A génese da trilogia emancipadora Liberdade, Igualdade e Fraternidade

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

A génese desta trilogia está intimamente ligada à Revolução Francesa e ao que ela representou no avanço civilizacional das sociedades modernas. No século XVIII surgiu uma corrente de pensamento que se tornou dominante e que tinha como principal característica considerar a razão como o instrumento para explicar racionalmente os fenómenos naturais e sociais, bem como as próprias crenças religiosas. A razão humana seria, então, a luz capaz de esclarecer qualquer fenómeno.

Esta corrente tornou-se conhecida como Iluminismo e representou a hegemonia intelectual da visão do mundo por parte da burguesia europeia, particularmente em França, que rejeitava as tradições e atacava as injustiças, a intolerância religiosa e os privilégios próprios do Antigo Regime. O Iluminismo surgiu numa época de grandes transformações tecnológicas como a invenção do tear mecânico e da máquina a vapor. O Iluminismo era deísta, acreditava na presença de Deus na natureza e no homem.

Era anticlerical, dado que negava a necessidade de intermediação da Igreja entre Deus e o homem, e defendia a separação entre Igreja e Estado, além de considerar que as relações sociais, bem como os fenómenos da natureza, eram regulados por leis naturais.

Para os teóricos do Iluminismo, o homem era naturalmente bom e todos nasciam iguais. Era depois corrompido pela sociedade, em consequência das injustiças, da opressão e da escravidão. A solução, então, era transformar a sociedade, garantindo a todos a liberdade de expressão e de culto, e garantindo mecanismos de defesa contra o arbítrio e a prepotência.

Os principais precursores do Iluminismo foram René Descartes e Isaac Newton. Os principais filósofos do Iluminismo foram John Locke, considerado o “pai” do Iluminismo e representando o individualismo liberal contra o absolutismo monárquico, Voltaire, Jean – Jacques Rousseau, Montesquieu, Diderot e Jean d’ Alembert. Estes 2 últimos organizaram uma Enciclopédia que pretendia reunir o conhecimento científico e filosófico da época. Por esta razão, os iluministas também ficaram conhecidos por enciclopedistas.

O liberalismo económico teve origem também nesta corrente, com individualidades como Adam Smith, Thomas Malthus e David Ricardo. O século XVIII ficou também conhecido como o Século das Luzes. Num contexto político, social e económico onde cresciam importantes contradições, começaram a criar-se condições irreversíveis para a eclosão da Revolução Francesa.

No final do século XVIII, a França era um país agrário, estando a sociedade dividida em três grupos fundamentais: o Clero era o 1º Estado; a Nobreza o 2º Estado; e a restante população, representando 95% dos habitantes, era o 3 ºEstado. Os cafés, os clubes, os salões literários e as lojas maçónicas converteram- se em centros de discussão das doutrinas iluministas, favoráveis à liberdade e às formas democráticas de governo.

Em 1788, perante a bancarrota do Estado, o rei convocou a Assembleia dos Estados Gerais, depois de 174 anos de inactividade. Para esta assembleia foram eleitos 291 deputados do Clero, 270 da Nobreza e 610 do 3º Estado, sendo neste grupo a maioria pertencente à burguesia.

Os trabalhos desta assembleia começaram em Maio de 1789, e em Junho desse ano, o 3º Estado com o apoio de deputados do baixo clero e da pequena nobreza obtiveram a maioria para proceder à proclamação da Assembleia Constituinte.

Em Junho de 1789, alguns representantes do Terceiro Estado na Assembleia dos Estados Gerais, fundaram o “ Clube Bretão” que pretendia constituir-se como um espaço de reflexão e de preparação dos debates na Assembleia. O seu nome derivou do facto de os seus promotores serem delegados da Bretanha.

Após o estabelecimento da Assembleia Constituinte mudaram o seu nome para  “Sociedade dos Amigos da Constituição” e instalaram-se em Outubro desse ano no Convento dos Jacobinos,  um antigo convento de dominicanos situado na Rua Saint- Honoré, em Paris.

