Obrigado Passos, obrigado Portas. Obrigado Cavaco? (por Estátua de Sal*)

paf_astSegui com um sorriso nos lábios a retórica que a Direita desenvolveu durante o debate do programa do Governo pafioso na Assembleia da República. A narrativa assentou nos seguintes eixos:

1) O ataque pessoal ao líder do PS, António Costa.

2) O revisitar de discursos antigos sublinhando as dissensões de décadas entre o PS e o PCP com o intuito de reputar de frágeis os acordos alcançados.

3) O acenar com a ameaça da inclemência dos mercados e dos credores perante uma aliança à esquerda.

4) A reiterada falsidade de que ganharam as eleições e que o governo teria toda a legitimidade para governar, designando mesmo por fraude, as moções de rejeição que o derrubaram.

A moção de rejeição do PS, aprovada com 123 votos a favor e 107 votos contra, fez o pleno expectável da arrumação de forças políticas representadas no parlamento, sendo a única surpresa ter tido também o apoio do único deputado do PAN.

Não vou desmontar as falácias contidas nos quatro eixos que nortearam o discurso da direita. Foi o discurso da birra, do autismo, da esquizofrenia, da teimosia em não querer ver a realidade. Foi o discurso da criança a quem tiraram o brinquedo e que bate com a cabeça na parede. Ainda assim, devemos ser misericordiosos e magnânimos com eles. Convém perceber que esse discurso faz parte da medicação de que necessitam para exorcizar os seus próprios fantasmas e para se tentarem recompor do choque brutal que tiveram com a realidade.

E que a Direita reflita. Que medite Passos. Que medite Portas. E que concluam que foram eles os grandes obreiros da aliança à esquerda, esse tabu sempre presente durante quatro décadas na política portuguesa. Foi o seu radicalismo neoliberal, a sua crueldade para com os deserdados, a sua insensibilidade em mais deserdados gerarem, que tornou claro para o país, e para as forças políticas à esquerda, mormente para o PCP, que um governo do PS, por muito mau que seja, por muita austeridade que tenha que fazer por imposição de Bruxelas, será sempre melhor e mais sensível aos problemas dos trabalhadores do que um governo pafioso. Jerónimo de Sousa concluiu afinal que, do mesmo saco, podem sair farinhas diferentes. E essa conclusão foi a pedra de toque necessária para derrubar o governo de Passos.

O poder corrompe, mas o poder absoluto corrompe em absoluto, como disse de forma lapidar John Emerich Edward Dalberg-Acton. A direita teve quatro anos de poder absoluto. Além da maioria parlamentar, teve um Presidente de fação, teve um país de soberania limitada subjugado aos ditames da troika, troika de quem se serviu para justificar as suas políticas de devastação. E nesses quatro anos, a direita, de forma desabrida e impiedosa, tentou mudar o regime e alterar em definitivo os equilíbrios sociais e económicos que o país foi construindo ao longo de quarenta anos de democracia, só esbarrando nos limites da Constituição e nos acordãos do Tribunal Constitucional. O PSD, inoculado pelo vírus liberal do CDS, corrompeu os seus próprios princípios programáticos devedores da matriz social-democrata das suas origens. Era uma nova economia, um novo modelo económico baseado num empreendorismo de salão, era um Estado Social minimalista e assistencialista, era um novo moralismo na legislação sobre as políticas de costumes, era no fundo a desforra da direita do antigamente, acolitada pelos jovens rebentos neocons, os tais para quem todos os males do país se poderiam eliminar através do extermínio da peste grisalha. E na aplicação desse programa de subversão do regime, a direita foi impiedosa e governou contra tudo e contra todos. Não dialogou, não criou pontes, não ouviu as críticas nem os avisos à navegação vindos de gentes do seu próprio reduto.

E foi em função dessa governação, que teve a crueldade como bandeira, que a Direita, apesar da campanha de intoxicação que toda a comunicação social montou a seu favor, apesar das promessas de mansidão para o futuro, apesar de apregoar o oásis ao virar da esquina, ainda assim perdeu 700000 votos nas eleições e em consequência a maioria absoluta na Assembleia da República. Contudo, tal não seria suficiente para que a direita fosse afastada da governação, caso não fosse possível constituir-se uma maioria parlamentar que suportasse um governo alternativo.

Mas eis que essa maioria surgiu, apesar de todas as ameaças, chantagens sobre os deputados, clamores dos jornalistas avençados, medos empolados, lamúrias verrinosas e profecias de todas as cassandras.

O sonho messiânico da direita radical, transformação do país assente num darwinismo social impiedoso foi, para já interrompido, mesmo que Cavaco teime em inviabilizar um governo do PS suportado pelo PCP e pelo BE. Aí sim, aí estaríamos perante um golpe de estado perpetrado pelo Presidente, atentado contra a Constituição e contra a República. É bem possível que Cavaco, esse caudilho, a mão atrás do arbusto do radicalismo da direita, queira prosseguir o radicalismo do governo anterior: de golpe em golpe, de subversão em subversão. Mas, se o fizer, as tensões que irá criar no país, a instabilidade que irá criar na gestão do Estado, os efeitos que tal terá, isso sim, no perfil de risco da República nos mercados financeiros, criará um cenário político de tal forma conturbado que o eleitorado não irá perdoar à direita radical. Até porque não é preciso ser do PS para se ser contra a austeridade e achar positivas as medidas que o seu programa propõe.

E não tenho dúvidas de que, nesse cenário, o comentador Marcelo pode começar a preparar o regresso ao seu espaço dominical na TVI, porque nesse caso o próximo Presidente da República será de esquerda. E, tal como agora agradeço a Passos e Portas o terem contribuído para a existência desta inédita e histórica aliança à esquerda, agradecerei também a Cavaco, com toda a fleuma e ironia, a derrota de Marcelo nas próximas eleições presidenciais.

(*) Estátua de Sal é pseudónimo dum professor universitário devidamente reconhecido pelo Noticias Online

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