A morte da Justiça na tragédia do Meco

O Estado português voltou a ser objecto de uma humilhante condenação pelo Tribunal Europeu dos Direitos do Homem (TEDH) relacionada com o mau funcionamento da Justiça.

Desta feita, e por força do Acórdão de 14/10/2020, aprovado por unanimidade de 7 juízes (entre os quais o juiz português Paulo Pinto de Albuquerque) esteve em causa a forma como o Ministério Público NÃO investigou as circunstâncias que determinaram a trágica morte na Praia do Meco, na madrugada de 15 de Dezembro de 2013, de seis jovens, estudantes da Universidade Lusófona e que estariam então a ser objecto de uma praxe ou ritual.

O Ministério Público actuou neste processo como lastimavelmente tem actuado noutros que também conhecemos: tal como sempre denunciaram os pais dos jovens falecidos e o seu corajoso advogado Vítor Parente Ribeiro, assumiu à partida o entendimento e a conclusão de que não teria existido qualquer crime e depois conduziu todas as diligências processuais (as que realizou e sobretudo as que não realizou, pelo menos em tempo útil) à luz e em formação dessa posição de partida e como forma de a justificar. E tendo desta forma conduzido ao assim tornado “natural” arquivamento dos autos, não se ficou por aí. Tratou ainda de instaurar procedimento criminal e de deduzir acusação contra os pais e o próprio advogado, os quais apenas não foram a julgamento por uma juíza de instrução criminal ter correctamente decidido não confirmar essa repugnante acusação e não os pronunciar.

Todavia, aquilo que eles tinham afirmado era essencialmente o mesmo que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem veio agora assinalar: essa investigação criminal não respeitou os requisitos mínimos de uma actuação processual tal como a exige e impõe o artigo 2º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.

O acórdão

O Acórdão do TEDH assinala explicitamente as, pelo menos, 6 medidas urgentes que o Ministério Público deveria ter adoptado de imediato e que não só não adoptou, como se escusou ou até recusou a adoptar durante largo período de tempo. O bastante para permitir a inutilização, a destruição ou o desaparecimento de meios de prova relevantíssimos para a descoberta da verdade.

Num caso como este, em que toda a pessoa de boa fé compreende que a celeridade e a eficácia na recolha e preservação de meios de prova eram absolutamente vitais, o TEDH assinala os seguintes inquestionáveis factos e que, precisamente porque o Ministério Público e o Governo estão a procurar que neles se não atente nem reflicta, aqui se reproduzem ipsis verbis:

145. A casa d’Aiana de Cima (onde as vítimas estavam – nota nossa) podia ter sido protegida e o seu acesso interdito a todas as pessoas alheias ao inquérito, como exige o artº 150º do CPP (…) Isso teria evitado a manipulação e mesmo a perda de elementos de prova, bem como a limpeza do apartamento a 9 de Janeiro de 2014 (…) O tribunal ficou particularmente impressionado com o facto de J. G. (o “dux” ou líder da praxe João Gouveia – nota nossa) e os seus familiares, as famílias das vítimas e terceiros terem tido acesso à casa sem qualquer restrição.

146. Apesar de a inspecção ao local de uma tragédia dever ser, em princípio, levada a cabo o mais cedo possível, no presente caso, os exames da polícia científica à casa só tiveram lugar em 11 de Fevereiro de 2014 (…)

147. Os objectos que se encontravam na casa, como os telemóveis das vítimas, ou na praia do Meco continham potencialmente informações importantes e sensíveis sobre as pessoas em causa. Por consequência, apreendê-los e selá-los para serem investigados teria evitado qualquer manipulação por uma série de pessoas e, de seguida, que a polícia judiciária tivesse de os reclamar.

148. As roupas que J.G. vestia na noite da tragédia bem como o seu computador, deveriam ter sido imediatamente apreendidos e sujeitos a perícias científicas. No caso, as roupas e o computador só foram apreendidos em 7 de Março de 2014 (…)

149. Uma reconstituição dos factos na praia com a participação de J.G. poderia ter sido realizada na data mais próxima possível à data dos acontecimentos, de acordo com o artigo 171, nº 2 do CPP (…) Neste caso, essa reconstituição só foi realizada em 14 de Fevereiro de 2014 (…)

150. No que respeita às inquirições nada pode explicar o facto de as autoridades não terem imediatamente recolhido os depoimentos das pessoas presentes nos locais, nomeadamente os vizinhos ou as pessoas responsáveis pela casa onde as vítimas tinham ficado alojadas (…) Neste caso, estas pessoas só foram inquiridas nos dias 8 e 10 de Fevereiro de 2014, ou seja, mais de um mês e meio depois dos factos (…).[1]

Se tudo isto (e infelizmente ainda mais houve) já é estarrecedor, não pode então deixar de se colocar toda a uma série de questões.

Questões que devemos colocar

1) Alguém pode acreditar que tantas e tamanhas falhas possam decorrer da mera inépcia ou incompetência – que já seriam bem graves – de um qualquer “distraído” Procurador da República?

2) Quando a perda de alguns elementos de prova era já irreversível e irremediável, o que fez o Ministério Público senão continuar a sustentar a pretensa bondade do que, até aí, fora e não fora feito, sem um pingo de auto-crítica?

