Ainda a digerir a dor que chega ao estômago da voz que sussurrava aos nossos ouvidos sonoridades que o mar leva e traz de Lisboa ao continente africano.
Nascida cá mas de origem de lá e vice versa, do soul ao gospel à descoberta e fusão de ritmos com tanta originalidade, que a tornou única na música como compositora – nha cretcheu, one love, balancé, ponto de luz, planeta sukri, ginga, bom feeling, xinti, vuá borboleta, eu sei…e tantas outras com a marca da sua origem africana.
Deu uma nova glória aos cabelos carapinha e ticidos (lembram-se que no início lhe quiseram esticar o cabelo e fazer penteados europeus?)
Podia ter-se transformado numa “Whitney” afro-lusa contudo decidiu e muito bem, ser uma Sara original, honrando o que a vida lhe deu como talento – a voz e a capacidade de criar. Fez um mergulho na sua origem africana, aproveitou o balanço do Cacilheiro, juntou-lhe semba com samba com gumbé com morna e coladera e nem sei mais o quê, “só deus sabe o que virá”, estava o palco montado para receber o melhor aruz ku catchupa, tchebém ku tchapudjene, ku mufete, kalulu ku sardinha assada. A Sara fez gastronomia singular com todas as misturas. Quem esteve nos seus concertos e ouvia os seus discos sabe do que falo.
Ela dançava, tocava todos os instrumentos, cantava, dirigia a orquestra, deixava os músicos brilhar, trouxe vários talentos para a frente do palco consigo, entregava-se profundamente ao público que a amava. Era a dália mestre que não se queria num altar. Queria apenas cozinhar e dar a provar. Sempre “low key”, sem dar nas vistas, sem precisar de chamar a atenção, uma menina simples, uma artista maior, uma alma sábia. Um tsunami envolvente com o público, a suavidade do veludo na voz, a presença de uma luz especial no palco. Reparavam no fio que ela tinha tecido com o público? Eu ficava sempre extasiada só a ver o que era invisível. Tás a sentir só?
Yah, mana, só feeling, só amor.
Há dois meses pude perceber o amor que lhe foi dedicado quando o seu estado piorou. Ninguém conseguia prever o desfecho de forma consciente. A Sara, tão jovem, com tanto ainda para criar, não podia ser. Ela merecia muito mais tempo connosco. Ou aliás, nós queríamos que o concerto dela nunca acabasse. Ela mereceu tudo o que teve. Todo o amor. Há seres muito especiais com uma missão ainda mais única. Esquecemo-nos que agora estamos aqui e daqui a um segundo podemos já não estar. Tenho para mim que a Sara sabia do avesso este destino.
Por isso falava tanto no Amor nas suas canções – One love – o amor universal, além do amor romântico, sussurrado ao ouvido. Era a palavra que mais gostava. Por isso tanto o dava, sem restrições. Nós no público intuíamos que ela fazia o que fazia por puro amor. Ela era puro amor. Com uma célula e essa célula tinha uma missão. Como o nosso corpo físico é frágil e vulnerável, a célula cumpriu o papel e consumiu-a. Sabemos que quem recebe um diagnóstico destes pode até zangar-se mas depois faz as pazes com o kronos – sabe que o seu tempo é limitado. Creio que mais ninguém tem maior consciência do quanto é efémera a vida senão aqueles que recebem um veredicto assim.
Nós ficamos com o processo de canalizar o amor para o seu legado e memória, depois de lidarmos com o choque, depois de negarmos a realidade, de fazermos o luto.
Vejam bem o que ela nos deixa – vai para além da música. A vida dela foi transcendente. Desde o primeiro disco nunca mais deixei de a ouvir, de a ir ver em concertos, de lhe admirar a beleza, a serenidade e os ensinamentos em cada entrevista ou momento musical. Descomplicada, autêntica e despretensiosa. Que mais pode um artista ambicionar ser?
Disse a Sara numa entrevista algo que me impressionou. Pareceu-me vindo de uma alma muito sábia e anciã a falar:“sou assim meio desapegada do mundo, vivo isto como se fosse uma passagem, também me interessa chegar à outra margem”.
Como o ciclo da água subiu ao céu, agora é nuvem, há-de voltar à terra, ser chuva, e voltar a subir.
Desculpem, a Sara merece todas as homenagens. Só apetece o silêncio mas as palavras saem como se tivessem intenções, como se fossem uma música leve dedicada, quando estamos de coração tão pesado. Esta é a minha forma de lhe cantar uma música.
cor carapinha, em talento fogo crespo
tenho umas palavras para te dizer,
tu que tanto nos deste de ti,
quando chega o momento de sentir dor
temos de a sentir
e eu sinto muito
teres ido embora
da nossa companhia
teres deixado o empecilho do corpo
que não te deixava cantar e dançar
e compôr, e amar,
e o fogo transformar
para fazer o que gostavas
dar, dar, dar
vida meteoro
chegaste, venceste, conquistaste
deixas a tua marca
mereces todas as homenagens e não serão poucas,
estás em todos os corações, em todas as orações
e isso agora já pouco interessa
ficas
na música,
em mim, em todos nós que te chamamos
carinhosamente
Mana Sara
Obrigada por tanto.
Vuá borboleta, vuá
Anabela Ferreira
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