Os desconseguidos ou homo-burros?

Assim ficará titulado o capítulo na história que falará de nós. Começará assim:

-Este foi o tempo da História da era moderna quando o sapiens-sapiens e as suas respectivas sociedades (tirando raras excepções podemos falar em falhanço global) entraram em autofagia (o animal que se alimenta da própria carne).

Quando uma relação no mundo animal se encontra em desarmonia, a prática de canibalismo é corrente. Animais da mesma espécie comem-se seja em estado embrionário ou na adultez. São factos da biologia. Qualquer semelhança connosco nesta era não é coincidência. Não mastigamos e cuspimos a carne uns dos outros, consumimos e deitamos fora o espírito, a alma, a mente, a saúde do nosso semelhante.

Entre o sapiens sapiens e o homo ignorante há uma linha ténue a nos separar, estreitando-se o momento de nos auto-engolirmos. Estas são as semelhanças entre o canibalismo e a autofagia da era moderna do homo – burros.

A descrição dos historiadores e antropólogos que tomarão as nossas cadeiras e encontrarão os nossos ossos (assim esperanço) continuará:

-Viveram dissociados – entre eles, da sua essência, da natureza, da ligação que tinham com o cosmos, com a filosofia, com o pensamento, com a comida, com os três pilares da saúde fundamentais à vida humana plena: mental, espiritual e física. Foram a espécie à deriva, como um iceberg. Só conseguiram observar uma ínfima parte da sua degradação, a que emergia. A parte submersa era incomensurável. Foram nesse período da era moderna a espécie Titanic. Bateram contra a área submersa que lhes causou um rombo no casco, fazendo a água entrar na casa das máquinas. Afundou-se por incríveis erros humanos. Contam lendas e mitos que a orquestra tocou até aos momentos finais espalhada por festivais e concertos.

Nota de rodapé do antropólogo:

-Deveriam estar a buscar o caminho que lhes trouxesse chão, porém entraram na desesperança perdidos sem céu, por serem individualistas, narcisistas sem freio colocados em altares, ídolos com pés de barro que tudo relativizaram segundo os interesses pessoais que apenas integrava a auto-satisfação. Foram o homo – líquido. Sem consistência nem solidez para aguentarem o teste do tempo da era moderna.

Na base da sociedade desta espécie – como um todo, pesando todas as diferenças por esse globo fora – a justiça que deveria ser sóbria, equilibrada e justa passou a ser espectáculo, a economia passou a ser cada vez mais desajustada, com maior clivagens entre classes e maiores desigualdades, mastigando e deitando fora quem deixasse de produzir e consumir, a educação passou a ser uma formatação, manipulação da cognição e adaptação aos interesses económicos, a saúde passou a ser um negócio cada vez mais chorudo com interesses em criar consumidores em lugar de curas, o quarto-poder deixou de informar, apresentar investigação e verdade passando a ser o braço-direito com a mão estendida aos deuses que os abençoavam, as guerras foram consagradas como modus operandis e modus vivendi dos governantes/czares/faraós,/imperadores/reis, as eminências pardas que manipulam, e as marionetas que executam, tendo o deus dinheiro tomado posse do Éden, criando grandes negócios com as guerras, a pobreza e as doenças, fomentando todas as discórdias, por fim atirando os relacionamentos interpessoais para a profunda divisão e ódio. Como consequência, os indivíduos, doentes com uma doença auto-imune, encaminharam-se para a auto – destruição. A autofagia da espécie entrou em processo (situação em que um organismo, por doença ou falta de alimento, se nutre de substâncias do próprio corpo).

Os historiadores prosseguem as aprendizagens com os relatos encontrados nuns muros sociais sobre a tal “era moderna” que de tão moderna se eclipsou. Ora atentemos nas palavras deste exemplo que tentou como tantos registar o momento:

-”Apenas venho relembrar aquilo que todos sabemos, fazendo uma manta de retalhos com retratos em rosetas sobre nós – os seguidores da sandália versus os seguidores da oliveira” (lembrando uns tais Monty Phyton comediantes de um século anterior à degradação total).

