Durante três anos e meio, de 2011 a meados de 2014, este Governo teve a sua ação facilitada, devido às imposições da troika ao País e à governação. Não precisou de meditar, de ter ideias para o País, ou ter programa político pois o seu programa político limitou-se a ser o programa imposto pelos credores. Tivemos assim um governo em gestão corrente, incapaz de tomar medidas de fundo baseadas numa estratégia coerente de médio e longo prazo. Limitou-se a encaixar nos ditames da troika as opções particulares dos interesses que defende, das castas que alimenta e das clientelas que o suportam. Limitou-se, portanto, a gerir à vista, tomando opções casuísticas e desgarradas, já que o guião de fundo, já escrito, o dispensava de ser tecnicamente competente e politicamente autónomo.
Terminado o programa de assistência económica e financeira em 2014, já não havendo troika, pode perguntar-se qual é atualmente o programa do governo. Pois bem, o programa do governo em execução em 2015, ano de eleições legislativas, é tentar ocultar, tanto quanto possível, os escombros emergentes da destruição da economia que o programa da troika determinou e que este Governo tão zelosamente cumpriu. Algumas medidas recentes são elucidativas de tal estratégia.
Uma delas passa por descer artificialmente a taxa de desemprego, de forma a criar a ideia propagandística de que a retoma da economia e o crescimento económico já estão ao virar da esquina. Como fazem isso? Os desempregados, que estão inscritos nos Centros de Emprego e a receber subsídio de desemprego, estão a ser obrigados em massa a frequentar, entre outras, uma ação de formação que dá pelo nome pomposo de “Comunicação assertiva e técnicas de procura de emprego”. Caso se recusem é-lhes cortado o respetivo subsídio. Como se o desemprego das pessoas fosse originado pela sua inépcia em conseguir convencer os hipotéticos empregadores. Iludindo que se as empresas quiserem contratar, entre cem candidatos sem “técnica assertiva”, escolherão seguramente o menos entaramelado. Como se o desemprego existisse apenas porque há milhares de empregos disponíveis por aí, não os sabendo as pessoas encontrar, mais uma vez por inépcia. Depois de aderirem à erudita ação de formação, os desempregados são imediatamente retirados do sistema informático do Instituto de Emprego. Ou seja, se num dado momento forem pedidos ao IEFP dados sobre o desemprego, eles virão sistematicamente enviesados para baixo, podendo o governo alegar que as reformas estruturais estão a começar a ser um sucesso e o nível do desemprego a baixar de forma sustentada.
Outra das medidas tem a ver com a tentativa de reduzir os números da emigração, sobretudo de jovens, que o Governo receitou, defendeu como boa medida e impulsionou. É nesse contexto que anunciou o tal programa VEM, cujo objetivo é criar hipoteticamente condições para promover o regresso de emigrantes. Programa sem quantificação, sem horizonte temporal, sem orçamento mesmo. Atabalhoado nos números e nas práticas, insolente mesmo no guião propagandístico.
Complementando a ocultação, surge depois a técnica das listas e listinhas, para glosar o taxas e taxinhas de Pires de Lima. Aqui a ocultação não se reporta às estatísticas, mas sim à proteção das clientelas e dos seus privilégios, bem como à criação de um ambiente policial de cerco aos seus opositores. A lista de contribuintes VIP tenta dissuadir os trabalhadores do fisco de acederem aos dados fiscais dos notáveis no poder, encontrando situações comprometedoras que lhes possam minar ainda mais a credibilidade. E além disso, é uma mensagem de ameaça subliminar para a oposição: que não seja demasiado caustica e crítica para com a governação, porque para o Governo não existem restrições de acesso aos dados fiscais daqueles que se lhe opõem, e que, em qualquer momento, se podem transformar em caso político. A lista de pedófilos é também uma peça perversa desta estratégia, ainda que de uma forma encapotada. Desvia as atenções do essencial, a saber a obrigação do Estado em proteger as crianças, no caso de famílias disfuncionais e de situações de risco devidamente identificadas. É que, dessas obrigações, o governo demitiu-se despedindo recentemente os trabalhadores da Segurança Social que tinham a seu cargo a monitorização e seguimento dessas situações. Resta-lhe propagandear o seu amor à infância, de uma forma barata mas perigosa. Coerente com a sua sanha de tudo privatizar, a lista consubstancia mais uma privatização, desta vez da Justiça, encartando os pais das crianças de ímpetos justiceiros e contribuindo também, dessa forma, para o surgimento de um clima geral de intimidação e suspeita com que se pretende vergar o espírito crítico dos cidadãos.
Como resultado das políticas da troika, tão bem executadas, os números da economia, os reais, são os piores de sempre. O PIB caiu desde 2011 para níveis de 2000. O investimento regrediu para níveis dos anos 80 do século passado. A população envelheceu e os jovens emigraram às centenas. O risco de pobreza aumentou de forma galopante, bem como o número de pobres e sem-abrigo. A dívida pública, esse grande avatar da troika e deste governo, aumentou apesar dos impostos, sobretudo sobre os rendimentos do trabalho, terem também eles crescido até patamares nunca atingidos. Este é o país que resta depois de se terem aplicado as ditas “reformas estruturais”.
