A desastrosa negociata do apeadeiro do Montijo

Numa grande operação mediática que contou com a presença do Primeiro Ministro, do Ministro dos Transportes e dos principais responsáveis da privatizada ANA – Aeroportos de Portugal, SA, foi anunciada a construção de um aeroporto (complementar) no Montijo.

Ora, é indiscutível que uma ferramenta essencial para o desenvolvimento do nosso País, aproveitando a nossa invejável localização geoestratégica, é um grande Aeroporto Internacional, situado na zona de Lisboa.

Como é inegável a crescente limitação operacional do aeroporto Humberto Delgado, na Portela, e a necessidade de uma solução eficaz e duradoura para o problema daí decorrente, sob pena de perda da posição de centro de operações dos voos comerciais (“hub”) entre o continente americano e a europa central para o concorrente directo que é Madrid.

Mas será que a opção – anunciada com tanta grande pompa e circunstância pelo governo de António Costa – de Lisboa + 1 (Montijo) é a solução ou é antes um problema que é também o culminar de uma autêntica negociata, destinada a encher ainda mais os bolsos dos grandes interesses financeiros privados, a começar pelos da Vinci, a concessionária da ANA e da gestão aeroportuária?

Antes de mais, importa sublinhar que a “solução” apresentada por Costa, Pedro Marques e Companhia é a de manter o mais que esgotado Aeroporto da Portela como o aeródromo principal (mas, ainda por cima e contra aquilo que tem sido a opinião maioritária dos Pilotos de Linha Aérea e da sua Associação – APPLA –, retirando-lhe uma das pistas – a diagonal, chamada 17/35 – que será transformada em lugares de estacionamento) e fazendo do do Montijo um aeroporto complementar, reservado essencialmente às companhias aéreas low cost.

Como referiu o piloto Miguel Silveira, Presidente da APPLA, no Aeroporto da Portela, “entre 3 a 4 meses do ano, por razões de segurança, devido a fenómenos atmosféricos moderados a severos, a pista 17/35 é a melhor para aterrar e não a 03/21, pista que se usa normalmente”.

Ou seja, pelo menos 25% a 30% dos ventos anuais que causam fenómenos de rápida variação na direcção e/ou velocidade do vento (o chamado windshear) e turbulência severa no final da aterragem na pista 03/21 – aquela que o Governo e a Vinci querem tornar única – fazem com que, por razões de segurança, seja precisamente a pista 17/35 (em vias de extinção) a mais indicada para aterrar.

E é por isso que se tornou necessária a complexa obra de prolongamento da pista do Montijo por mais 300 metros (e com graves questões ambientais e de segurança, com 150 espécies animais e entre 150 e 200 mil aves no período migratório, muitas delas capazes de causar graves danos em aviões como flamingos, garças, patos e gansos), uma vez que, tal como está, ela não permitiria a aterragem e sobretudo a descolagem dos aviões das viagens de longo curso (por exemplo, o Air Bus A-330).

Ou seja, a opção agora anunciada não é nem uma solução de futuro para o Aeroporto Humberto Delgado – só com uma pista e limitado na sua expansão desde logo pela sua localização e pelas construções urbanas circundantes – nem para o do Montijo. Que ainda assim vai necessitar, para funcionar como foi anunciado, da referida extensão de cerca de 300 metros da actual pista da Base Aérea nº 6, extensão essa a ser feita ou em aterro, ou em betão, ou numa combinação de ambos, com um custo nunca inferior a 70 milhões de euros e que, mesmo já entrando pelo estuário do Tejo, muito dificilmente poderá ter uma qualquer nova ampliação. Ora, estando desde modo coarctada à partida a sua expansão futura, a solução do dito Aeroporto do Montijo jamais poderá – ao contrário do que foi também pomposamente anunciado – durar 50 anos, como bem denunciou recentemente o antigo Bastonário da Ordem dos Engenheiros e antigo Presidente do LNEC – Laboratório Nacional de Engenharia Civil, Eng. Carlos Matias Ramos.

Assim, em vez do grande Aeroporto Internacional de Lisboa com dimensão para acolher as maiores aeronaves do mundo e designadamente as dos voos transatlânticos, situado na margem esquerda do Tejo, mas no actual campo de tiro de Alcochete, e da manutenção da Portela com carácter complementar e acessório relativamente àquele, permitindo, com este conjunto, atingir os 50 milhões de passageiros/ano – que é a solução que permitiria fazer da grande Lisboa e do nosso País a grande plataforma giratória dos voos internacionais e desde logo entre as Américas do Norte, do Centro e do Sul e a África, por um lado, e a Europa, por outro – aquilo que teremos, afinal, é uma Portela com mais lugares de parqueamento e eventualmente mais locais de embarque e desembarque mas com menos uma pista e sobretudo sempre limitada na sua expansão futura. E, por outro lado, um autêntico apeadeiro aéreo no Montijo, pintado de fresco e essencialmente para as Easyjets e Ryanairs!…

Ou seja, do ponto de vista do desenvolvimento estratégico do país – que necessita efectivamente de um grande aeroporto internacional situado na zona da grande Lisboa – a solução agora imposta a correr é não apenas profundamente errada, como em absoluto dilatória e, mais do que isso, gravemente comprometedora de uma solução correcta no futuro!

