Rebeldia cívica, precisa-se!

Depois dum período de férias marcado pelas dificuldades e restrições decorrentes da pandemia da Covid-19, eis que a actividade dos principais actores políticos da nossa praça se retoma, para afinal deixar ainda mais clara a marcada hipocrisia e a natureza profundamente anti-democrática e oportunista da sua actuação.

Registemos assim alguns factos por que passa essa forma de actuar e que, aliás, o que fazem é dar força aos discursos aparentemente radicais e desassombrados dos populistas e “salvadores da Pátria” cá do burgo.

 Se a lei não serve…

Tendo a Ordem dos Médicos elaborado um relatório denunciando as indignas e miseráveis condições a que foram votados os utentes do Lar de Reguengos de Monsaraz (e que conduziram à morte de, pelo menos, 18 deles), o Primeiro-Ministro António Costa, num tique bem próprio dos autocratas de todo o mundo, do que tratou foi de logo afirmar que aquela Ordem não teria competência para tal. 

E quando foi esclarecido – sendo, aliás, uma vergonha que Costa o não soubesse… – que essa competência está expressamente conferida pelo próprio Estatuto da Ordem dos Médicos, aprovado por lei, logo houve um deputado socialista que se apressou a afirmar: “então, se é assim, muda-se a lei!”. Um tipo de comentário semelhante ao que outros responsáveis do PS fizeram (isto, quando ficou claro, em particular após a notável sentença do Tribunal de Ponta Delgada, que diversas das medidas que estavam a ser adoptadas e impostas quer pelo governo, quer pelas autoridades de Saúde não tinham suficiente respaldo constitucional) no sentido de que “então, muda-se a Constituição”.

Os critérios da Direcção-Geral de Saúde e os negócios do Governo

Depois, a mesma Direção-Geral de Saúde (que se empenha, por exemplo, em impor que as crianças vítimas de abusos e violências, acabadas de retirar a quem as maltratava, tenham de ficar em regime de total e cruel isolamento, e que critica com veemência os ajuntamentos de mais de 20 pessoas em casamentos ou outras festas) é a mesma que não se importa com concentrações de pessoas bem maiores e, ao menos potencialmente, bem mais perigosas. 

São exemplo disso as “festas de Verão” do Chega onde se juntaram uma ou duas centenas de pessoas, sem respeito pelo distanciamento e a maior parte delas ostensivamente – dentro da tese bolsonarista da “gripezinha” – sem máscara; ou a festa religiosa realizada em Fátima em 13 de Agosto e onde se repetiram diversos comportamentos desse tipo; ou, enfim, da “Festa do Avante”, onde todos percebemos que não será de todo possível assegurar e fiscalizar efectivamente o cumprimento (por parte de, pelo menos, 16.500 pessoas) das normas sanitárias finalmente produzidas e divulgadas pela Direcção-Geral de Saúde, para mais num espaço muito amplo, mas, na prática, unicamente controlado pela força política que leva a efeito o evento. Até porque também sabemos que seguramente as equipes de intervenção rápida da PSP e da GNR ou até as suas tropas de choque – que vimos carregar sobre jovens na Amadora, em Carcavelos ou no Algarve – não irão decerto irromper pelo recinto da festa para “varrer” qualquer concentração desrespeitadora das regras sanitárias em vigor…

E é assim que, nas vésperas da votação do Orçamento de Estado para 2021 – que o governo quer ver aprovado e onde, por exemplo, foram abandonadas todas as promessas de diminuição dos impostos sobre os rendimentos das pessoas singulares, sobretudo os do trabalho – o Sr. António Costa, lançando às urtigas o rigor que fez as suas polícias imporem noutros casos menos eleitoralmente relevantes, permite que o PCP – que já viabilizou, abstendo-se, quer o Orçamento para 2020, quer o decretamento do primeiro estado de emergência – faça a sua festa e se apresente, desde logo perante as suas próprias bases de apoio, como o paladino das liberdades cívicas e políticas. Belo negócio político este, até por, sendo-o, nunca se assumir como tal…

