A fuga de Rendeiro e duas falências: a do Banco e a da Justiça

A esperteza

Apesar de já contar com três condenações[1], uma delas (de mais de cinco anos) já definitiva, a Justiça Criminal portuguesa permitiu que João Rendeiro permanecesse com a medida de coacção mais leve (termo de identidade e residência), a qual apenas obriga o arguido a informar o Tribunal se se ausentar da sua residência habitual por mais de cinco dias, devendo nesse caso indicar a morada do seu paradeiro.

Ora, sem ter tido de entregar o passaporte e sem qualquer restrição de movimentos, Rendeiro pôde, com a maior desfaçatez, fazer uma comunicação ao Tribunal informando simplesmente que se iria deslocar por uns dias a Londres e indicando como sua morada na capital londrina a da embaixada ou consulado de Portugal!

E sem que nada disto suscitasse dúvidas ou reservas por parte de qualquer autoridade Judiciária – a começar pelo Ministério Público, sempre tão ferozmente empenhado em promover a aplicação a pilha-galinhas da medida de coação de prisão preventiva – uma vez em Londres, Rendeiro apanhou tranquilamente um voo para um dos paraísos da alta criminalidade financeira, tanto pelos regimes de offshores (para onde Rendeiro terá entretanto transferido mais de 20 milhões de euros desviados do Banco[2]) como pela inexistência de acordos de extradição por este tipo de criminalidade.

No dia da sua última condenação (28/09), com as mesmas desfaçatez e arrogante sensação de impunidade, publicou no seu blog uma mensagem em que se afirma “injustiçado” (após as três condenações) e que a decisão de fugir foi “difícil”. E, assim, sem um pingo de vergonha ou de arrependimento, prepara-se agora para usufruir dos milhões de que, à custa de clientes e trabalhadores do BPP, se apropriou.

Quem é João Rendeiro?

Deixemos que ele se apresente a si mesmo:

“É nos momentos difíceis que devemos reagir e avançar ainda mais. Desde que se tenha dinheiro, claro. É por isso que tenho sempre a preocupação de ter munições de reserva para estar bem em qualquer situação.” 

No livro João Rendeiro – Testemunho de um banqueiro, escrito por Myriam Gaspar, jornalista da Revista “Sábado”, prefaciado por João Cravinho e apresentado pelo próprio João Rendeiro a 24/11/2008 no Instituto Superior de Economia e Gestão (ISEG), livro este que contou com uma enorme publicidade por parte do mundo jornalístico, em particular da área da economia, tendo Rendeiro sido descrito como “um dos investidores mais respeitados do mercado financeiro português”.

As pessoas estão muito preocupadas com o meu património, se é que estão, eu devo dizer-lhes que eu não estou.”

“Eu escrevi no meu primeiro livro que deixaria à sociedade a minha fortuna, portanto, se alguém está preocupado com isso, tenho a impressão que está preocupada com coisas erradas, está preocupada com a mesquinhez…”

Numa curiosa entrevista dada em 7/4/2021 a jornalistas da TVI e do Jornal Eco. 

O que João Rendeiro agora fez trata-se de um novo insulto à inteligência e às dificuldades da grande maioria dos portugueses, pois que este desfecho era perfeitamente evitável, face às leis em vigor, para tanto bastando que juízes e magistrados do Ministério Público quisessem saber do mais que fundado justo receio de fuga de um arguido triplamente condenado a pesadas penas de prisão, podre de rico e com a óbvia possibilidade de facilmente realizar viagens para o estrangeiro, e tivessem promovido a alteração da respectiva medida de coacção mais simples e leve para outra, que nem tinha de ser necessariamente a da prisão preventiva, mas, por exemplo, a da obrigação de permanência no domicílio (“prisão domiciliária”) ou até a da entrega do passaporte e da proibição de viajar para o estrangeiro.

Mais uma constatação de que existe, efectivamente, uma justiça para ricos e poderosos e outra para pobres e fracos…

As reacções 

E como reagiram as entidades públicas com alguma espécie de competências ou responsabilidades nesta matéria? Claro que, habituadas, como errada e infelizmente estão, a não terem que prestar contas a ninguém, logo trataram de “sacudir a água do capote”.

Ministra da Justiça – tão silenciosa noutras ocasiões – logo se apressou a invocar que, se a fuga de Rendeiro “gera grande desconforto social”, a questão não era com ela, mas com os Conselhos Superiores da Magistratura (CSM) e do Ministério Público (CSMP). 

CSM tratou de ilibar a Juíza do último processo de João Rendeiro com o “argumento”, coincidente com o do Sindicatos dos Juízes, de que não haveria indícios do risco de fuga!?