A partir desse momento, os seus adversários políticos passaram a chamar-lhes Jacobinos com o intuito de os ridicularizarem. Em 4 de Agosto de 1789, a Assembleia Constituinte decidiu abolir o sistema feudal. A 26 de Agosto desse ano, proclamou a Declaração dos Direitos do Homem. Em 1789, dispunham de 200 deputados de diversas tendências e o seu primeiro presidente foi o deputado bretão Isaac Le Chapelier. Mirabeau, nessa altura, também integrava os Jacobinos.

Os Jacobinos e o seu clube tornaram-se um centro de produção de ideias e o motor intelectual das acções empreendidas pela Revolução. A sua crescente força política de âmbito nacional deveu-se à criação de uma rede de sociedades filiadas por todo território da França. Em Agosto de 1791 existiam 152 sociedades filiadas e em 1792 eram 2000.

No clube criaram-se duas correntes opostas, uma liderada por Robespierre que defendia a deposição do rei e o estabelecimento da República e a outra liderada por Barnave y Brissot que considerava que perante a ameaça de guerra com monarquias estrangeiras era preferível parar a Revolução e alcançar um compromisso com as elites do Antigo Regime e manter uma monarquia constitucional.

Esta corrente acabou por abandonar o Clube dos Jacobinos e fundou o “Clube des Feuillants”, mas esta acção não conseguiu deter a expansão e o reforço do peso político e social dos Jacobinos.

Em Junho de 1791, o Rei e a Rainha tentaram fugir para o estrangeiro e juntar-se aos inimigos da revolução. Conseguiram fugir de Paris disfarçados de criados. Contudo, não longe da fronteira, na pequena cidade de Varennes, foram reconhecidos, detiveram-lhes a carruagem e levaram-nos de regresso a Paris com uma escolta popular.

A fuga do Rei para se juntar aos inimigos da revolução, teve um impacto enorme no espírito do povo. Até aí, a maioria dos franceses, profundamente dedicada à causa revolucionária, acreditava nas boas intenções do Rei. 

As pessoas simples partiam do princípio de que o Rei era um homem bom e de que eram os seus ministros que tinham a culpa de tudo. Depois do incidente em Varennes eram cada vez mais as pessoas que começavam a apoiar a ideia de uma república.

Entretanto, a maioria conservadora da Assembleia Constituinte começou a defender o Rei. 

Embora possuindo provas incontestáveis da sua traição a Assembleia divulgou uma versão falseada do incidente, alegando que o Rei tinha sido raptado, devolvendo-lhe os seus antigos poderes. Este facto causou uma grande indignação nos círculos democráticos de Paris. Em alguns clubes políticos (que na época eram o equivalente mais próximo dos partidos modernos) começou um sério movimento a favor da república.

Na véspera do massacre do Champ-de-Mars houve uma cisão no clube político mais influente, o dos Jacobinos. A ala direita agrupou-se em torno de La Fayette e doutros líderes da alta burguesia e saiu do clube, tendo fundado outro, com inscrições controladas, o dos Feuillants.

Em Março de 1792, o rei deu ordem aos Girondinos para se apoderarem dos ministérios. Depois de se colocarem no papel de governo oficialmente aceite, os Girondinos utilizaram o poder para tornar a guerra iminente, esperando obter vitórias rápidas e fáceis. Mas, como Robespierre e Marat tinham predito, a guerra começou com uma derrota francesa. O Rei demitiu os ministros Girondinos e mais uma vez os Feuillants subiram ao poder.

A revolta de 10 de Agosto de 1792 marcou a queda da monarquia francesa que tinha uma história de mais de mil anos. Luís XVI, foi destronado e preso, e os seus ministros foram demitidos. Formou-se então um novo governo — o Conselho Executivo Provisório — que era constituído sobretudo por girondinos. A distinção entre cidadãos «activos» e «passivos» foi abolida e foram anunciadas novas eleições para uma Convenção Nacional, nas quais todos os homens adultos tinham o direito de votar.