E é neste cenário que se vão desenrolar as próximas eleições. Mas é também neste cenário que o FMI e a Comissão Europeia, acusam o Governo de ter perdido o “espírito reformista”. Quer isto dizer o seguinte: 1) Que as tais “reformas estruturais”, não resolveram o problema da dívida pública, e muito menos os desequilíbrios estruturais da economia portuguesa. 2) Que o Governo parou com as ditas reformas porque, sendo elas não mais que um eufemismo para referenciar mais desemprego e miséria para as populações, não quer prossegui-las em ano eleitoral, sob pena de ser defenestrado para o inferno dos odiados. 3) Que as reformas irão ser continuadas após as eleições, caso esta maioria seja reeleita; ou seja virá mais devastação, miséria e destruição do país. 4) Que afinal os méritos, que o Governo reclama como seus, por as taxas de juro da dívida estarem em mínimos históricos e não termos dificuldades atualmente em nos financiarmos nos mercados internacionais, não podem por este ser reclamados, já que as reformas, como se vê, foram insuficientes e são para continuar.
Ou seja, o único facto positivo para a economia portuguesa, desde 2011 até hoje, consubstancia-se no facto, não de devermos menos, mas de podermos ir renovando a dívida com menores custos. Isto leva-nos a concluir que as dificuldades de financiamento de 2011 não decorreram da má gestão do país de que é acusado o governo de Sócrates. Nem as facilidades atuais de financiamentos são mérito da governação deste governo. Tal constata-se a partir do seguinte paradoxo: os fundamentais da economia portuguesa em 2011, ou seja, a capacidade produtiva real, eram superiores aos atuais e as taxas de juro eram incomportáveis. Ao invés, os fundamentais de hoje são bem piores mas as taxas de juro são baixíssimas. Aparentemente os mercados são pouco racionais na sua apreciação do risco de nos concederem empréstimos. Isto porque, taxas baixas deveriam estar associadas a baixo risco de incumprimento, e altas taxas a alto risco de incumprimento. O que mudou, então, que leva os mercados a considerarem mais baixo o risco dos empréstimos que hoje nos concedem, se os fundamentais da economia portuguesa estão bem piores? Vejamos.
A Europa está numa situação de deflação, com todos os perigos de disfunção económica que tal implica. Adiamento de decisões de consumo, devido às expetativas de queda futura dos preços, conduzem à queda do investimento e em consequência do emprego. É um ciclo não virtuoso de pauperização e declínio que é posto em marcha. A deflação, além do mais, aumenta o valor da dívida, em termos reais, relativamente ao valor diminuído do produto da economia, medido este a preços inferiores. Ou seja, num cenário de deflação, a dívida pública aumenta, mesmo que o défice público seja zero, não se contraindo, portanto dívida nova.
E é neste cenário de deflação que o BCE teve que avançar com o programa de compra de dívida pública, vulto QE, quantitative easing, iniciado há poucos dias. Apesar das limitações do programa, em termos de provocar a chegada de liquidez às empresas que possa gerar investimento, ele tem a vantagem de diminuir o risco associado às dívidas públicas dos Estados da UE, e por isso mesmo, mantém e até impulsiona a tendência à baixa das taxas de juro. E isto quase independentemente da situação específica de cada uma das economias em presença. O intermediário financeiro que compra dívida pública, passou a ter a garantia que a pode negociar sem estar sujeito a percas decorrentes de um eventual default, já que a pode sempre vender ao BCE, mais tarde ou mais cedo, enquanto durar o programa de QE.
Ora, é também neste cenário que a dívida pública portuguesa, e de outros países periféricos, já está a ser reestruturada, ainda que o Governo e a Comissão europeia digam que não se deve falar em reestruturações. A ação do BCE, diminuindo o risco associado às dívidas, e consequentemente fazendo baixar os seus custos para os emitentes, vai permitir que possam ocorrer reescalonamentos das maturidades, emitindo-se nova dívida com uma maturidade mais longa e taxas mais baixas, para resgatar dívida mais onerosa e de prazos mais curtos. Foi isto exatamente o que aconteceu com o resgate de metade do empréstimo a Portugal feito pelo FMI e que, parece, que iremos pagar em breve.
Qual o perigo, então, desta situação? O perigo decorre do facto do QE não poder durar eternamente. Até ao momento está previsto que irá durar até Setembro de 2016, ao ritmo de 60000 milhões de euros por mês, cabendo a Portugal uma percentagem de 2,5% desse montante. No limite, se a liquidez não chegar à economia e às empresas, gerando novos investimentos e emprego, apenas terá beneficiado mais uma vez o setor financeiro que terá aliviado os seus balanços de dívida pública que se poderá vir a revelar impagável a médio ou longo prazo. No limite, e se não forem obtidos os resultados pretendidos, como sejam o afastamento do cenário deflacionário, a retoma do investimento e dos níveis do emprego, é o Euro que irá colapsar e a Europa que, no final, será confrontada por um retrocesso civilizacional de proporções inimagináveis.
Costuma dizer-se que a História não é feita por atores isolados, mas sim pelo coletivo dos povos, por muito importantes que sejam os papéis de certos atores. Mas também não há História que se faça sem atores.
Como disse, é neste cenário que se irão desenrolar as próximas eleições legislativas. Se o País não tem força, nem peso político para alterar as políticas europeias que o tornam refém de programas de empobrecimento e de agiotagem, e que contextualizam o presente e o futuro das novas gerações, ao menos que tenha desiderato e empenho para mudar os atores políticos que tem implementado, e se comprazem, com esse destino de escravidão e anomia que tem sido imposto como inevitável.
Assim novos atores se perfilem e sejam credíveis. E que sejam também consequentes nas suas propostas de combate por um outro futuro. E por uma outra esperança.
(*) Estátua de Sal é pseudónimo dum professor universitário devidamente reconhecido pelo Noticias Online.
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