As fragilidades do SNS 

Por outro lado, a evolução da pandemia vai tornando cada vez mais evidentes as marcadas fragilidades do Sistema Nacional de Saúde, que foi vítima de um processo de décadas de desarticulação e de desinvestimento, bem como da passagem para o sector privado duma parte muito substancial das suas actividades mais rentáveis. Aliás, o SNS apenas pôde esconder durante algum tempo essas fragilidades mercê do esforço heróico dos seus profissionais, mas, agora, não pode mais ocultar que grande parte do que foi feito para combater a pandemia da Covid-19 significou deixar para trás os doentes não-Covid, bem como os profissionais e os serviços que os tratam, ao ponto de a mortalidade desses mesmos doentes ter tido, neste período, um aumento muito acentuado, de existirem cerca de 250 mil cirurgias por realizar e, só nos centros de Saúde, 1,1 milhão de consultas adiadas, e de haver serviços absolutamente vitais, como as Urgências de certos hospitais, a terem de fechar, designadamente por falta de profissionais, como médicos e enfermeiros, tal como sucedeu recentemente com o Hospital de Santarém.

A manipulação da aplicação do telemóvel

E enquanto não se fala, e menos ainda se trata, destas questões essenciais para a Saúde Pública (toda ela, e não somente a directamente relacionada com a Covid-19), e muito especialmente quando se espera uma segunda vaga da pandemia, lá vem mais uma campanha de manipulação das consciências, iniciada com uma cerimónia pública mas, significativamente, sem direito a perguntas dos jornalistas, em que o governo, com António Costa à cabeça, procura fazer crer que a solução milagrosa para o combate à pandemia passaria por todos os portugueses instalarem nos seus telemóveis a aplicação “stay away covid”. 

Ora, se esta postura de, para mais sob argumentos alarmistas ou até mesmo catastrofistas, fazer crer que o combate eficaz à pandemia e aos seus efeitos passa necessariamente  pela instalação da dita aplicação já é profundamente errada e até perigosa, não é menos verdade que entidades tão “conspirativas” e “aspirando ao derrube do governo” como o DECO e a D3-Associação de Defesa dos Direitos Digitais já vieram a terreiro denunciar que, com tal aplicação, existe uma possibilidade muito séria de uso indevido dos dados pessoais dos cidadãos que a instalem, desde logo por parte da Google e da Apple, tanto mais que o código do respectivo servidor não está devidamente publicado e o sistema de notificação utilizado – o GAEN – não assegura a necessária transparência sobre as entidades envolvidas no tratamento dos dados recolhidos.

Em suma, e tal como aliás já se tornou claro em países de regime autoritário, como a China e a Hungria, por exemplo, a eficácia alcançada com este tipo de aplicações tem menos que ver com o efectivo combate à pandemia e muito mais com a recolha e tratamento de dados relativos aos cidadãos, em particular os considerados “subversivos”.

A auditoria ao BES/Novo Banco 

Por outro lado ainda, todos já percebemos igualmente que a famosa auditoria ao BES/Novo Banco, ordenada há cerca de um ano, servirá apenas para responsabilizar o passado e para iludir aquilo que verdadeiramente se está a passar actualmente naquela instituição financeira, e que já levou os cidadãos portugueses a verem-se espoliados dos 3.900 milhões de euros injectados logo no início, mais 3.890 milhões que o Estado se obrigou a lá meter de seguida (e dos quais já foram entregues mais de 2.800 milhões), tudo no valor astronómico de 7.800 milhões de euros.

