A encruzilhada do movimento sindical

Segundo dados recentemente publicados, o número de Sindicatos criados desde o início de 2011 é já de 52, com duas características muito curiosas: a maioria deles foi constituída já no tempo do Governo de António Costa, tendo sido atingido o número mais alto em 2018. E desses 52 Sindicatos, 47 não estão filiados em qualquer das centrais sindicais existentes, 4 filiaram-se na UGT e 1 na CGTP.

Ora, estes são números que deveriam merecer uma atenção e uma reflexão aprofundada, desde logo por parte do próprio mundo sindical e dos seus dirigentes, bem como dos responsáveis políticos. Infelizmente, porém, e como é habitual, não foi isso que sucedeu. Com os políticos (por razões óbvias quanto aos dos Partidos que apoiam o actual Governo) a ignorarem por completo o assunto e os dirigentes da UGT e da CGTP a desvalorizarem por completo o assunto e a sustentarem que, pelo contrário, a “sua” central sindical como que viveria no melhor dos mundos. 

Importa por isso e desde logo atentar nos dados objectivos que são relevantes e não procurar varrê-los para debaixo do tapete.

Antes de mais, a taxa de sindicalização em Portugal, tal como é assinalado no recente estudo de Frederico Cantante – “O mercado de trabalho em Portugal e nos Países Europeus” –, é muito baixa, encontrando-se o nosso País nesse capítulo na metade inferior do conjunto dos países da OCDE. Assim, as estimativas da mesma OCDE para os anos de 2015 e de 2016 apontam para que, enquanto em Portugal essa taxa, no tocante ao conjunto dos trabalhadores privados e públicos, será de 16,2%, no Luxemburgo ela é de 33,7%, na Itália de 35,7%, na Dinamarca de 65,4% e na Suécia de 66,8%. Mas, se formos atentar nos dados administrativos dos chamados “Quadros de Pessoal” relativos a Portugal, facilmente se constata que, quanto aos trabalhadores do sector privado, aquela taxa de sindicalização é ainda mais baixa, ou seja, de apenas 8,3%. Com alguma expressão nas grandes empresas (18,1%), bastante baixa nas médias empresas (7,6%) e praticamente residual nas pequenas (3,1%) e, sobretudo, nas microempresas (1,0%).

Por outro lado, a taxa de cobertura de trabalhadores pela contratação colectiva anda, normalmente, muito associada à já referida taxa de sindicalização, ainda que com algumas excepções (de que o caso mais paradigmático é o da França onde essas taxas são bastante divergentes).

 Ora, se olharmos para as estatísticas oficiais – que podem ser examinadas mais detalhadamente no Relatório da OIT “Trabalho digno em Portugal: 2088-2018” – verificaremos desde logo que a percentagem do número de trabalhadores potencialmente abrangidos por convenções colectivas relativamente ao número total de trabalhadores, taxa essa que era de 48,9% em 2008, sofreu uma descida abrupta, sobretudo a partir de 2012 – com as reformas laborais da Tróica – tendo chegado a apenas 6,8% em 2014 e tendo recuperado a partir de 2015 para 13,2%, mas encontrando-se ainda num valor muito baixo (20,8%, ou seja, apenas 1/5 do total dos trabalhadores, em 2017).

Evolução semelhante se verificou relativamente ao número de novas convenções colectivas de trabalho e das respectivas renovações publicadas no BTE-Boletim do Trabalho e Emprego, do Ministério do Trabalho e ao número de trabalhadores efectivamente abrangidos por ela. Assim, o número de novas convenções e renovações, que era em 2005 de 252, chegou a ser em 2012 de apenas 85, havendo atingido em 2017 o número de 208. E o número de trabalhadores abrangidos por elas foi, respectivamente em 2005, 2013 e 2017, de 1.121 mil, 241 mil e 821 mil. 