Em Setembro de 1792, os Jacobinos constituiram a “Sociedade dos Jacobinos Amigos da Liberdade e Igualdade”.

Até então integrados exclusivamente por intelectuais burgueses, os Jacobinos decidiram abrir as suas fileiras às classes populares que passaram a servir-lhes de forte apoio táctico, tornando-se o fundamento da sua ideologia. Robespierre, com o apoio de George Danton, Marat , Desmoulins e Sain- Just, tomou a liderança do movimento político e assume uma firme oposição aos girondinos em maioria na Convenção Nacional.

O Rei foi trazido perante a Convenção para ser julgado e o julgamento que durou até Janeiro de 1793 havia de tornar-se uma arena para as lutas entre os girondinos e os jacobinos. Apesar de todos os esforços, dos girondinos para salvar o Rei, este foi declarado culpado de traição e condenado à morte. 

Em 21 de Janeiro de 1793 Luís XVI foi mandado para a guilhotina A própria lógica da luta revolucionária exigia que a Convenção se tornasse o supremo órgão legislativo e executivo, combinando assim ambas as funções num só corpo. Os comissários da Convenção que foram mandados para as províncias e para o exército tinham largos poderes.

 O governo revolucionário foi identificado com o Comité de Salvação Pública. Era este Comité que superintendia directamente em todos os aspectos da administração de estado da república, que iam desde questões de defesa até decisões práticas relacionadas com o fornecimento de alimentos e o equipamento militar. 

O Comité de Salvação Pública foi chefiado por Maximilien Robespierre, conhecido entre o povo pelo «íncorruptível», pelo jovem Saint-Just (que tinha apenas 22 anos quando estalou a Revolução) e pelo político Georges Couthon.

 As questões de defesa foram entregues ao matemático e competente organizador Lazare Carnot. Todos os órgãos estatais eram responsáveis perante o Comité de Salvação Pública, cujas ordens tinham de ser cumpridas sem hesitações.

O governo revolucionário chefiado por Robespierre foi atacado, à direita, por Danton e pelos seus partidários, e, à esquerda, pelo jornalista Hébert que tinha muitos partidários na Comuna de Paris e no clube dos Cordeliers.

Em todas as amplas movimentações sociais e políticas surgiu um amplo sector social denominado os “sans-cullote” que tiveram uma influência decisiva na concretização das medidas mais avançadas no estabelecimento de novos marcos na justiça social.

O nome de “sans-cullote” foi atribuído pela aristocracia aos artesãos, a trabalhadores e até pequenos proprietários participantes nos movimentos revolucionários, principalmente na região de Paris. Foi-lhes aplicada essa designação porque não usavam os elegantes culotes, tipo calções justos, que a nobreza vestia, mas em seu lugar calças compridas. Além das calças compridas, os “sans- cullote” usavam o barrete frígio de cor vermelha como simbolo da liberdade e da república.

Estes cidadãos armados e tendo à sua frente Marat, Herbert, Jacques Roux Robespierre e Danton, assumiram o governo da cidade de Paris e organizaram os guardas nacionais. O partido Jacobino não era uma organização minimamente homogénea e possuía três correntes fundamentais: os Montanheses, corrente maioritária, os Herbertistas, corrente radical, e o sector claramente minoritário dos robespierristas.

Os jacobinos, constituídos por elementos da pequena e média burguesia e do proletariado urbano, assumiam as posições mais firmes em defesa das classes mais desfavorecidas. Na assembleia sentavam-se à esquerda e eram liderados por Robespierre e por Saint Just .  Os “girondinos” eram os representantes da alta burguesia e viviam em pânico com a perspectiva das classes populares assumirem o controlo do processo revolucionário.

