Era uma vez um país chamado Lagutrop

Era uma vez um país chamado Lagutrop, no qual vigorou, durante quase 50 anos, uma feroz ditadura, que mantinha na miséria e na incultura a esmagadora maioria dos cidadãos, protegia os interesses políticos, económicos e financeiros de uma pequena minoria, impunha uma apertada censura sobre a imprensa e todas as formas de cultura e de opinião e espiava e perseguia implacavelmente todos os seus opositores.

Derrubada finalmente essa ditadura, e decorridas quatro décadas e meia de um novo regime, que de imediato se proclamou de democrático, volta ao país um viajante que não só conhecera o Lagutrop do “antigamente” como também o visitara logo após essa mudança de regime e que não consegue acreditar naquilo que os seus olhos agora contemplam.

Com efeito, não obstante todos eles formalmente viverem em Democracia, a verdade é que as opiniões e aspirações dos cidadãos comuns, tal como cerca de 50 anos antes, pouco ou mesmo nada contam, apenas lhes sendo permitido introduzir, de “x” em “x” anos, um papelinho dobrado em quatro numa urna eleitoral, para assim escolherem, como ratinhos esfaimados, maltratados e abandonados à sua sorte, se queriam ser perseguidos e caçados por gatos brancos ou gatos pretos, mas sempre e em qualquer caso, gordos e gulosos ratos… 

E, claro, nos restantes dias do ano tinham passado a ter de aceitar ser implacavelmente caçados por um Fisco que cai a pés juntos em cima do pequeno contribuinte, mas que não vê e/ou deixa escapar (por exemplo para os off-shores das Caraíbas ou para as Holandas mais próximas, sem pagarem um cêntimo de impostos) os fabulosos ganhos dos donos das grandes riquezas. Bem como tinham, como antes, de se dobrar à arrogância e à prepotência de todas as polícias, dos vários serviços da Administração Pública (como as Finanças e a Segurança Social) e até das grandes empresas prestadoras de serviços ou fornecedoras de bens indispensáveis à vida em sociedade (do gás, electricidade e água às telecomunicações, passando pelos combustíveis e seguros).

A Justiça e os Tribunais – tal como 46 anos antes – mostram-se e comportam-se sempre como muito fortes para com os fracos e os pobres, e fracas e absolutamente pusilânimes para com os fortes, os ricos e os poderosos. E se na Justiça do Trabalho, por exemplo, o que existia então eram tribunais não judiciais, com juízes não de carreira, mas sim de nomeação governamental, e fortemente imbuídos da filosofia corporativa da (pretensa) conciliação dos interesses do Trabalho e do Capital e, consequentemente, dos acordos a todo o transe, a verdade é que, agora, com custas judiciais astronómicas que o trabalhador comum não consegue suportar e com juízes forma(ta)dos no Centro de Estudos Judiciários (CEJ) nas teorias mais pró-patronais, sempre marcadas pelo mais profundo respeito pela propriedade e pela gestão empresarial privadas e pela maior das compreensões pelos alegados problemas dos patrões, muito em especial dos grandes patrões como os Bancos e as multinacionais, a situação não é de todo melhor. 

A que acresce a lógica crescente do Conselho Superior da Magistratura de classificar essencialmente os juízes pela estatística (pelo número de decisões que conseguem “aviar”, independentemente da sua qualidade e justeza) e que permite que os inúmeros Netos de Moura dos vários tribunais, dos Criminais aos de Família e Menores, passando pelos do Trabalho, sejam invariável e imperturbavelmente classificados de “Muito Bom”, prosseguindo assim alegre e airosamente as suas prestimosas carreiras.

Há 50 anos, a lei, mesmo a lei do regime ditatorial, valia pouco, porquanto o que verdadeiramente relevava era, afinal, a vontade do chefe, na velha e repugnante lógica do “manda quem pode, obedece quem deve” ou do “É Deus quem nos ensina que devemos obedecer aos nossos superiores”. 

