“Geralmente os governos só dispõem de dois meios para vencer as resistências que os cidadãos lhes opõem: a força material que encontram em si próprios e a força moral que lhes conferem as decisões dos tribunais”
(in, “Da democracia na América”, Alexis de Tocqueville)
Presentemente, desde o vigésimo quinto dia do mês de Abril de 1974, em Portugal não se assiste a demonstrações físicas da “força material” do governo, ou se quiser o meu Caro(a) Leitor(a), do Estado português.
Independentemente da narrativa de alguns, da desesperada e mui egoísta narrativa de alguns, não existem presos políticos em Portugal.
Os casos de violência exercida pelo Estado (a física, entenda-se) são episódios residuais, prontamente denunciados e propalados pelos “média”, rapidamente repudiados pelos concidadãos da vítima.
Conquanto ainda “estejamos a viver” uma democracia muito jovem, a “ força material” do Estado encontra-se cerceada pelo exercício pleno da democracia.
Mas, jovem como é a Democracia Lusa, apenas aprendeu, como as crianças de tenra idade, que não devem mexer nas tomadas eléctricas existentes na casa, somente porque os progenitores dizem que é mau, e faz “dói-dói”, existindo castigo se o fizerem – o “táu-táu” – desconhecendo as razões reais, não percebendo o conceito de electricidade e o perigo real da mesma!
Enquanto que no exemplo ofertado antes a dificuldade reside no estádio primário do desenvolvimento cognitivo do infante, no caso da nossa consciência cívica, democrática, o entrave, o problema, pode ser encontrado no nosso lusitano desprezo pela problemática alheia, no orgulhoso desprezo pelo normativo legal, sinónimo de esperteza e desenrascanço virtuoso, assim como na falta de esclarecimento por parte das instituições legais ou no fraco exemplo que as mesmas ofertam.
As decisões dos tribunais, uns dos meios que o governo (Estado) dispõe para vencer as resistências dos cidadãos, não conferem a “força moral” indispensável para o comum cidadão se rever no decidido ou para o mesmo emular o exemplo.
Na edição de 30 de Julho de 2015, do jornal, “O Mirante”, na sua secção “Sociedade”, pode-se ler o seguinte título: “Acusado de homicídio que esteve em prisão preventiva queria indemnização do Estado”
“[…] O jovem acusado de ter provocado a morte […] queria que o Estado lhe pagasse uma indemnização de 56.790 euros pelo tempo que esteve em prisão preventiva e não ter visto os filhos nesse período. Mas a Juíza da Instância Central Cível em Santarém julgou o pedido improcedente. […] entendeu que a medida de coacção aplicada não foi injustificada apesar de num recurso o Tribunal da Relação de Évora ter absolvido o arguido ao alterar a qualificação do crime para ofensas à integridade física. […] A Juíza ao decidir não dar provimento ao pedido de indemnização justificou que «se a prisão preventiva for efectuada dentro dos limites e requisitos fixados por lei, não pode deixar de ser entendida como uma medida considerada necessária, correspondendo ao chamado dever de cidadania» […]”
Dever de cidadania?!
Estar preso por um crime que não se praticou é um dever de cidadania?!
Ser isolado, alienado, despersonalizado, sujeito a passar fome, frio, condicionamento psicológico e físico, separado dos seus, é um dever de cidadania?! Sujeitar-se ao erro do julgador, à morosidade da execução da Justiça, é um dever de cidadania?!
Creio que, como já escrevi antes, o nosso sistema de Justiça é inquisitorial, arbitrário, com inegável influência judaico-cristã: tens de ter paciência como Job, o tempo para arrependimento, o sofrimento dos justos é provação, a purificação, o pranto eterno e a misteriosa Justiça de Deus. E no final, mesmo que tudo não tenha passado de um erro do julgador, tens de adulterar um pouco as palavras do Filho: “Perdoai-lhes Senhor, porque eles afirmam que sabem o que fazem!” Ah! E não te esqueças de oferecer a outra face e mostrar humildade!