E os sindicatos de juízes e de procuradores logo mostraram com total clareza aquilo em que definitivamente se transformaram, ou seja, em medievais instituições corporativas, incapazes de qualquer esforço reflexivo e menos ainda de qualquer vislumbre de autocrítica. 

Presidente do Sindicato do Ministério Público, o incontornável Dr. Adão Carvalho, cometeu a proeza de achar que questões como estas se resolvem pela (renovada) restrição dos direitos dos cidadãos, clamando pelo fim do efeito suspensivo dos recursos para o Tribunal Constitucional. 

Associação Sindical dos Juízes, presidida pelo igualmente incontornável Dr. Manuel Soares, conseguiu argumentar em comunicado que “até 13 de Setembro não havia fundamento legal para sujeitar o arguido com outra medida de coacção que não o termo de identidade e residência” e que a culpa por este caso seria dos “actores políticos, que organizam o sistema”, que aprovavam leis que os juízes, depois, se viam (coitados!) obrigados a aplicar. Como se a lei em vigor (o Código do Processo Penal) não previsse medidas de coacção inviabilizadoras ou, pelo menos, drasticamente dificultadoras deste tipo de fugas, e tendo mesmo o desplante de proclamar que “há que esperar mais do que reacções de aproveitamento e de atribuição de culpas” que, “evidentemente”, os juízes não têm de todo.

O 25 de Abril na Justiça

Todas estas tomadas de posição são absolutamente lastimáveis, mas têm, pelo menos, o mérito de tornar ainda mais claro algo para que venho, desde há muito, chamando a atenção: a Justiça – concebida e estruturada na Ditadura não como um direito dos cidadãos, mas como um poder do Estado, ao qual os mesmos cidadãos deviam apenas uma servil obediência – foi um daqueles sectores onde o 25 de Abril verdadeiramente nunca entrou. 

Por isso mesmo, permanece até hoje praticamente intocada a cultura dos ungidos por uma espécie de toque divino, que os torna moral e legalmente superiores ao comum dos mortais. Ainda agora, na grande maioria das salas de audiência dos nossos Tribunais, juízes e procuradores estão colocados acima dos Advogados e sobretudo dos cidadãos que vão em busca de Justiça e que assim têm de olhar de baixo para cima para se dirigirem reverentemente a Suas Excelências. E muitos Advogados, antes de iniciarem as inquirições de testemunhas ou as suas alegações, dirigem-se aos juízes referindo expressões feudais como “com a devida vénia”, “Venerandos Desembargadores” ou “Colendos Conselheiros”!

Tal como se tem visto no processo penal – onde o Ministério Público faz e investiga o que quer e como quer (e com o nosso Tribunal Constitucional[3] a consagrar a barbaridade anticonstitucional de que o próprio Juiz de instrução criminal não poderia exercer o controle jurisdicional das irregularidades e nulidades cometidas pelo Ministério Público nessa mesma fase!?), toda a nossa Justiça, e em particular a Justiça Criminal, se habituou, contrariamente ao que sucede com uma série de outros órgãos e autoridades públicas, a não prestar quaisquer contas públicas do que faz e do que não faz em cada ano, dos erros que foram cometidos, das respectivas responsabilidades e das insuficiências conhecidas, bem como das medidas propostas ou definidas para as ultrapassar.

Portugal tem sido objecto de diversas, e algumas bem humilhantes, condenações quer por parte do Tribunal de Justiça da União Europeia, quer por parte do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, precisamente por violações, algumas não só escandalosas como reincidentes, dos Tratados Europeus e da Declaração Europeia dos Direitos Humanos. Relembro, por exemplo, o modo como o TEDH criticou asperamente a forma como o MP não investigou atempada e devidamente as trágicas mortes dos jovens estudantes da Universidade Lusófona na Praia do Meco. Ou as oito condenações de Portugal[4] pela forma abusiva e desumana como a Segurança Social e os Tribunais de Família e Menores têm, sem fundamento e de forma brutal, retirado crianças aos respectivos progenitores. 

Ora, não obstante, nem por um segundo a Justiça portuguesa, os seus juízes, os seus procuradores e os respectivos Conselhos Superiores e Sindicatos pararam para reflectir sobe o que se passara e, sobretudo, sobre as causas e responsabilidades dos erros cometidos e sobre a forma de os corrigir e de os evitar no futuro.