Os girondinos foram de início os deputados eleitos do departamento de Gironde, departamento localizado na costa do Atlântico, logo um importante centro para o comércio marítimo, fato este que deu origem ao nome de girondinos como passaram a ser chamados. Posteriormente, o partido, criado e liderado por Jacques-Pierre Brissot passou a designar também com esse nome todos os adeptos do seu pensamento que se uniram na chamada Gironda .

A Gironda caiu em Junho de 1793 sob a acção violenta dos Herbetistas. Os Girondinos defenderam, durante o processo da Revolução Francesa, a instalação de uma monarquia constitucional na França, após a queda do absolutismo. Eram contrários ao aprofundamento das medidas sociais e políticas defendidas pelos jacobinos. 

Os girondinos reagiram com violência às medidas radicais tomadas pelos jacobinos durante a fase da Convenção Nacional. Chegaram a promover perseguições, conspirações e até assassinatos de jacobinos. Eram também favoráveis a liberdade das atividades econômicas, sem grandes intervenções do governo.

 Defensores de um sistema republicano moderado, os girondinos eram favoráveis a exclusão dos mais pobres das eleições. Em 1795, implantaram o sistema de voto censitário baseado em critérios de nível económico na França.

Os Cordeliers eram outro grupo revolucionário desta época, embora tidos como moderados, assim como os girondinos, alguns de seus membros enveredaram por acções  extremistas, como foi o caso de Marat. 

Essencialmente, o nome do grupo teve sua origem ligada ao Convento Franciscano dos Cordeliers de Paris, o qual passou a ser a sede do Clube dos Cordeliers. A palavra cordeliers vem do fato de que os monges franciscanos utilizavam cordas ao redor da cintura para segurar suas vestes. 

A sede do Clube dos Cordeliers era no Convento Franciscano dos Cordeliers em Paris. Os cordeliers estavam mais ligados a população pobre de Paris, procurando lutar pelos direitos dos mais humildes e da pequena e média burguesia, algo que levou os cordeliers a contarem com um maior apoio destas classes dos que os jacobinos. O clube fora criado em 1790, mas chegou ao seu fim em 1793 devido a dissidências internas e aos confrontos com os jacobinos.  Dentre os principais nomes deste grupo estiveram Danton, Marat, Hébert, Desmoulins, etc. 

Os Herbertistas, também chamados “exagerados”, eram liderados por Jacques – René Hérbert dono de um jornal ( Le Père Duchesne). O grande movimento do exagero revolucionário a que se opuseram primeiro Danton e depois Robespierre teve como principais representantes Brère, Collot d’ Herbois, Guzman, François Desfieux e Julien de Toulouse. Os Herbertistas tentaram radicalizar a Convenção e controlavam a Comuna de Paris, o governo local desta cidade. Os membros desta tendência no Comité de Salvação Pública prenderam Danton e executaram-no com Camille Desmoulins.

Entretanto, Robespierre e Saint Just conseguiram que o Tribunal Revolucionário tomasse a decisão, em Março de 1794, de prender e executar Jacques René Hérbert, assim como de alguns dos seus apoiantes. Ainda que Robespierre tivesse defendido em diversos momentos a adopção de medidas violentas contra os inimigos da revolução, a actividade terrorista dos comités populares liderados por Collot d’ Herbois, Barère de Vieuzac  e Billaud- Varenne intensificou-se sem qualquer controlo dos principais dirigentes jacobinos.

Em Junho de 1794 Robespierre conseguiu a expulsão do clube de Joseph Fouché, então um radical ateu, que em Abril desse ano tinha sido eleito, para grande indignação sua, presidente dos Jacobinos. A 27 de Julho de 1794, um alargado grupo de conspiradores conseguiu interromper os discursos de Saint-Just e Robespierre e anunciar a sua prisão, que foi ratificada.

«A República morreu, o domínio dos ladrões está a chegar», foram as últimas palavras de Robespierre.