3) Por que razão, por exemplo e como denunciou publicamente o advogado dos pais dos jovens, o Ministério Público titular do processo não quis saber da circunstância de, ao fim da noite da tragédia, familiares e amigos do J.G. terem ido limpar a casa onde as vítimas estavam alojadas, eliminando assim quaisquer vestígios relevantes? E por que razão desvalorizou a localização do telemóvel de uma das vítimas na zona de Oeiras a 40 km do Meco (o que poderia significar que o “dux” não estava sozinho), mas já ordenou que se fizesse a confirmação, pelas antenas de telemóvel, da localização das pessoas que tinham testemunhado terem assistido, na véspera, à sujeição das vítimas a actos de praxe?

O que faz correr um Ministério Público que assim actua?

4) E não é verdade que aquilo que essa máquina corporativa tratou de fazer foi, para além de se justificar a si própria, procurar perseguir e calar as magoadas e mais que justificadas vozes críticas dos pais amargurados e do seu advogado, saltando-lhes para cima com processos-crime, designadamente por pretensas difamações agravadas?

            5) Por fim, é ou não evidente que a questão mais relevante, e que não pode passar em claro, é a conduta – agora tão claramente denunciada e verberada pelo TEDH – do Ministério Público, na fase mais crucial e decisiva do processo (o inquérito), mas na qual se habituou a fazer o que quer sem ter de prestar contas a ninguém? E que foi precisamente essa conduta de quem se arroga o estatuto quase divino de decidir o que acusa e, mais ainda, o que arquiva, que afinal impediu que se pudesse saber o que realmente se passou naquela fatídica madrugada?

O que deveria estar a acontecer e não está

Numa sociedade verdadeiramente democrática, perante uma condenação do Estado como esta, e perante tudo o que ela revela e implica, aquilo que estaríamos a assistir era, desde logo, ao mais amplo debate acerca de toda esta questão, sem rebuços e sem receios de represálias criminais contra quem ouse criticar Suas Excelências os omnipresentes, omniscientes e omnipotentes Procuradores da República.

Mas estaríamos decerto também a assistir à Procuradora-Geral da República, a actual e sobretudo a anterior (por os factos serem do tempo do seu mandato) a ser chamada, designadamente ao Parlamento, a prestar contas e a dar explicações sobre como pôde levar o funcionamento e actuação da corporação que dirige (ou dirigia à data dos factos) a uma condenação como esta do Estado Português.

E o Governo e o Parlamento deveriam estar a ser confrontados pelo próprio Presidente da República – visto estar aqui em causa a violação, grave, de regras e princípios básicos do Estado de Direito – acerca da necessidade de se adoptarem medidas legislativas, regulamentares e organizativas adequadas a alterar radicalmente este estado de coisas. Nomeadamente com a reformulação do processo penal, a sujeição de todas as actuações, por acção ou por omissão, do Ministério Público ao controle jurisdicional de um juiz de instrução e a imposição quer do respeito pelos prazos processuais (que actualmente apenas são vinculativos para os cidadãos, queixosos ou arguidos, e para os seus advogados), quer da responsabilização disciplinar, cível e até criminal por condutas contrárias à lei como aquelas que agora foram denunciadas.

Mas não! Procuradora-Geral da República e Conselho Superior do Ministério Público calam-se que nem ratos, à espera que a onda passe, para que tudo afinal fique na mesma e os seus poderes e privilégios intocados.

O Presidente da República e os deputados assobiam para o lado, como se esta questão em nada lhes dissesse respeito.

E o Governo, o que faz? Depois de se defender no TEDH de uma forma que os juízes rejeitaram por inteiro no tocante à parte condenatória da decisão, vem dar a mão ao Ministério Público, invocando, conforme declarações de Francisca Van Dunem, Ministra da Justiça (que era, à data, Procuradora-Geral Distrital de Lisboa e, logo, figura cimeira do próprio Ministério Público) e depois através de uma nota do Governo enviada à Lusa, o seguinte (pasme-se!): “as deficiências apontadas não foram devidamente enquadradas no conjunto geral de toda a investigação realizada, bem como no contexto do momento em que ocorreram, nem quanto às suas implicações no resultado do processo e na descoberta da verdade…”. Acenando mesmo com a possibilidade de requererem o envio do caso à “Grande Chambre” (instância superior do TEDH), ou seja, irem ainda interpor recurso desta decisão.

Já se percebeu, pois, que o Governo e Ministério Público, não obstante todo este autêntico escândalo, acham que o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem é que se enganou e que, ao invés, nada de particularmente errado e digno de crítica, ou sequer de reflexão, se verificou em todo este lastimável processo.

Mas esquecem-se de um “pequeno” pormenor – é que há mais mundo do que os seus míseros quintais e que, felizmente, ainda há cidadãos que não temem os poderes instituídos e estão dispostos a travar até ao fim a luta pela Verdade e pela Justiça, mais ainda quando se trata de averiguar as circunstâncias em que os seus filhos, na flor da idade, perderam a vida.

O meu “Bem Hajam!” aos pais e ao advogado dos jovens tragicamente desaparecidos pelo seu extraordinário exemplo de coragem, de determinação e de cidadania.

António Garcia Pereira


[1] O acórdão, cuja parte aqui traduzimos, pode ser lido na íntegra, na língua francesa, aqui.

Um comentário a “A morte da Justiça na tragédia do Meco”

  1. Alfredo Silva diz:

    Há vários anos que insisto que a justiça em Portugal é corrupta. A corrupção no supremo vulgarizou-se ao ponto de se tornar relativamente barata. Tal corrupção é a mesma que existe nos outros serviços de responsabilidade pública. Quando os exemplos vêm de cima, existem outros que se sentem no direito de também enriquecer “por detrás do blacão”. Numa perspectiva relativa Portugal é o país mais corrupto do Mundo.

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