“Já perdi a paciência e a conta dos assuntos que nos polarizam. Com os quais sentimos necessidade de espetar uma lança em África ou no olho de alguém.

Quando julgávamos estar a viver um período longo de paz e prosperidade, porque podíamos, eis-nos ávidos a nos dividirmos e a tribalizarmos nos assuntos que nos rodeiam – a pandemia (que decorre), a guerra de regresso à Europa (que não é única no globo e apenas tem como responsáveis os tais que ganham muito dinheiro com ela e se riem da Paz), passando pela distracção (actual) do julgamento mediático de um casal famoso, envolvido num caso de divórcio/difamação envolto em violência emocional e física, juntando o consumo de drogas aos graves problemas relacionados com a saúde mental de ambos – no fundo um retrato de todos nós em relacionamentos afectivos menos conseguidos, em maior ou menor escala. Veja-se o ataque físico a comediantes por dizerem piadas que alguém não quer ouvir, fazendo placagens em palco porque alguém não apenas diz piadas como nos faz pensar e pensa diferente, tem perspectivas opostas às nossas e questões difíceis sobre as quais não queremos pensar (será que ainda pensamos?), ou, permitindo-se a barbárie, entrando no palco, na TV, na nossa casa, nos nossos muros, amigos e desconhecidos gritando abusos, impropérios e insultos, cancelando escritores (por opinarem sobre um assunto a ser cancelado), ou qualquer indivíduo mais ou menos conhecido tentando impôr uma ideia qualquer.

Basta olha a minha pequena aldeia, lugar onde nos tornámos pitbull contra comunistas, contra anti-racistas ou prós e contra qualquer situação ou pessoa, calando outras.

Os grandes tubarões comeram os jaquinzinhos, têm na sua posse a nossa socialização virtual e mediática programando algoritmos que estimulam ódio, medo e divisão ou comentadores e fazedores de opinião que se encarregam de nivelar por muito baixo as percepções públicas.

Não é um embaraço vivermos neste esquema desenfreado de loucura ou de apatia profunda?

Se algum dia um historiador ler este relato vai-se sentir com muita vergonha alheia por ter no ADN elos desta espécie em vias de extinção que somos nós. Se me estiverem a ler, peço desculpa. Não era isto que eu queria para a espécie.

Não importa o porquê nem a razão, importa que nos tribalizámos. Repito, estamos ávidos por nos dividir, atirar paus e pedras, ou cogumelos nucleares. O que mais precisamos é de sermos Um com os outros. De olharmos para dentro e percebermos que só florescemos quando somos um. De usarmos a filosofia africana Ubuntu – as partes individuais existem somente como aspectos da unidade universal – devendo ser este o nosso modus-vivendi. Ouvirmos e vermos o outro, mesmo discordando, porque a diversidade da humanidade é o nosso super-poder. Somos muito burros!

Continua o historiador, lacrimejando em frente a uma audiência popular e anónima – o conhecimento era agora o foco principal desta avançada espécie que estudava o passado:

– Tiveram a oportunidade de ter tudo. De cada um ser capaz de se desenvolver, de ter conhecimentos e capacidade cognitiva para ser melhor individualmente, consequentemente colectivamente. Tiveram a possibilidade de não mais serem escravos nem do trabalho, nem da tecnologia nem de imposições, nem de ditadores. Estariam tão doentes que se adaptaram e ajustaram ao facto de serem controlados, mentidos e manipulados como ratos a girar em movimento perpétuo, sujeitos a reflexos Pavlovianos?

Porque não os deixaram ser livres? Porque deixaram que não os deixassem ser humanos?

Teriam medo de ser livres? E cada dia mais sapiens? Terão perdido a sapiência da espécie, entrando num processo irreversível de autofagia? Nunca seguiremos este exemplo.

Com esta investigação, concluía o power point do historiador, este grupo ficará para a História como um capítulo da “Era das trevas modernas”, quando a humanidade caminhou para a desinvolução do sapiens sapiens, conhecido cientificamente por homo ignorare.Está aberto o debate e o momento de perguntas e respostas.

Anabela Ferreira

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