Mas é evidente que houve agora uma enorme pressa em impor esta decisão como um facto consumado, embora apresentando-a hipocritamente como estando ainda condicionada a dois factores: um EIA (Estudo de Impacto Ambiental) favorável (após o anterior encomendado pela ANA, realizado pela empresa Profícuo e, claro, favorável, ter sido literalmente arrasado pela Comissão de Avaliação em Julho de 2018, devido precisamente à sua gritante falta de qualidade técnica) e a autorização da ANAC – Agência Nacional de Aviação Civil relativamente ao encerramento da pista 17/35 da Portela. Como se algum de nós pudesse acreditar – como bem assinalou recentemente o Bastonário da Ordem dos Engenheiros, Carlos Mineiro Aires – que, após concluído e assinado o negócio com a Vinci (e anunciados os investimentos imediatos desta, no valor de 650 milhões de euros na Portela e de 500 milhões no Montijo), o referido Estudo de Impacto Ambiental possa vir a ser desfavorável à reconversão da pista da Base Aérea nº 6 em Aeroporto civil e a ANAC possa proibir o encerramento e destruição da pista 17/35 da Portela!…

Francamente, e não obstante toda a enorme propaganda feita, não somos tolos a ponto de acreditarmos na viabilidade de qualquer dessas duas hipóteses.

Mas o apego à verdade nua e crua impõe que então se pergunte se o país só tem, e muito, a perder com esta brilhante “solução”, quem afinal ganha, e gigantescamente, com ela?

Obviamente, a Vinci! À qual, em 2012, o governo Coelho/Portas atribuiu – a troco supostamente de 3,08 mil milhões de euros (sendo que a receita líquida desta privatização foi de apenas 1.1 mil milhões) para pagamento da dívida pública e entrega à Parpública – a titularidade da ANA – Aeroportos de Portugal e concedeu a gestão de 10 aeroportos, alienando desta forma a soberania aeroportuária do País durante meio século, ou seja, até 2062!?

A dita Vinci Airports, pertencente ao grande Grupo Vinci, ficando com a gestão de uma empresa que tinha, à altura da privatização, ganhos de 47%, e com sucessivos aumentos das taxas aeroportuárias (só nos 3 primeiros anos houve 9 desses aumentos!), já recuperou, nos primeiros 5 anos de concessão, 1/5 daquilo que pagou por aquela ruinosa privatização. O que significará que em menos de metade do tempo da concessão já terá recuperado a totalidade do investimento!

Além disso, a Vinci é acionista de referência (37% do capital) da Lusoponte, que é “apenas” a concessionária das Pontes Vasco da Gama, 25 de Abril e de Vila Franca de Xira. E também é, desde 2005, dona da Sotécnica, SA, uma conhecida empresa dos sectores da construção civil e das redes eléctricas e de comunicações.

Tudo isto significa que, com a operação agora anunciada e consumada, o governo do Sr. António Costa entrega um aeroporto público a uma empresa privada, a Vinci, à qual já tinha concedido a gestão de todo o espaço aeroportuário nacional (e de cujo contrato de concessão já constava a obrigação de construção de um novo aeroporto, mas que é agora entregue praticamente de mão beijada). E empresa privada essa que é simultaneamente dona de mais de 1/3 da titular da concessão da principal travessia que o serve (a Ponte Vasco da Gama), bem como das travessias do Tejo mais próximas (Ponte 25 de Abril e Ponte de Vila Franca).

E que agora seguramente engordará de forma ainda mais significativa os seus já fabulosos lucros através da actividade de construção das infra-estruturas ligadas quer ao próprio Aeroporto do Montijo, quer aos terminais fluviais.

Acresce a tudo isto, e em contraste com a gigantesca propaganda daquilo que convém ao Governo, o enorme secretismo sobre quais os exactos termos dos acordos e compromissos entretanto selados entre os governos de Passos Coelho e António Costa e a Vinci.

Mas então convirá recordar aqui que no contrato de concessão da ANA existe uma cláusula indemnizatória (25ª) profundamente favorável à Vinci, denominada “reequilíbrio económico e financeiro da concessão”. E que já na campanha eleitoral para as legislativas de 2015 o então Ministro da Economia António Pires de Lima expressamente referira ao jornal online“Setúbal na Rede” que o arranque da construção do novo aeroporto estava previsto para 2018 ou 2019, no Montijo, sendo as previsões de investimento de cerca de 700 milhões de euros. Isto, ao mesmo tempo que o Presidente do Conselho de Administração da ANA, Jorge Ponce Leão, declarava também expressamente e na mesma altura que havia um memorando de entendimento que, apesar de não estar assinado, garantia o Montijo como “consensual entre as forças políticas”, quer dizer, pelo menos entre o PSD, o CDS e o PS.