É que, ao que se percebe, o criminoso acordo de venda do Novo Banco ao Fundo-abutre Lone Star permite à administração do “BES Bom” determinar que este seja compensado com dinheiros públicos para cobrir perdas com créditos incobráveis ou com a venda de activos alegadamente mal avaliados. O que possibilita que a mesma administração do Novo Banco – que teve já o desplante de vir invocar “a forma transparente e competitiva como tem vindo a recompor o balanço” (sic!) e de qualificar como “fogo posto” as críticas à sua actuação – se desfaça de activos (designadamente imóveis e até a seguradora de que era titular) a preços de saldo, e que até mesmo financie os beneficiários desses autênticos “negócios da China” emprestando-lhe o (pouco) dinheiro necessário para essas compras, pois sabe que o banco será ressarcido, por dinheiros públicos, do valor correspondente à diferença entre o valor por que tais estavam avaliados e o valor irrisório pelo qual foram agora vendidos.

E o que é que, acerca disto tudo, fizeram o Sr. Costa e o seu governo? Depois de (continuarem a) manter no segredo dos deuses a auditoria que há um ano atrás terá sido feita ao Fundo de Resolução, trataram, entretanto, de encomendar uma auditoria, relativa a um período extensíssimo (de 2000 a 2018), à Deloitte. 

O que é a Deloitte?

E o que é realmente a Deloitte? É “apenas” uma das 4 grandes multinacionais mundiais da auditoria e da consultadoria e que tem estado envolvida em inúmeros casos de fraudes e escândalos financeiros e fiscais.

Com efeito, e para não ir mais longe, a Deloitte, em 1991, pagou 65 milhões de dólares para resolver a questão das alegações de que participara na fraude da sobreavaliação dos activos da Bonneville Pacific Corporation. Em 2008, pagou, em Espanha, 1,32 milhões de euros de multas por erros grosseiros na auditoria das contas da Companhia Gescarte. Em 2013, rebentou novo escândalo, agora no Brasil, onde foi acusada de cumplicidade na fraude cometida no Funcef, o Fundo de Pensões dos funcionários da Caixa Económica Federal. Em 2014, esteve envolvida no chamado “Luxemburgo Leaks”, um novo escândalo financeiro que revelou os detalhes de operações secretas de 343 multinacionais com vista a se eximirem ao pagamento de impostos. De novo em Espanha, em 2017, o ICAC-Instituto de Contabilidade e Auditoria de Contas aplicou à Deloitte uma multa de 12,4 milhões de euros por ter participado no branqueamento das falcatruas financeiras cometidas pelo Bankia e por ter chancelado e aprovado as respectivas contas. Por seu turno, a Comissão Pública de Supervisão das Companhias de Contabilidade aplicou-lhe uma multa de 8 milhões de dólares pelo branqueamento das irregularidades e fraudes cometidas na auditoria às contas da GOL e da ATN. E, de novo no Brasil, e após o seu envolvimento no escândalo das contas do Carrefour, a Deloitte aceitou pagar à CVM- Comissão de Valores Mobiliários um valor da ordem dos 5,36 milhões de reais!

Para que serve o relatório da auditoria?

Ora, é precisamente a uma auditora privada com este palmarés – e porque não por peritos e serviços públicos? – que se encomenda uma auditoria cujos resultados todos já adivinhamos: não revelação da identidade dos 283 privilegiados que tiveram negócios que representam mais de 4.000 milhões de euros de prejuízo (impedindo-nos de saber quem é que pôde beneficiar, por exemplo, de empréstimos a taxas especialmente bonificadas e/ou sem as garantias, em particular reais e pessoais, que a banca sempre exige aos clientes “comuns”), ilibação de responsabilidades da administração do Novo Banco após o negócio com a Lone Star e ratificação dos respectivos negócios para não “estragar o negócio principal” com o mesmo Fundo, o endossar das responsabilidades para os antecessores e tentativa de nos apresentar como “normais” vendas de activos a preços de saldos para parceiros mantidos no anonimato, financiamentos mais que duvidosos (a esses mesmos parceiros) e prejuízos colossais a terem de ser suportados pelos contribuintes.

E, de seguida, perante a falta de memória e de princípios e a complacência tornada generalizada pelo “carneirismo” que a pandemia e as lógicas do “novo normal” facilitaram e incrementaram em último grau, António Costa colocará “a cereja no topo do bolo”. 