Entretanto o povo de Paris ergueu-se para defender os líderes jacobinos, compreendendo que, ao defender Robespierre e os seus amigos, estava a defender a revolução.  Robespierre, Saint-Just e Couthon foram libertados da prisão e levados para a Câmara da cidade. Mas, os conspiradores em nome da Convenção reuniram à sua volta todos os elementos contra-revolucionários burgueses e mandaram tropas contra a Comuna.

 Às três horas da manhã uma das colunas das tropas contra-revolucionárias conseguiu entrar na Câmara. Na manhã seguinte, a 10 do Termidor, Robespierre, Saint-Just, Couthon e os seus partidários mais afectos foram guilhotinados sem julgamento na Place de Grèves, com mais 20 apoiantes. Este golpe contra-revolucionário marcou o fim do poder jacobino. 

Nos dias seguintes foram executados mais de 100 robespierristas, sem qualquer processo de julgamento. O Clube Jacobino foi encerrado definitivamente em Novembro de 1794, por ordem de Joseph Fouché, ministro da polícia e antigo membro do governo jacobino. A alta burguesia, através dos Girondinos, entregou o poder a Napoleão Bonaparte e criou o Directório como órgão executivo.  E Napoleão, logo de seguida, fez um golpe e concentrou em si todos os poderes.

Em todo este processo revolucionário destacou-se um cidadão chamado Maximilien Robespierre . Nasceu em Arras em 1758, sendo filho de uma família de procuradores. Formou-se em direito e actuou como promotor de justiça, tendo sido eleito em 1789 para os Estados Gerais. Robespierre é uma das figuras históricas que mais tem sido vilipendiada pela História oficial.

Tendo em conta esta caracterização muito geral do período em que decorreram os principais factos relativos à Revolução francesa, importa, desde logo, sublinhar que este processo político, social e económico se caracterizou por uma extrema violência de todas as partes em confronto.

Aquilo que a História oficial estabeleceu como “Terror” atribuindo-o em exclusivo aos Jacobinos e em particular ao Robespierre, foi praticado por todos os sectores políticos e foi até iniciado pelos girondinos no assassinato de influentes dirigentes jacobinos. Esse Terror acabou por ser a reacção violenta das classes populares para defender a República, confrontada com múltiplas ameaças, invasões e permanentes conspirações.

Quando a França vivia numa clara situação de guerra civil, as monarquias estrangeiras mantinham movimentos de tropas nas suas fronteiras para proceder à sua invasão e quando nas classes sociais existiam uns que não tinham nada a perder e outros que tinham todos os privilégios a perder, o ambiente instaurado dificilmente poderia ser outro que uma sociedade mergulhada num clima de confrontos violentos.

Em sucessivos meses diversas zonas da França foram ocupadas por holandeses, ingleses, austríacos, prussianos e espanhóis.

À violência das agressões de vários exércitos, as classes populares adoptaram também métodos violentos de defesa e de sobrevivência.

Em 12 de Agosto de 1793, os 8 mil deputados das assembleias primárias dirigiram-se à Convenção e exigiram medidas imediatas e enérgicas contra os inimigos da República.

Se tivermos presente que esta revolução concretizou uma ruptura profunda de sociedade, ao concretizar a passagem do feudalismo ao capitalismo com todas as mudanças de paradigmas políticos, sociais e económicos e vastas rearrumações de forças, interesses e objectivos, nunca poderiam existir “santos” de um lado e “pecadores “ do outro.

Particularmente nas 2 últimas décadas do século XIX foi iniciada uma campanha difamatória organizada contra Robespierre, precisamente no ambiente político e ideológico decorrente da bárbara repressão contra a Comuna de Paris, proclamada em 1871, na sequência do cerco da capital francesa pelas tropas prussianas.

O facto de o governo autónomo da cidade de Paris ser encabeçado por novos jacobinos e membros de tendências socialistas fez soar as “campainhas de alarme” nos poderes dominantes que consideraram existir uma fonte de inspiração nos ideais republicanos e progressistas de Robespierre .

