Em 2020. Ano de pandemia. Ano de estado mental duvidoso. Calamitosamente bárbaro. Terrorista.
Uma mulher, preta, camponesa, nua. É perseguida numa estrada no mato, na província de Cabo Delgado, recebe vergastadas de quatro homens, pretos, é executada com trinta e seis tiros.
É deixada nua na estrada, morta, executada. Por feitiçaria. Dizem. Não há razões.
Um mês depois. Um homem, professor, branco, nas ruas de Paris.
Decapitado por outro homem branco. Dava aulas sobre desenhos que não podem ser desenhados. Dizem. Não há razões.
Uma mulher e um homem da espécie sapiens-sapiens. Como outros seres. Executados a sangue frio por outros da mesma raça. Nunca haverá razões para justificar esta raça que não é gente.
A raça que ainda há dias descobriu o fogo, criou a roda, pisou a lua, pintou a Capela Sistina, esculpiu David, escreveu Dom Quixote, dramatizou Hamlet, entendeu a relatividade, interiorizou a partícula de Deus, fotografou buracos negros, caminhou no espaço, pintou com palavras a melhor poesia.
Quem raio somos nós? Uns tristes filhos da não razão.
Hoje venho lembrar que nos olhos de ambos se deveriam ler a interrogação e a ignorância por tamanha insanidade. A não existência de razão para a crueldade.
Vim lembrar-me o que na hora de deixarem o corpo deveriam dizer aqueles corações que morreram sem qualquer sombra de bondade. E prestar a minha homenagem no único lugar onde o posso fazer. A ágora deveria ser agora o lugar de estar. O lugar de fala. De demonstração de quem não quer mais que a vida seja esta demonstração de iniquidade que faz doer.
Para aquela mulher e aquele homem e todos aqueles que esperam mais de nós. Para que as suas vidas sejam validadas por alguma razão. A vida que está cheia de razões de ser e perante estes falhanços pede-nos acção. Acção em condenação veemente. Em pôr fim ao terrorismo venha de onde vier. Sem medo.
Não podemos mais falhar nem viver nas trevas do tempo moderno. Por sermos a espécie da razão.
Anabela Ferreira
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