Eis porque, após mais este lastimável episódio da fuga do banqueiro João Rendeiro, se impõe debater a Justiça, e de forma ampla e aprofundada, mesmo contra a habitual vozearia de Sindicatos e Conselhos, que logo exclamam, como é seu hábito, que assim se estaria a atacar a sua “autonomia” e a sua “independência”: como, por quem e obedecendo a que princípios e critérios são recrutados, formados, avaliados, promovidos e sancionados juízes e procuradores; qual deve ser uma nova composição dos Conselhos Superiores, por forma a evitar a sua actual corporativização e opacidade; deve ou não impor-se de vez a necessidade de apresentação ao público e ao Parlamento, e o seu respectivo debate, de um relatório sobre as actividades desenvolvidas em cada ano.

É que num Estado que se pretende de Direito não só não pode haver poderes incontroláveis e incontrolados, como todos os órgãos públicos e respectivos responsáveis, sem excepção, devem ter que prestar contas da sua actuação. Mesmo que enverguem uma beca e se considerem filhos de um Deus maior…

António Garcia Pereira


[1] De 3 anos e 6 meses, de 5 anos e 8 meses e de 10 anos de prisão efectiva.

[2] João Rendeiro terá escondido os referidos milhões de euros tirados ao banco, aos seus trabalhadores e aos seus clientes, em diversas sociedades offshores, nomeadamente “Oltar Investments, Lda”, “Sertin”, “Portfine”, “Joma Sunday Development Corporation”, “Penn Plaza Management” e “Corter Group”, tendo constituído como seu representante junto das duas últimas o advogado e comentador da SIC, José Miguel Júdice. Rendeiro terá ainda transferido, mesmo já depois de ter sido forçado a renunciar à presidência do BPP, 7,83 milhões de euros para uma conta sua em Singapura.

[3] Acórdão n.º 121/2021, de 09/02 (Proc.º n.º 1126/2019 – 2.ª Secção).

[4] Foi o caso escandaloso de Liliana Melo, mãe de sete crianças, a quem o Estado português tratou de retirar os filhos sob o extraordinário pretexto de que a cidadã se recusava a submeter-se à esterilização que lhe pretendiam impor, acabando Portugal humilhantemente condenado, em Fevereiro de 2016, por diversas e repetidas violações do art.º 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

5 comentários a “A fuga de Rendeiro e duas falências: a do Banco e a da Justiça”

  1. José Boquinhas diz:

    Mais uma importante demonstração do obsoleto funcionamento das instituições que deveriam ser o exemplo se uma sociedade civil moderma e actuante com justeza .

  2. Joao Diniz diz:

    Voltamos aos tempos em que se é tentado a sentir vergonha de ser português. Com todos estes sinais da inJustiça se percebe porque os casos demoram anos a resolver. Mau de mais

  3. joao manuel diz:

    Digmº

    De novo a justiça.
    Como Vexa sabe a polícia com a autonomia que lhe dão faz o que quer . E remete ao MP para acusação ou não .
    Ora aqui começa o problema real porque a investigação criminal era e é insuficiente e como o suspeito nem tem o estatuto jurídico definido realizam-se prisões fora de flagrante delito para interrogatório e medidas antes de terminar o Inquérito . A completa inoperância está há muito ligada ao princípio ” in dubio pro reo ” que aqui funciona de maneira diferente . In dubio contra reo e se não há provas começam as buscas , mas os factos ilícitos aconteceram meses ou anos antes …. cabe perguntar que arguidos teremos que deixam provas para estas buscas … A seguir entra o defensor dos direitos constitucionais e legais pelo que muitos processos terminam em julgamento sem provas ou com os arguidos sem prestarem declarações . Os que confessam são condenados , os restantes arriscam . E andam nisto há décadas .
    No caso dos bancos os americanos inventaram um termo novo para estes ” financeiros ” ie banksters e muitas pessoas ficaram sem nada quando aqui o banco central garantia os depósitos até 100.000 euros . Garantia no papel .
    Pois na matéria dou-lhe razão total mas não vão conceder . Eles arranjaram uma auditoria interna chamada serviço de inspeções e são todos muito bons se não tiverem processos atrasados e recorrerem muito . Pior há uns de lobies internos que não vão para lugares maus e ficam onde querem , nos corredores há quem fale em cartões do partido e são todos esquerdóides . Portanto é uma risota .

  4. Armandina Mais diz:

    Obrigada. Estamos sempre em dívida connosco próprios. As suas análises dão nos a certeza que a razão está do nosso lado. Vergonha, no patamar mais baixo que ela possa ter.

  5. José A Martins Campos diz:

    Obrigado pela bem explícita resposta à pergunta que lhe fiz há 1 ou 2 meses, compreendendo bem que a resposta/parecer só poderia vir depois.
    A minha questão era sobre um juiz negacionista, mas considero a questão respondida.

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