Finalmente, o número de pré-avisos de greve apresentados, que baixara – seguramente por virtude das ilusões acerca do Governo de José Sócrates de 2009 – nesse mesmo ano para 376, subiu em 2010 para 978 e em 2013 para 1334, desceu em 2016 para 488 e subiu em 2017 para 613. Mas se formos verificar o número de greves que, após a apresentação do respectivo pré-aviso, não foram suspensas ou canceladas e se realizaram mesmo, constatamos que esse número é quase irrisório: 123 em 2010, 119 em 2013 e 76 em 2016!

Quer tudo isto dizer que o violento ataque levado a cabo pelo Governo Coelho – Portas contra os trabalhadores e os seus direitos, e em particular contra a contratação colectiva, a mando da Tróica e por vezes indo mesmo além dela, provocou, efectivamente, uma enorme rarefacção da contratação colectiva e da acção sindical.

Mas, não obstante a gravidade dessas medidas aprovadas pelo Governo e pelo Parlamento e os estragos por elas produzidas, as lutas colectivas efectivamente levadas a cabo até ao fim foram muito poucas. E assim, em termos absolutos, em 2013 apenas 8,9% das greves (que haviam sido convocadas por Sindicatos maioritariamente filiados na UGT ou na CGTP) é que acabaram por se realizar. E, por outro lado, o número absoluto de greves realizadas no tempo do actual Governo, e em larga maioria convocadas pelos mesmos Sindicatos, representam, afinal, os valores mais baixos de sempre, da ordem das 7 dezenas e meia apenas.

Ora, o que todos estes dados inequivocamente demonstram é uma particular e crescente descrença de sectores cada vez mais amplos dos trabalhadores relativamente aos Sindicatos tradicionais (os da UGT e da CGTP) e à sua forma de actuar, quer face ao anterior Governo, quer sobretudo face ao actual, forma de actuar essa que se pode caracterizar por muito barulho, muita ameaça, alguns pré-avisos de greve, ou seja, muita parra mas bastante pouca uva, isto é, pouca luta e quase sempre desenvolvida de forna pouco firme e pouco consequente.

E se os Sindicatos actualmente existentes não se modificam nem mudam de agulha, os trabalhadores vão – tal como precisamente já estão a ir agora – em busca de outras organizações. 

É claro que os Sindicatos são uma importante e imprescindível criação histórica dos trabalhadores, determinada pela justa compreensão de que, na luta contra a escravidão assalariada, as suas principais armas são a sua organização e a sua unidade. 

E por isso mesmo devem ser desmascarados e rejeitados todos os discursos que, sob a capa das críticas à actuação dos Sindicatos, vêm pregar a sua pretensa desnecessidade histórica, se não mesmo a sua extinção formal (tal como, aliás, se verifica, paralelamente, relativamente aos partidos políticos).

Os Sindicatos (e os partidos políticos) são indispensáveis, sem eles não há Democracia e aqueles que, pescando nas águas turvas do descontentamento, clamam pelo seu desaparecimento, o que verdadeiramente pretendem é impor a lógica ditatorial do Sindicato (e do partido) único, ou seja, a inexistência de direitos e liberdades.

Mas a verdade incontornável é que o movimento sindical tem mesmo de reflectir seriamente sobre o que é hoje o mundo da produção capitalista e as novas preocupações, as novas palavras de ordem e as novas formas de organização, de mobilização e de luta que essa reflexão necessariamente impõe. 

Com efeito, hoje vivemos a época do capitalismo financeiro global, o qual tudo detém e tudo controla, mas não produz valor. Que tem estado a fazer passar o essencial da produção, designadamente da produção industrial, para os países ditos emergentes (como a Correia do Sul, Índia, Brasil, etc.) onde é mais barato produzir e onde actualmente se assiste a processos de industrialização acelerada, com a vinda de massas de camponeses expropriados das suas terras para “cinturas industriais” próximas dos grandes centros urbanos, aí trabalhando em condições miseráveis, similares àquelas por que passaram no século XIX os países de economia capitalistas mais avançada como a Inglaterra e a Alemanha. 

