O preto – corpo com identidade política versus os corpos aos quais chamamos elites. 

Ciclicamente temos casos de racismo com nomes conhecidos da música, do desporto, do jornalismo, da política, do activismo, ou com pessoas desconhecidas portuguesas de antepassados africanos, ou ainda imigrantes explorados, em Portugal. 

A todos estes chamar-lhes-ei os corpos despossuídos, e naturalmente o texto de hoje versa o assunto. 

Portugal uma glória do passado por desbravar o mundo, uma vergonha da História passada por invadir e explorar uma boa parte do Continente Africano, é no presente uma nódoa de vergonha, num país com diferenças acentuadas entre as classes (cada dia mais), de gente explorada (nos 50 tons entre o preto e o branco), de grandes periferias e bairros degradados, país hoje vendido à exploração financeira nesta acção global de reencenação de uma peça antiga e mastigada – muito pouco em conjunção com o metabolismo do planeta – como lhe chama a Rita Von Hunty (aconselho vivamente o canal dela no youtube – “Tempero Drag”), que apesar de alguns avanços, trata os despossuídos como restos de jantar com alguns dias – para deitar fora. 

Onde estarias Portugal se não tivessem sido as riquezas das tuas ex-colónias, sem o teu Império, os teus milhões de escravos, a tua Companhia das Índias Orientais, a tua exploração africana e no presente sem as vidas desses descendentes? 

A pergunta é retórica meus amigos. 

Portugal se hoje está mal economicamente, se é submisso como obrigou os seus escravos a serem, se é obediente, vendido, parasita e chico-esperto tem no seu adn este estatuto. 

Que de vez em quando se recicla. 

Não pensem que a apropriação cultural só acontece com música e tranças. 

As ideias também se renovam em particular se for para idiotizar. Por isso certos políticos subiram tanto nos números de votantes. 

Noutras latitudes basta ler o percurso feito pelos presidentes nas Américas – ambos países de matriz racista – para compreendermos o objectivo da reciclagem de ideias. 

Pensemos numa relação entre dois seres humanos. Quando esta fica mal resolvida, vamos arrastando as consequências se não tratarmos o problema, ou a causa. Enquanto não olharmos para a ferida e aplicarmos o tratamento certo não a saramos. 

Ciclicamente a ferida vem buscar oxigénio, renova-se, escancarando-se para a vermos. 

Assim acontece com o racismo, com os ataques racistas directos, com as microagressões diárias, rotineiras, ou esporádicas, camufladas ou abertas.

Por isso se pode dizer que o racismo é tão Britânico quanto uma chávena de chá. Que o racismo é tão Brasileiro quanto o amor ao Pelé, ou que o racismo é tão Português quanto o pastel de nata. Faz parte da identidade e da cultura dos corpos brancos destas nações. 

Está entranhado como segunda pele. E lá vem a ferida reabrir e expôr-se. 

Na história aprendemos que as ideias se renovam ciclicamente, que nenhuma ideia nasce como coincidência ou apenas como algo do passado. 

São ideias que foram apropriadas, que circulam no plasma da história, que renascem, que se reciclam, que se reencenam, que se actualizam na matéria de cada era. 

Por exemplo Deus, Pátria, Família é tanto do passado Salazar quanto de Mussolini, quanto nas versões actuais materializadas em Bolsonaro em Trump ou Ventura. 

Dos corpos brancos e dos corpos pretos e castanhos que se colam a estas versões e com elas ganham dinheiro, visibilidade e identidade.

A divisão com base na ignorância eliminando o pensamento crítico aconteceu na Alemanha Nazi e no passado quando se prepararam povos para receber e explorar escravizados. 

Os corpos destes últimos não contavam para nada a não ser para o que serviam, segundo a lei do racismo, que até teoria científica recebeu como generosa oferta de invalidação dos mesmos.

No presente como noutras eras, ou se é de um lado ou se é contra, desqualificando o outro, invalidando o outro, por vezes abrindo as vogais do insulto, outras camuflando o mesmo.

Como se vivêssemos num torneio. 

Há corpos que existem para ser explorados até à morte, diminuídos e desintegrados da sua identidade, incluindo a humana. Os despossuídos. E depois temos os outros que lhes estão acima. 

Tenhamos presente que a ferida volta sempre para se expôr. 

Na realidade, todos os países que se tornaram grandes potências na Europa, eram pequenos e não iriam a lado nenhum até chegar o século XV. Relembremos que todos viviam a Idade das Trevas sob o domínio da Igreja Católica. 

Hoje fazemos o branqueamento do poder da Europa. 

Porém as riquezas transferidas de geração para geração, na formação e na expansão de elites e corporações junto dos Ingleses, Portugueses, Holandeses, Alemães, Franceses, Belgas, Italianos, ou por outras palavras, dos corpos das elites, nasceram da Escravatura, do trabalho dos corpos dos despossuídos.

Nas movimentações Europeias de descobertas marítimas, de invasão e exploração são criadas as Companhias Reais para o comércio de produtos. A Britânica, a Portuguesa, a Holandesa… 

Contudo o produto mais valioso e essencial foi como sabemos o comércio de escravos e a sua exploração. 

Com ele começa o desenvolvimento destes países. 

É o açucar, o sal, o ouro, a prata, o tabaco, o algodão, o café…

até chegar a Industrialização e a Indústria Financeira dos dias de hoje, no capitalismo que já deu provas de nos amar – comendo, mastigando e cuspindo. 

O racismo está na estrutura do desenvolvimento destas sociedades recentes e como ainda não foi sarada, a ferida ciclicamente vem buscar oxigénio, e com ela assistimos aos episódios regulares de situações de racismo e xenofobia, dobrando a aposta de desvario se for mulher e preta, ou com o factor trícepe, se for lésbica ou trans. 

A retórica do ódio não nasce nos meus textos nem naqueles que são anti-racistas e combatem com a sua vida a maligna existência do racismo. 

O que eu escrevo e digo está documentado em provas Históricas, na literatura e até na ciência. 

A retórica nasce no pensamento da história do passado, e na narrativa contemporânea da reciclada extrema direita, que cresce nas Américas e na Europa. 

A repescagem de ideias, as feridas abertas nas veias de sangue vermelho na pele preta e na pele branca, buscam oxigénio. 

Do lado branco são reacendidas e buscam projectar ódios antigos – vocês corpos para exploração deviam continuar calados e despossuídos.

Do outro lado buscam cura e lugar. Buscam ser ouvidos na sua identidade. 

Sabemos que existem com fartura os rostos de negros defendendo e negando o racismo branco. 

Em psicologia chama-se dissonância cognitiva. Ou oportunismo. 

Uma apropriação de mais uma ideia do passado – se eu me colocar ao lado do meu inimigo pelo menos serei poupada. 

É por isso urgente e necessário que os corpos de cor branca, que hoje também são tratados como despossuídos pelo sistema, que evoluiu da escravatura para os dias de hoje, se reciclou e reformou, percam a vergonha e o medo. 

Em lugar de serem racistas pensem na História e façam a sua parte. 

De um lado os escravos pretos, que ganharam alforria – mas pouca – com o peso de uma casa nas costas a gritar :

-Antes morto! E mesmo que morra, vou denunciar. 

Do outro lado temos uma elite beneficiária a rezar um credo:

-Corpos pretos e castanhos não querem o racismo estrutural sob o qual construímos as nossas casas há seis séculos? 

Querem que as vossas vozes sejam ouvidas?Têm fome de reparações históricas? 

Comam brioches…

Anabela Ferreira

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