A diabolização de Robespierre visou o objectivo primário de lhe conferir uma imagem tão arrepiante que afastasse qualquer poder de atracção dos plebeus para novos e decisivos protagonismos em importantes acontecimentos políticos perante uma situação política e social tão debilitada da França no final do século XIX.

A campanha difamatória contra Robespierre assentou (e assenta) em duas acusações  fundamentais: ser um ditador e um sanguinário.

Robespierre estava em clara minoria no Comité de Salvação Pública, o Comité de Segurança Geral, que tinha sob a sua supervisão directa o Tribunal Revolucionário, era de forma quase unanime hostil às suas ideias e propostas, o que torna insólita a situação de um acusado ditador ter contra ele os principais poderes do Estado.

A plebe armada protegia Robespierre. O que é curioso é que Robespierre foi morto em nome da liberdade. Ele era o dirigente em quem as classes populares confiavam, era um orador de extrema eloquência e de enorme persuasão. Robespierre defendeu sempre a liberdade de imprensa, de consciência e religiosa. Foi ele que se opôs frontal e publicamente ao grupo que lançou a campanha para a descristianização da França. Quanto a ser sanguinário importa ter presente que o Comité de Salvação Pública era uma comissão da Convenção, quer dizer do Parlamento, cuja missão era o controlo dos actos do governo. Cada mês, os membros desse comité, deputados, eram renovados pela Convenção.

Em Março de 1793, foi criado o Tribunal Revolucionário por proposta de Danton, após a derrota militar na Bélgica e o descobrimento da traição de Dumouriez, no âmbito  de regime de excepção criado na sequência destes dois factos.

Em múltiplos debates parlamentares, Robespierre opôs-se à pena de morte e opôs-se ao regime de excepção, mesmo quando assassinaram o seu amigo Michel Lepeletier. Robespierre, a 30 de Maio de 1791 fez uma vibrante intervenção na Assembleia Constituinte solicitando a abolição da pena de morte.

A única excepção foi a execução do rei, que ele defendeu claramente, afirmando que  “ o rei deve morrer para que a pátria viva” É elucidativo que os conspiradores que prenderam e mataram Robespierre o acusaram de ser um moderado por haver protegido antigos nobres, haver defendido Camille Desmoulins e de ter salvo Danton . Robespierre foi afastado do Comité de Salvação Pública por ter impedido a condenação à morte de uma louca visionária chamada Catherine Théot.

Por outro lado, quando os Cordeliers desencadearam um movimento de grande radicalização do processo democrático, com a instauração de uma situação de extremismo revolucionário, Robespierre colocou-se numa posição de empenhada oposição a estes excessos e salvou a vida a girondinos como Pache , Hanriot e Boulanger. 

A 3 de junho de 1792 , a assembleia legislativa organizou a “Festa da Lei “ e adoptou o lema “Liberdade,  Igualdade e Propriedade”  para  se opor-se à divisa da “Liberdade, Igualdade e Fraternidade”.

Robespierre representava um perigo acrescido em relação aos seus discursos de elevada persuasão e de ampla capacidade mobilizadora das massas populares, em particular a plebe, ou seja, era um teórico político de elevado nível filosófico.

Para os jacobinos, a liberdade ou independência do indivíduo estava em relação com as condições materiais da sua existência, pois quem depende da vontade alheia para poder viver não é livre. O projecto democrático desenvolvido por Robespierre recusava a autonomia da economia em relação à politica, devendo estar subordinada à sociedade civil.

Para evitar o despotismo dos aparelhos políticos, os jacobinos estabeleceram a divisão das tarefas dos poderes executivo e legislativo. A 19 de Outubro de 1792, Robespierre escreveu que a sua missão era dar à França uma Constituição nova, verdadeiramente republicana, não como a constituição americana por estar fundada na aristocracia da riqueza.