E ao mesmo tempo que faz assim diminuir o número de proletários industriais nestes últimos Países (ditos “do Centro”), faz crescer nestes o número de dois grupos cada vez mais numerosos, de novos proletários. Por um lado, os trabalhadores dos saberes mais qualificados (como os médicos, os arquitectos, os engenheiros, os bancários, os técnicos de informática, etc.), sujeitos a um processo crescente de expropriação desses seus saberes, bem como de precarização e de proletarização; por outro, os trabalhadores, sobretudo jovens, que, ainda que muito qualificados, não conseguem – nem, muitos deles, conseguirão nunca – arranjar um emprego, muito menos compatível com essas suas qualificações. E isto não porque na sociedade não existissem trabalho e meios para todos, mas porque as exigências dos enormes lucros do grande capital financeiro assim o exigem e impõem, fazendo com que as novas tecnologias, em vez de permitirem jornadas de trabalho mais leves e mais curtas para um maior número de trabalhadores, sirvam apenas para intensificar brutalmente os ritmos de trabalho de quem ainda tem emprego. 

Deste modo, enquanto nos tais Países ditos emergentes cresce um proletariado industrial ultra-explorado e oprimido, esse proletariado industrial “clássico” decresce (ainda que continue a ser um sector numericamente relevante) nos Países chamados do Centro, ao mesmo tempo que nestes cresce o número dos novos proletários, sejam os proletarizados e expropriados dos seus saberes, seja a multidão dos “inempregados”. 

Todos estes sectores integram assim uma classe operária que é mundial e que transporta em si a capacidade de operar as grandes transformações políticas, sociais e económicas que se vão revelando como cada vez mais necessárias e urgentes.

Com um sistema de capitalismo financeiro global, com organizações empresariais funcionando cada vez mais – por meio precisamente das potencialidades das novas tecnologias, em particular das de comunicação e informação – em rede ou em constelação, com cada vez menos concentrações ou cinturas industriais – que até aqui, precisamente, facilitavam a organização e a acção colectiva, designadamente a sindical – e cada vez mais uma miríade de estruturas organizativas geograficamente dispersas e com uma classe operária com as características já indicadas e com uma natureza cada vez mais global, os Sindicatos do século XXI, se não se querem ver rapidamente ultrapassados por novas organizações de trabalhadores – que estes rapidamente tratam de criar quando verificam que as tradicionais já não lhes servem – têm de atentar muito seriamente nesta realidade. 

Têm, assim, de saber representar todos os trabalhadores, inclusive aqueles que já foram retirados do mercado de trabalho (porque estão desempregados ou reformados), bem como aqueles que ainda não lá entraram, e provavelmente não entrarão nunca, em vez de, como agora largamente sucede, os Sindicatos corporativamente atenderem apenas àqueles que ainda estão no activo.

Como têm de saber chegar junto de todos os trabalhadores independentemente do tipo de vínculo através do qual o seu trabalho é contratado, chegando assim, por oposição à chamada “terciarização” capitalista, aos trabalhadores a recibo verde, aos que têm contratos ditos de estágio ou de formação e ainda àqueles que são actualmente contratados – como é cada vez mais frequente nas relações de trabalho em Portugal – através de sociedades comerciais, designadamente unipessoais, que são forçados a constituir para poderem ter um ganha-pão. Criando-se assim o disfarce quase perfeito de uma pretensa prestação de serviços entre sociedades comerciais como forma de mascarar uma relação de trabalho verdadeiramente dependente.