Mas agora o nosso viajante depara-se com a singular situação no Lagutrop de hoje de que, se a lei não convém (por exemplo, porque impossibilita algo que o governo quer impor, como a nomeação para um alto cargo ou a realização duma determinada despesa publica), então, “muda-se a lei” e o novo regime legal passa, à terrível maneira das teorias nazis do Direito e do Estado, a ser legítimo pela única razão de que quem detém a força e o poder para o fazer aprovar, impôs, afinal, essa mesma aprovação. 

Se antes, perante catástrofes causadoras de inúmeras vítimas, o governo da altura procurava apresentá-las como inevitáveis ou até “actos de Deus” (buscando assim disfarçar a real dimensão das tragédias, impondo uma imagem mitigada, distorcida e, logo, falsa das mesmas), agora, perante tragédias similares, segue a mesma lógica de nada ou quase nada fazer para evitar a sua repetição e até proferir barbaridades como: “sempre houve mortos nos fogos florestais”. Que é como quem cospe na memória dos que faleceram e na cara daqueles que tudo perderam com tais catástrofes.

E se no velho Lagutrop era o lápis azul dos censores que procurava evitar a divulgação e conhecimento da real dimensão da situação social e económica do país,  hoje basta olhar para as manigâncias das estatísticas oficiais (a começar pelas do desemprego, que só contabilizam menos de metade dos reais desempregados) e para a multidão de comentadores que procuram asseverar como verdadeiro aquilo que bem sabem ser redondamente falso (como, por exemplo, o público e repetido anúncio da solidez dum banco já mais que falido), para se constatar que, afinal, o velho Lagutrop nunca deixou de existir.

A Imprensa mostra-se agora mais submissa e reverente relativamente aos vários poderes que cinco décadas antes, quando, de forma muito clara, apenas se permitia que fosse publicado ou emitido aquilo que não fosse incómodo para tais poderes. Agora, a investigação jornalística praticamente não existe e a que vai resistindo é rapidamente cercada, perseguida e silenciada, ao ponto de se terem tornado “normais” telefonemas de governantes para os directores de informação exigindo o despedimento dos jornalistas mais “atrevidos”, que, por exemplo, cometeram a ousadia de formular uma pergunta mais acerada ou de conduzir uma entrevista mais incómoda a Sua Excelência um senhor governante…

Se no tempo do Lagutrop de antigamente os governantes não escutavam ninguém, os da actualidade até fingem ouvir as opiniões, inclusive dos especialistas e cientistas, mas assim que essas opiniões não coincidem com os seus interesses ou até os contradizem por inteiro, logo se acaba com as reuniões e audições e se “resolve” assim essa dificuldade que é a Democracia…   

Aos falsários e bandidos de fato à medida e de colarinho branco, cujas famílias já se tinham enchido há meio século atrás, passou a ser permitido cometerem toda a sorte de fraudes e falcatruas, designadamente as chamadas de “legais” ou de “planeamento fiscal”, usando a constituição de empresas do respectivo grupo na Holanda, para depois passarem para estas todos os lucros alcançados e não pagarem sobre eles nem um só cêntimo de impostos. 

Mas, mais do que isso, passaram também a ser convidados para emitirem – seja em conferências (até ditas académicas, porque em universidades, algumas delas convertidas numa espécie de sucursais togadas de bancos, com cátedras financiadas e dirigentes académicos pagos por estes), seja em horário nobre das televisões – as suas doutas opiniões sobre as estratégias de desenvolvimento do país e até sobre a necessidade de os cidadãos terem de aguentar toda a sorte de medidas de austeridade e de sacrifícios.

Assim, enquanto uns trabalham até ao limite das suas forças para conseguirem subsistir, outros, que nada fazem, enriquecem cada vez mais, tornando cada vez mais actual a velha e conhecida canção “Os vampiros”, de Zeca Afonso: “Eles comem tudo, eles comem tudo, e não deixam nada!…”.