“[…]O arguido acabou por ser condenado em Julho de 2012 a dois anos e meio de prisão com pena suspensa por igual período. O condenado recorreu e em Maio de 2013 foi absolvido. Nas alterações das qualificações dos crimes, de homicídio qualificado, a ofensas à integridade física qualificada e, por último, ofensas à integridade física, estavam divergências sobre as conclusões da autópsia […]”
A “força moral que confere as decisões dos tribunais”…
Ronald Dworkin, na sua obra, “Justiça para ouriços”, escreve:“[…] Enfatizo aqui, bem como ao longo de todo o livro, a distinção entre ética, que é o estudo de como viver bem, e moral, que é o estudo de como devemos tratar as outras pessoas […]”
Que “força moral” possuem as decisões dos tribunais portugueses? Como está a Justiça a tratar os cidadãos portugueses?
Eu considero que a Justiça Lusa trata de forma negligente o cidadão português, chegando ao ponto de o maltratar!
Dworkin apresenta um exemplo feliz na sua obra: Procusto, filho de Poseidon, tinha por costume colocar numa cama que possuía, os convidados da sua casa. Como está isto relacionado com a nossa Justiça? Deixe-me terminar, Estimado(a) Leitor(a)! Independentemente da estatura física, Procusto, com o objectivo de caberem ou preencherem o espaço do doloroso leito, esticava ou cortava os convidados, até estes apresentarem a medida certa!
Não foi isso que a Justiça nacional fez com o Armindo Castro (preso pela prática de um homicídio confessado por outrem) que o manteve preso, inocente, durante dois anos?
Não esticou a Justiça o jovem Leandro, que saboreou de novo a liberdade passado cerca de um ano?
No caso que Vos apresento, o arguido foi “esticado e cortado”, mesmo existindo divergências na investigação, ao nível das perícias, não lucrando ao mesmo, não existindo presunção de inocência; esticai ou cortai, cortem até termos algo. A prisão preventiva não existe para arrancar a confissão ou aplicar pena antecipada! Ou será o contrário!
O meu Caro(a) Leitor(a), sabe qual é o caso, mediático, onde a Justiça está a ser aplicada “à letra”, não ferindo a presunção de inocência, conceito que o legislador colocou na lei para evitar abusos de Poder do Estado? Consegue responder?
É o caso do Ricardo Salgado!!!
Como? É simples. Ao contrário de outros – antes de recusarem a pulseira/anilha – o “dono disto tudo”, ou “ex-dono”, como queiram, foi indiciado e presume-se inocente. Não foi sujeito a prisão preventiva porque os três conhecidos pressupostos – perigo de fuga, perturbação de inquérito, continuação da actividade criminosa/perturbação da ordem pública – necessitam de uma fundamentação muito sólida, justificada e comprovável, por forma a derrubar a força da “presunção de inocência”, escudo protector das liberdades, direitos e garantias do cidadão comum, que se vê confrontado com o “Mastodontico Estado”, contra o “Leviatã Horbesiano”.
Claro que pode ser colocada a questão: “Então venceu este escudo a força das evidências em outros casos?”
No homicida que mata a mulher ou o vizinho? Sim: perturbação da ordem pública, diria mais, protecção do próprio homicida, pois em liberdade corre o risco de represálias!
No caso do pedófilo? Óbvio: protecção do mesmo e da ordem pública, assim como das vítimas!
E no caso do Espírito Santo, com casas no estrangeiro e disponibilidade financeira para se eximir à Justiça, fugindo?
É tão difícil provar/demonstrar a “intenção de fuga” que não é possível invocar esse pressuposto da prisão preventiva. Se por acaso numa intercepção telefónica, se escutasse o arguido a marcar as passagens aéreas ou a afirmar que era sua intenção fugir, então existe perigo de fuga, inegavelmente!
Nova dúvida inquietante: “Então como é que tantos arguidos apresentam perigo de fuga?”
Possivelmente é mais fácil imputar ao Inspector João de Sousa, ao Manuel ou ao “Zé” (não o Sócrates porque a Relação já disse que não existe!) do que ao Dr. Ricardo Salgado, porque a relação de poder/influência entre o Estado e este particular é equivalente ou mesmo desequilibrada (para o lado do segundo!).
