A mulher antes do 25 de Abril de 1974

E agora, o que vamos fazer com esta liberdade depois de longos anos de insignificância e de não existência?

Ser mulher em Portugal há 50 anos significava a insignificância.

Cresci e estudei em Portugal, filha e neta de Portugueses, nascida numa ex-colónia além mar em época de ditadura.

Ser mulher e preta em Portugal há 50 anos significava a não existência.

Para a mulher preta o racismo e a segregação não eram exercidos por decreto-lei, era exercido de forma subtil e subliminar, a coberto e dissimulado por eufemismos, que se juntavam à biologia.

Poderia ser aplicado na educação, na remoção do lugar, na colocação em posição de ainda maior subalternidade e inferioridade.

Nunca uma mulher preta podia ser melhor que qualquer mulher branca, o único lugar onde poderia competir. Em qualquer área onde fosse possível estar uma mulher.

Voltemos à condição de mulher como um todo, em Portugal durante a ditadura.

A ditadura militar derrubaria a I República fazendo nascer posteriormente o Estado Novo pela mão de Salazar. Tinha início em 1926 e esta só seria derrubada em 1974, a 25 de Abril. Seria a mais longa ditadura da Europa no século XX nas mãos de Salazar e de Marcello Caetano.

A construção do Estado Novo como Nação implicou a delimitação de fronteiras entre espaços públicos e privados. Estes eram conotados sexualmente, logo, a mulher foi explicitamente excluída dos primeiros.

Pela sua condição de mulher, o sistema social aliado ao regime patriarcal e profundamente religioso estava-lhe vedado qualquer caminho que pusesse em causa a ordem masculina estabelecida.

Esquecidas estavam as rainhas, as sufragistas, as jornalistas, as militares entre muitas mulheres anónimas que fizeram História.

A partir de 1963 decorria uma guerra colonial espalhada por todas as possessões nos extensos territórios no ultramar. Nada justificava a guerra fracticida. Nem sequer havia dinheiro para a manter, porém esta prosseguia teimosamente.

Como teimoso e orgulhosamente só era o ditador. Como acontece com sociopatas.

Os militares muito mal pagos deixavam de gostar de ir morrer no ultramar, por imposição da ditadura que não queria largar os “seus territórios”.

O Império sacudia os derradeiros suspiros na frente de batalha.

Nascia em 1964 e vivia uma vida serena entre viagens à metrópole e laranjadas na esplanada da D.Berta com os tugas que iam combater os turras e faziam pausas em Bissau.

O meu pai colonizador tocava piano na banda da Udibe animando as noites, depois de ter deixado o serviço militar. Ele queria que o regime apodrecesse e não contasse mais com ele.

Por um lado, uns lutavam pela libertação do jugo Português, após quinhentos anos de colonialismo incluindo Escravatura, Racismo aplicado e Ditadura Militar fascista. Os turras.

Na minha terra Guiné-Bissau – a primeira colónia a declarar-se independente em 1973, com Amílcar Cabral ao lado da combatente Titina Silá, entre outras – os turras que lutavam pela independência Da Guiné-Bissau e de Cabo-Verde, davam a perceber à ditadura colonial que a guerra estava perdida do lado Português.

Sabia o Estado que a guerra estava perdida mas havia que lutar até ao último Português e até ao último africano…bizarrices de um ditador sociopata. Conhecemos outros.

Do outro lado, os outros, os militares Portugueses, junto com gentes da Esquerda – o Partido Comunista e muitos intelectuais (incluindo mulheres), vindos de um povo drenado, miserável, agastado por quase 50 anos de ditadura, mortes, campos de concentração, desaparecimentos, torturas, exílios, massacres, lutavam em todas as frentes, militares e políticas para terminar com quinhentos anos de colonialismo e ditadura.

Ninguém queria a guerra colonial. Além do mais vale repetir que o que lá se ganhava não justificava o sacrifício de vidas.

Além do mais havia uns que ganhavam mais que outros, para irem morrer além-mar.