Assim, pelo silêncio de uma imprensa cada vez mais castrada e controlada, pelas acções e omissões cúmplices dos “colegas” da Política, pela conveniente inoperância da Justiça, se vai garantindo a arrogante impunidade não só dos verdadeiros donos do novo Lagutrop, mas também – porque nestas coisas “não há almoços grátis”… – dos que eles apadrinharam, apoiaram e até financiaram e que, obviamente, assim ficam vinculados à reciprocidade de tratamento.

A antiga lógica do “pouco pão e muito circo” para as multidões se manterem distraídas, dóceis e aquietadas, foi integralmente recuperada com tão pomposas quanto ridículas cerimónias oficiais, nomeadamente anunciando eventos desportivos que mais ninguém quis, mas que gozam de astronómicas e escandalosas isenções fiscais.

 E, ao mesmo tempo, o descaramento desses novos governantes não parece ter limites, exigindo sempre novos e mais agravados sacrifícios (ao estilo dos famigerados; “eles que paguem”, “ai aguentam, aguentam!”) aos mesmos de sempre, do mesmo passo que vão preparando insidiosamente mecanismos de vigilância e controlo dos cidadãos que deixam a milhas de distância os meios e os métodos dos esbirros do antigamente. 

E, claro, não pode constituir qualquer surpresa o acabar por se saber que, contra tudo o que fora dito e afiançado por governantes, comentadores e “especialistas”, afinal, a multinacional Google tem mesmo acesso aos dados obtidos através das aplicações que, conjuntamente com outro gigante multinacional, a Apple, cedeu a diversos governos, incluindo ao de Lagutrop, para suposto rastreio e combate à COVID-19. Ou que o mesmo governo já tratou de centralizar num único edifício e sob a égide e controle do seu Ministério do Interior, todos os bancos de dados das diversas polícias e serviços de informações, abrindo assim a porta para toda a sorte de acessos e usos indevidos e ilegítimos.

Sempre sob uma capa de respeito pelos direitos humanos e de “combate ao discurso do ódio”, chega-se ao ponto de o mesmíssimo Executivo do Lagutrop anunciar, não o combate político e ideológico, sem tréguas, às ideias e às posições dos cultores desse mesmo ódio, racista, xenófobo e até nazi, mas antes  a criação (com a prestimosa ajuda de umas “coisas” que ainda se vão chamando Universidades) de sistemas e mecanismos de controlo daquilo que se diga nas redes sociais, como se esse papel policiesco fosse função da Academia e não se estivesse aqui perante, pelo menos, o embrião duma autêntica “nova pide”.

Vive-se assim em Lagutrop um clima asfixiante, em que quem se “safa” são precisamente os safados, os golpistas e os “pragmáticos” (leia-se, os oportunistas sem escrúpulos, que mudam de ideias e de posições como quem muda de camisa). E a tudo e a todos que cheirem a inconformado, a rebelde ou até simplesmente a diferente, o que verdadeiramente lhes resta, em nome da sempre proclamada liberdade de expressão, é gritar as suas opiniões para dentro dum poço, já que, de um modo geral, nesta sociedade e na sua Comunicação Social não há nem tempo nem espaço para o que destoe do pensamento dominante.

É assim fácil que, como complemento directo da lógica e dos valores dominantes da economia capitalista – que não é má por ser corrupta, mas é corrupta por ser má, ou seja, se basear na exploração do homem pelo homem –, a corrupção se alastre mais e mais. E que os políticos que se dizem defensores da Democracia e da Liberdade se comportem, afinal, pior do que aqueles que dizem combater. 

Deste modo, e dentro da lógica de que o que interessa é ter sucesso, nem que seja espezinhando tudo e todos, passa a considerar-se “normal” que se declarem moradas falsas para assim se receberem uns totalmente indevidos subsídios, ou que se marquem falsas presenças para se embolsarem umas quantas, igualmente indevidas, senhas de refeição, ou que se aceitem cargos não executivos mas chorudamente remunerados visando com isso conferir, à moda das máfias de todos os tempos, uma aparência de honorabilidade e um manto de credibilidade às maiores associações de bandidos organizados.