Os Sindicatos do século XXI têm também de saber unir todos os trabalhadores, quer a nível nacional, quer a nível internacional (tal como os estivadores, por exemplo, têm tratado de fazer, derrotando as tentativas patronais e governamentais de tornear as suas lutas pela deslocalização da actividade para outras paragens). E é nesse sentido também que são absolutamente negativas e mesmo fatais certas práticas de Sindicatos da CGTP e da UGT (como os do sector dos professores) que aceitam a exclusão da mesa de negociações, imposta pelo Patrão, neste caso pelo Patrão / Governo, de um outro Sindicato (no caso, o STOP) só porque este tem ideias divergentes sobre as medidas e formas de luta a adoptar. Ou se calam quando o Governo decreta requisições civis ou lança as suas polícias sobre trabalhadores em greve, com base em manipulações e pretextos absolutamente fabricados (como sucedeu com as mais recentes greves dos enfermeiros).

Mas sobretudo aquilo que os recentes números da criação de novos Sindicatos claramente revelam é que um número crescente de trabalhadores se cansou – e bem! – de conversas fiadas, de vigílias, de cantorias e outras formas de luta “fofinhas”, de “entradas de leão”, com ameaças tonitruantes à entrada de reuniões, para verdadeiras “saídas de sendeiro” no final das mesmas.

Num País como Portugal, que já tirou cerca de 20 mil milhões de euros dos bolsos dos contribuintes para os meter nos Bancos falidos por gigantescas fraudes financeiras (cujos responsáveis, aliás, se passeiam por aí alegre e impunemente) e em que se prevê que ainda possa ser retirado outro tanto nos próximos anos; ou em que um trabalhador ganha metade de um seu camarada espanhol, 1/3 de um francês ou 1/4 de um dinamarquês, mas tem de suportar uma das maiores cargas ficais de toda a Europa, é absolutamente inaceitável, e tem um clara natureza de classe, o argumento de que “não há dinheiro” para reparar, mesmo que só parcialmente, algumas das maiores atrocidades anti-trabalhadores praticadas sobretudo ao abrigo do chamado “memorando de entendimento” com a Tróica. 

Como é também absolutamente inaceitável a persistente recusa do actual Governo em revogar algumas das mais sinistras leis laborais do anterior Governo, como a das alterações ao regime dos despedimentos colectivos, por extinção do posto de trabalho ou por inadaptação.

E se os trabalhadores entendem que uma reivindicação básica como a revogação desse tipo de medidas é justa, também não é de todo aceitável que aqueles que dizem representá-los joguem, afinal, um autêntico “jogo de máscaras” consistente, muitas vezes, em fazerem de conta que se luta, mas, afinal, tal não se faz e antes se trata é de procurar capitalizar mais uns quantos votos para as próximas eleições. Como sucede, por exemplo, com greves decretadas, mas depois sistematicamente suspensas; com greves à sexta-feira à tarde sem ocupação dos locais de trabalho, simplesmente mandando os trabalhadores mais cedo de fim-de-semana; com abaixo-assinados; com vigílias e baladas à porta dos Ministérios, etc., etc., etc.

Por isso, aliás, é que praticamente todas as greves com mais impacto dos últimos tempos foram levadas a cabo por Sindicatos quase todos de criação recente e não ligados à CGTP ou à UGT. E de nada valerá a estas não quererem compreender o que se passa ou alinharem em ataques governamentais ou em golpes sem princípios contra esses novos Sindicatos, ou até abrirem o caminho para novas reformas laborais, restringindo ou até inutilizando direitos como o direito à greve ou o direito à associação sindical. 

Este é, pois, e cada vez mais, um momento de verdadeira encruzilhada para o movimento sindical (português e não só) e os seus dirigentes: ou compreendem para onde, como e para mobilizar quem, devem caminhar e actuar, colocando-se na primeira linha dos grandes processos de transformação de um mundo cada vez mais injusto e desigual, ou serão inapelavelmente ultrapassados pelo decurso dos acontecimentos e justamente substituídos por novas organizações que sirvam verdadeira e consequentemente os interesses de quem, de seu, só tem a sua força de trabalho!

António Garcia Pereira

Um comentário a “A encruzilhada do movimento sindical”

  1. Claríssima análise do problema em causa. Obrigado António GP

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