo na contagem de prazos ou de processos pendentes. Da decisão assim tomada pelo Conselho Permanente do CSM cabe depois reclamação para o Plenário do próprio Conselho[10], Plenário esse que normalmente se limita a reafirmar a decisão reclamada.

E do acto administrativo que é essa deliberação (sancionatória ou classificativa) final do Plenário do CSM cabe recurso, mas não para os Tribunais Administrativos, como estipula o artº 212º, nº 3 da Constituição, mas para uma secção especial do próprio Supremo Tribunal de Justiça[11], Supremo Tribunal esse que é presidido pela mesmíssima pessoa que preside ao CSM. E secção essa que fixou o entendimento (já fulminado pelo Tribunal Europeu, mas que persiste) de que não é 2ª instância de julgamento no que respeita à apreciação da prova dos factos e, logo, que não tem que examinar os erros de facto cometidos na decisão impugnada.

E é assim que aquilo que um dado inspector do CSM entendeu imputar – mesmo que infundadamente – a um juiz inspecionado se torna “verdade oficial” e lhe marca a carreira para sempre. E que “o respeitinho pelo Sr. Inspector” se vai sucessivamente impondo.

Mas há mais ainda! É que tendo o CSM, não obstante as declarações em contrário, vindo a privilegiar como critério primordial de avaliação dos juízes a sua capacidade de “descongestionamento processual” – ou seja, a capacidade de despachar estatisticamente processos – e a caucionar a actuação de Juízes Presidentes de Comarca que se assumem como autênticos polícias dos outros juízes, o CSM está é a contribuir poderosamente para a criação de um modelo absolutamente errado de juiz, caracterizado por despachar muito (“”tirando os processos de cima da secretária” dê lá por onde der, numa actividade que pouco ou nada tem que ver com a realização da Justiça substancial) e pela subserviência ao “Chefe” Presidente.

“Bom juiz” passa assim a ser o que “mata” muitos processos e obedece bastante, deixando de se preocupar em produzir decisões justas e prestando-se a aceitar que o Presidente fixe os objectivos dos processos a “abater” e das diligências a realizar e até faça o balanço respectivo na presença dos funcionários que daquele dependem. Ou até – coisa gravíssima – que, em flagrantíssima violação do princípio do juiz natural, mas sob a invocação das al. d) e f) do nº 4 do artº 94º da Lei Orgânica, o Presidente da Comarca e o CSM redistribuam ou reafectem determinados processos a certos e determinados juízes que não aqueles a quem eles foram inicialmente distribuídos!?

O mesmo CSM que tem perseguido disciplinarmente juízes pela mera emissão de opiniões (como já sucedeu, mais de uma vez, com o desembargador Eurico Reis), mas que já não viu qualquer infracção na conduta do juiz Carlos Alexandre quando este, em entrevista pública, fez claros remoques a sujeitos de processos de que era titular, é afinal o mesmo CSM que olimpicamente decide ignorar as especiais dificuldades de um juiz devido a problemas de necessidade de acompanhamento ou de doença do próprio ou de seus familiares directos, que não nomeia ninguém para o substituir ou ajudar, mas que depois o desclassifica ou até persegue disciplinarmente sob o extraordinário argumento de que não se questionam as razões que podem ter determinado as respectivas faltas ao serviço “mas lá que tem atrasos, tem”. Como é o mesmo Conselho que classificou de “muito bom” e fez progredir na carreira os autores de algumas das maiores atrocidades jurisprudenciais (como aquelas do Tribunal da Relação do Porto de que tomámos recentemente conhecimento – Justiça? Ler para crer!“Quando os lobos julgam, a Justiça uiva”) e que, ainda por cima, se recusa a fazer qualquer exame autocrítico.

Como é, enfim, o mesmo que (como já referido, sem contraditório dos argumentos das posições contrárias), se permite vir publicamente dar o seu apoio à Associação de Igualdade Parental através da emissão de um “parecer” visando influenciar nesse sentido o Poder Legislativo.

Em suma, temos um Conselho Superior da Magistratura que não faz nem se preocupa com o que deve, e antes faz e se empenha com aquilo que, legal e constitucionalmente, não deve. Mas que está a procurar impor, designadamente em nome da “celeridade” e da “eficácia”, um modelo de Justiça que nada tem que ver com os cidadãos e um modelo de juiz potenciador das maiores barbaridades.

E nós, cidadãos, queremos mesmo um Conselho, não Superior, mas verdadeiramente Inferior, e Inferiorizante, da Justiça?

António Garcia Pereira


[1]Artº 217º.

[2]Lei nº 62/2013, de 23/8.

[3]Nos termos do artº 218º da Constituição.

[4]Artº 25º, nº 1 do Regulamento aprovado pela Deliberação nº 1777/2016 do CSM.

[5]Aprovado pela Lei nº 21/85, de 30/7.

[6]Artº 58º.

[7]Artº 35º, nº 2.

[8]Nos termos do artº 11º, nº 2 do Estatuto.

[9]Ver Acórdãos do TEDH nºs 9023/13 e 78077/13, de 21/6/16 e 55391/13, 57728/13 e 74041/13, de 6/11/18.

[10]Artº 165º da Lei nº 21/85.

[11]Artº 168º, nºs 1 e 2 da Lei nº 21/85.

Um comentário a “Conselho Superior ou Conselho Inferior da Magistratura?”

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