E deve-se recordar igualmente que já em 15/2/17 António Costa declarou que o Aeroporto do Montijo era “a solução que apresenta maior viabilidade” e que Pedro Marques, na qualidade de Ministro do Planeamento e das Infraestruturas, declarou na mesma altura que era “uma solução sólida e financeiramente comportável para o Estado”.

Ou seja, e em suma, vai ficando cada vez mais claro que aquilo que foi agora, com uma enorme campanha publicitária, apresentado como uma oportuna e excelente decisão do Governo de António Costa, tomada neste momento e em prol dos interesses do país, não terá afinal passado da execução de um “negócio da China” firmado há mais de três anos pelo governo Coelho/Portas com os grandes capitalistas da Vinci.

É precisamente por isso que houve tanta pressa em impor o facto consumado do dito negócio, reduzindo à categoria de anedotas inúteis o Estudo de Impacto Ambiental e a decisão da ANAC, e ocultando os números efectivos dos custos reais quer da opção Montijo quer, por exemplo, da sobreutilização da Ponte Vasco da Gama daquela decorrente.

E os “grandes números” apresentados para iludir incautos não passam afinal de autênticos truques publicitários. O objectivo de 72 movimentos/hora (ou seja, uma descolagem ou aterragem a cada 50 segundos) não pode ser apresentado – como enganosamente foi – como resultado directo e exclusivo da construção do aeródromo do Montijo, pois não só a construção de um qualquer novo grande aeroporto teria sempre um resultado multiplicador, aliás bem maior do que o do “apeadeiro” agora anunciado, como também esse resultado global teria, e terá, de resultar de outros dois factores igualmente relevantes: a modernização do actual sistema de gestão do espaço aéreo e a requalificação da Portela. Além de que o contrato de concessão celebrado em 2012 perspectivava 90 movimentos aéreos por minuto e a “solução” actual é duvidoso que consiga garantir sequer os referidos 72 (48 em Lisboa e 24 no Montijo), o que representa uma alteração daquele contrato.

E as mirabolantes projecções da criação de 9.000 a 20.000 novos postos de trabalho escamoteiam que essas estimativas se baseiam em meros “estudos” do próprio Ministério do Planeamento e Infraestruturas e feitos a partir de grandes aeroportos principais, e não complementares, menos ainda de aeródromos dedicados essencialmente às companhias low cost(as quais externalizam tudo quando podem, inclusive o próprio catering), pelo que os números reais, como é bem sabido, serão muito, mas mesmo muito, menores (cerca de 2.500), e teriam ainda de ter sempre em conta a subtracção do efectivo da Força Aérea (cerca de 900 militares).

Por todas estas razões, aliás, também a Associação Peço a Palavra – que tão bravamente batalhou contra a privatização da TAP! – tomou recentemente uma justa e clara posição de firme e fundamentada denúncia contra a opção do Montijo e as (nove!) miragens criadas pelo Governo para a procurar justificar (o artigo de opinião dos membros da direcção da APP pode ser consultado aqui).

Esta é, pois, uma péssima decisão para o país, mas um magnífico negócio para os grandes capitalistas, e seguramente também para os políticos que os acarinham e apoiam – relembre-se que Miguel Frasquilho, do PSD, e Bernardo Trindade e Lacerda Machado, do PS, estão na Administração da TAP, e que José Luís Arnaut, do PSD, e Luís Patrão, do PS, estão na Administração da Vinci.

É, aliás, muito elucidativo o que já sucedeu com a TAP. Onde, deve recordar-se, aconteceu algo de semelhante, com o governo do PS de Costa, contando com o beneplácito do BE e do PCP, a fazer de conta que o Estado recuperava o controle da Companhia (também estrategicamente muito importante para o nosso país, a sua unidade e o seu desenvolvimento) para afinal permitir que as grandes orientações estratégicas e a completa “canibalização” da TAP pela Azul do Sr. David Neeleman continuem livremente nas mãos deste. Com a contínua degradação do serviço da TAP, ao ponto de, em Janeiro deste ano, a consultora internacional OAG ter divulgado, no seu relatório anual de 2018, que a TAP foi a companhia aérea com mais atrasos do mundo, sendo que 42% dos voos por si operados chegaram ao seu destino com atrasos superiores a 15 minutos!

E situação igualmente escandalosa se está hoje a viver com a (manutenção da) privatização dos CTT, por exemplo.

Com este tipo de negociatas – onde, claro, o Ministério Público nunca consegue ver nada… – Portugal é hoje, e está também amarrado a sê-lo nas próximas cinco décadas, um país sem companhia aérea de bandeira, sem a gestão do seu espaço aeroportuário e com dois aeroportos (um principal e outro complementar) sem capacidade efectiva de expansão e, consequentemente, sem possibilidade de competir com Madrid pelo papel de grande centro das operações de voos comerciais, em particular transatlânticos.

É, pois, caso para dizer: com governantes “amigos” como estes, que Povo precisa afinal de inimigos?…

António Garcia Pereira

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