E desta forma se vão também escancarando as portas dos currais aos lobos vestidos de peles de cordeiro que, clamando contra a corrupção e a pouca-vergonha (desde que não sejam as deles…), vão, afinal, pugnando pelo mesmo tipo de país que o Lagutrop de há 50 anos corporizava – com um povo propositadamente mantido pobre, atrasado, inculto, agrilhoado e sobre-explorado. E ainda esperando apenas a ocasião certa para despirem as tais peles de cordeiro e fincarem os dentes nas incautas ovelhas, tal como sucedeu na Alemanha nos anos 30 e voltou mais recentemente a suceder noutros lados, como na Hungria, por exemplo.

Aqui chegado, entre o estupefacto e o revoltado, o nosso viajante imaginário descobre que Lagutrop não é, afinal,  e ao invés do que parecia, o “Portugal ao contrário” de antes do 25 de Abril, mas o Portugal que temos hoje e que está, ele sim, inteiramente ao contrário dos sonhos de todos quantos lutaram pela Liberdade e pela Democracia para o Povo e que, com essa luta, derrubaram o fascismo e justamente aspiraram a construir um mundo novo, onde a opressão e a exploração do homem pelo homem não pudessem ter mais lugar. 

E se o direito a sonhar ainda é um dos poucos direitos que não nos foi expropriado, a verdade é que, porém, e tal como hoje se vê, para que esse Lagutrop possa tornar-se no Portugal de corpo inteiro, senhor dos seus destinos, em que quem manda é quem tudo produz, não é apenas necessário combater e desmascarar os que de braço estendido e de facho na mão apenas aguardam o momento certo para se alcandorarem ao Poder. 

É também, e sobretudo, necessário não alimentar mais a ilusão de que, para construirmos o tão justamente ambicionado Mundo Novo, não basta fazer o que se fez após o 25 de Abril de 1974, ou seja, mudar o regime e o governo, mas manter o sistema capitalista e tratar simplesmente de substituir os titulares dos diversos órgãos do Poder.

Não! Os cidadãos devem antes tratar de se organizar do topo à base da sociedade, em comissões, associações, sindicatos, grupos de apoio e reivindicar – e nunca prescindir dele, muito menos em favor de pretensos dirigentes iluminados ou de salvadores da Pátria – o direito de tudo discutirem e de tomarem todas as decisões que lhes digam respeito. 

O mandato dos dirigentes e responsáveis deve ser livremente e a todo o momento revogável por aqueles que são por eles representados. A política deve ser, como defendiam os filósofos da Antiguidade Clássica, a forma suprema de Cultura, exercida por amor às causas e aos ideais e não por interesses materiais, quaisquer que eles sejam, e, por isso, um dirigente político não deve poder retirar quaisquer direitos, vantagens ou benesses do exercício da sua actividade, não devendo ser o seu vencimento superior à remuneração média daqueles que representa.

Estes princípios – que são, afinal, os princípios por que se bateram os heroicos combatentes da Comuna de Paris – apontam o caminho certo e são hoje mais actuais do que nunca. Desde logo porque permitem claramente diferenciar os que verdadeiramente actuam com base em ideais e princípios elevados e que combatem por um país e por um mundo melhores, daqueles que enlamearam por completo a actividade política permitindo que se generalizasse a ideia de que ela tem, sempre, de ser sinónimo de manipulação, de tráficos de influências e de corrupção. 

Não tem de ser assim. 

Viremos, pois, Lagutrop ao contrário!

António Garcia Pereira    

(Lagutrop era o nome de um País imaginário a que referiam as crónicas do suplemento literário “A Mosca”, do Diário de Lisboa, e que os coronéis da censura só largo tempo depois perceberam que o nome do referido país era, afinal, um palíndromo, ou seja, “Portugal” escrito ao contrário)

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