A 28 de Outubro de 1792 noutro discurso afirmou que “ acusam-nos de caminhar para a ditadura, a nós que não temos nem exército nem tesouro, nem cargos, nem partido, nós que somos intratáveis como a verdade, inflexíveis, uniformes, quase insuportáveis como os princípios”. Robespierre num discurso proferido a 18 de Dezembro de 1790 na Sociedade dos Amigos da Constituição atacou os projectos da Assembleia que visavam reforçar as tropas profissionais, defendendo a sua substituição por cidadãos armados.

E afirmou : “ Senhores,… como sabeis, todas as instituições públicas não são outra coisa que meios para conseguir um objectivo útil à sociedade, e para definir e empregar os meios é sempre necessário e suficiente conhecer perfeitamente o objectivo e nunca perdê-lo de vista. Examinemos, antes de tudo, qual é o objectivo preciso da instituição da Guarda Nacional, qual é o lugar que deve ter, que função deve cumprir na economia política … as leis constitucionais traçam as regras que têm de ser observadas para sermos livres, mas é a força pública que nos faz livres, de facto, assegurando a execução das leis … o homem livre não é aquele que actualmente não está oprimido, mas aquele que está protegido da opressão por uma força constante e suficiente … todo o homem tem o direito de estar armado para a sua defesa e para a dos seus iguais, que todo o cidadão tem um direito igual e uma obrigação igual de defender a sua pátria … a guarda nacional não pode ser outra coisa que a nação armada para defender , caso necessário, a sua liberdade e a sua segurança … “.

E sublinhou que “ A guarda nacional se reunirá a 14 de Julho de todos os anos, em cada distrito, para celebrar, mediante festas patrióticas, a época feliz da Revolução … e levarão nos seus peitos estas palavras gravadas  : O Povo Francês e por baixo  Liberdade , Igualdade e Fraternidade .  As mesmas palavras estarão inscritas nas suas bandeiras que terão as 3 cores da nação. “

Esta trilogia tornou-se até hoje na divisa do Estado francês.

No seu discurso efectuado em Abril de 1791 afirmou que “ o povo não pede mais que o necessário, quer justiça e tranquilidade, os ricos querem tudo, querem invadir e dominar tudo. Os abusos são obra dos ricos e o domínio dos ricos. Eles são a desgraça do povo. O interesse do povo é o interesse geral e o dos ricos é o interesse particular”. 

Diversas outras afirmações de Robespierre podem ser mencionadas como, por exemplo:

– “A arte de governar foi até aos nossos dias a arte de enganar e de corromper os homens e não deve ser outra coisa que a de os ilustrar e torna-los melhores”.

–  “ A liberdade é o poder que é próprio do homem de exercer, no seu livre arbítrio, todas as suas faculdades. Ela tem a justiça como norma, os direitos dos outros como limites e a lei como salvaguarda” .

–  “A democracia é a ordem pública na qual a igualdade e os bons costumes colocam o povo em condições de exercer utilmente o poder legislativo”  .

– “ à medida que os funcionários substituam o povo,  haverá menos democracia”. 

 – “A imprensa livre é a guardiã da liberdade”.

 – O homem nasceu para ser livre e ser feliz.

–  “Jamais os males da sociedade vêm do povo, mas do governo. A miséria do povo não é outra coisa que um crime dos governantes. O primeiro objectivo de toda a Constituição deve ser defender a liberdade pública e individual contra o próprio governo. “

 E Saint Just, companheiro de luta e de morte de Robespierre, afirmou que “um povo não tem mais que um inimigo perigoso, o seu governo”. E “creio que o desaparecimento de todas as repúblicas deveu-se à debilidade dos princípios da propriedade. Um pacto social dissolve-se necessariamente quando um possui muito e o outro demasiado pouco”. 

Com este reportório tornam-se mais compreensíveis as razões que explicam a vasta campanha difamatória contra Robespierre pela “história oficial”.

Mário Jorge Neves, médico

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