O mesmo António Costa que, se tivermos memória, nos lembraremos de que, enquanto Ministro da Administração Interna de Sócrates, manteve (apesar de haver um Parecer da Procuradoria-Geral da República a considerar o mesmo nulo e de nenhum efeito) o desastroso (como se viu com o incêndio de Pedrógão) e ruinoso negócio do SIRESP, abdicando a favor da SLN, dona do BPN, do período experimental do mesmo, a troco de um pequeno desconto no astronómico preço do dito contrato. 

O mesmo António Costa que, enquanto Primeiro-Ministro, levou a cabo em 2017 uma pseudo-reversão da privatização da TAP, que deixou integralmente a gestão desta nas mãos de Neeleman e Companhia, conduzindo assim a transportadora ao estado calamitoso em que ela já se encontrava antes da Covid-19. 

Agora, Costa tratará de salvar o negócio com a Lone Star e afirmará que, apesar de estar há quase 5 anos no Poder, a responsabilidade do sorvedouro de dinheiros públicos que BES e Novo Banco revelaram é única e exclusivamente dos seus antecessores e que aos cidadãos portugueses não restaria outro caminho que não fosse o de pagar e calar.

O obscurantismo à solta

E é exactamente porque vivemos num pântano em que coisas destas podem suceder sucessiva e impunemente e em que, em nome da “paz social” e da “estabilidade”, se asfixiam todas as vozes discordantes e divergentes, que uma sociedade profundamente anti-democrática vai sendo construída. E até mesmo cadáveres políticos como Cavaco Silva e Passos Coelho – só faltou mesmo Miguel Relvas… –, de par com altos dignatários da Igreja católica, direitistas confessos como o advogado-comentador José Miguel Júdice e o socialista Sérgio Sousa Pinto podem aparecer a lançar um abaixo-assinado em que, em nome das liberdades da educação, defendem a possibilidade de os pais impedirem os seus filhos de frequentarem a disciplina de Educação para a Cidadania e o Desenvolvimento.

É que, sem menosprezar quer a eventual menor preparação de alguns professores dessa cadeira, quer a crítica a alguns dos conteúdos que nela possam ser lecionados, esta acção visa muito mais e pretende, sob o pretexto do “apoliticismo”, do “não à Política na Escola”, do “combate ao marxismo cultural” e, sempre, da liberdade de educação e até de religião, proibir tudo o que possa contribuir para a construção duma cultura cívica e para a formação de cidadãos activos e conscientes.

O obscurantismo dos argumentos utilizados – e que, aliás, já conhecemos de outras paragens, designadamente dos reinos de Trump e de Bolsonaro – é apto a levar, a breve trecho, à defesa não já apenas da desqualificação e desvalorização, mas até à supressão de outras disciplinas, igualmente consideradas “ideologicamente contaminadas” ou até “perigosas”, da História às Humanidades, passando pela Sociologia e outras Ciências Sociais. E, claro também, tal como vem hoje sucedendo noutras paragens e já aconteceu entre nós no tempo da Ditadura fascista, ao despedimento dos professores tidos por “perigosos” ou simplesmente “indesejáveis”…

Ensinar a procurar pensar pela própria cabeça, compreender o mundo e tratar de mudar o que nele está errado e é injusto foi sempre algo que profundamente perturbou os incultos e os autocratas. Não é por acaso que os nazis proclamavam orgulhosamente que, mal ouviam falar de Cultura, puxavam logo da pistola. E também não é por acaso que é precisamente nos caldos de incultura, de incerteza e desânimo como aquele que, em nome do “novo normal”, nos querem impor, que os mais odiosos “salvadores da pátria” começaram por vestir as suas peles de mansos cordeiros…  

Liberdade de espírito, razão crítica e rebeldia cívica, precisam-se, pois, e mais do que nunca!

António Garcia Pereira     

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