Afinal, a Lei é cumprida ou não? É, mas só para alguns; o que não deixa de ser correcto.
Claro que a “força moral” das decisões do tribunal é semelhante à de um Sansão careca!
É óbvio que o Dr. Ricardo Salgado não vem denunciar nada disto, algo que só lhe ficava bem, depois de ter reconhecidamente lesado muitos concidadãos. É notório que ao recluso 44 só lhe interessa fazer aquilo que moralmente é correcto como estratégia pessoal, e não simplesmente porque está certo!
Perde-se assim uma oportunidade soberana para dar maior visibilidade aos desequilíbrios da Justiça, às idiossincrasias da lei Lusa, às injustiças do sistema e seus operadores. Tudo porque a dimensão ética e moral dos agora visados é diminuta, porque apesar de, como afirmava Santo Agostinho, inter faeces et urinam nascimur (nascemos todos entre fezes e urina) é mais do que evidente que quando a Justiça expele as suas substâncias excrementícias, ao nosso lado, na cloaca, não estão todos aqueles que a senhora que segura a balança, e dizem ser cega, alcança!
Reconheço ainda que o que nos oferta como exemplo os tribunais, não reforça em nada a compreensão das decisões e a idoneidade e equidade do decidido.
Vejamos! A Ricardo Salgado é aplicada a medida de coacção de prisão domiciliária com escolta policial, porque existe perigo de fuga e perturbação do inquérito (aquisição e conservação da prova) e todos nós, humildes concidadãos, uns, felizmente a maioria, em liberdade, outros na cloaca em reclusão, observamos incrédulos o privilegiado cidadão, presumivelmente inocente (como deve ser considerado à luz da lei) a ser transportado no seu carro particular, para a sua residência. Para a sua residência porque Ricardo Salgado cumpriu o decretado, de sua livre e espontânea vontade, porque poderia ter dito ao seu motorista para o levar ao aeródromo de Tires, e fazendo Justiça ao apelido da família, consubstanciar-se noutro lugar!
Foi também por vontade própria, resultado de contrição verdadeira, que durante o trajecto, recorrendo ao aparelho telemóvel, ou mesmo antes, durante um ano, nunca industriou terceiros no sentido de ocultarem ou destruírem provas!
Como se verifica, a Justiça portuguesa não é muito pródiga nos bons exemplos, não é generosa com todos, equitativa.
As decisões dos tribunais portugueses não encerram conteúdo moral, apenas colocam em local fechado alguns, não procuram a verdade material, apenas desejam confirmar a “verdade” esperada pelos próprios, não desafiam as suas premissas, pelo contrário, procuram somente o argumento que as confirme.
E eu que esperava tanto do José e do Ricardo! Expectava que ambos, inocentes, se indignassem com tudo isto, com o estado da Justiça, para o qual, directa ou indirectamente, pois uns patrocinaram outros, e outros legislaram para “uns”, tanto contribuiram.
Tenho sentido um constante sentimento de desilusão. Mas nunca se perde tudo, retira-se sempre algo de positivo; atendendo à indiferença dos decisores revisitei Brecht. Quando a realidade é dolorosa, temos sempre a poesia:
“Primeiro levaram os negros
Mas eu não me importei com isso.
Eu não era negro.
Em seguida levaram alguns operários
Mas não me importei com isso.
Eu também não era operário.
Depois prenderam os miseráveis
Mas não me importei com isso.
Porque eu não sou miserável.
Depois agarraram uns desempregados
Mas como tenho o meu emprego
Também não me importei.
Agora levam-me a mim
Mas já é tarde.
Como eu não me importei com ninguém.
Ninguém se importa comigo.”
Meu Caro(a) Leitor(a), atente no poema, indigne-se, fale, participe, manifeste-se, pois nunca se sabe quem virá a seguir!
Publicado originalmente no blog Dos dois lados das grades da autoria de João de Sousa
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