Todos os maiores problemas caíam sobre a ala feminina dos dois lugares – em Portugal e pelas colónias em África. Muitas participarem na guerra como figuras chave da actividade militar, como combatentes e nos bastidores.

Em Portugal, o Estado- Novo fazia a apologia a um certo modelo de família enquanto célula vital da sociedade para o “sexo fraco”.

Era dada à mulher a glorificação da maternidade, cujo modelo tinha de ser a mulher poupada e dócil a quem eram negados quase todos os direitos bem como lhe era negada a completa igualdade com os homens.

Para Salazar a natureza estava para o lado das mulheres, enquanto os homens estavam para o lado da cultura, sendo por isso um fiel seguidor das mensagens expressas pela Igreja Católica fazendo com que estas fossem cumpridas religiosamente.

Apenas em 1931 as mulheres com o ensino secundário foram autorizadas a votar. Em 1946 Salazar concedeu o direito de voto às mulheres casadas. Em 1968 com Marcelo Caetano, todas as mulheres conquistaram o direito de voto nas eleições nacionais (não nas municipais) por terem sido consideradas “mais conservadoras que os homens.

Não podiam ter passaporte, nem viajar sem autorização do marido. Eram as mulheres figuras essenciais no trabalho agrícola, como operárias, nas áreas urbanas ou rural, ou no âmbito familiar, em casa, como mães, amas, criadas, lavadeiras, costureiras, leiteiras, telégrafos, telefonistas e empregadas dos correios, telefonistas, professoras e funcionárias do Estado.

Cerca de 17% no início do Estado Novo e em 1952 cerca de 22% de população activa eram mulheres, sobretudo no sector primário, por via da emigração e da guerra colonial.

Uma larga maioria de mulheres eram analfabetas, de saia e lenço preto como forma de vestir decente que tudo tapasse, e as mantivesse na obscuridade, secundárias no viver, mortas ao parir por falta de assistência médica, recolhidas a um lugar de invisibilidade, num país pobre, onde a larga maioria das suas crianças não tinha sapatos para calçar, dormiam na cama dos pais em mesas onde se comiam sopas de cavalo cansado, migas com um pedaço de toucinho dividindo uma couve e um nabo.

Num não momento de consciência de quebrar com a ditadura, a ditadura quebrou. Força anímica havia pouca, porque a mesma tinha sido drenada.

Houve uma sucessão de não momentos de consciência por parte da maioria de um povo.

Até haver consciência da libertação de um regime que mantinha campos de concentração reais e imaginários, para dissidentes do pensamento único e obrigatório para com o fascismo.

Às mulheres quase se lhes foi retirada a liberdade de pensamento.

Desses quase não momentos de ruptura, após diversas tentativas de libertação, com o apoio secreto de muitas mulheres, alguns militares corajosos e desobedientes, tomaram as rédeas e fizeram o possível.

Do possível nasceu o 25 de Abril de 1974, com muito poucas vidas a lamentar, que trouxe a liberdade também ao feminino. Sobretudo nele.

Com essa liberdade veio o crescimento.

Cinquenta anos depois, estamos num lugar diferente. Com muito trabalho pela frente. Sobretudo no pensamento.

Tenho um lamento, porém.

Passados cinquenta anos dessa liberdade em 1974, quando vi os tanques de guerra passar à minha frente, porque tinha caído a ditadura e terminava a guerra colonial, continuamos a crescer, nós mulheres Portuguesas.

Falta-me ainda ver a mulher Portuguesa pegar na mão da sua irmã mulher africana, preta, de origem Portuguesa (afinal, ao fim de quinhentos anos todas temos a origem de quem nos colonizou) e dizer-lhe:

– “só vou ter liberdade se formos juntas, não porque és exótica e combinamos bem, mas porque o direito à liberdade também te pertence, e tu também me representas”. Porque é sobretudo e também minha obrigação fazê-lo.

Só assim serei verdadeiramente livre.

Anabela Ferreira

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