Ontem o escritor João Tordo, filho de Fernando Tordo escreveu uma carta pública ao seu Pai que, como já todos sabem, aos 65 anos de idade, com 50 de carreira teve de tomar uma decisão, eventualmente uma das mais difíceis que tomou ao longo da vida. Deixar a companhia dos filhos, dos netos, deixar o seu País porque para ele e para a esmagadora maioria dos Portugueses a porta do futuro fechou e não tem data prevista de abertura.
Não foi apenas Fernando Tordo que sem justificação encontrou um País a regredir culturalmente, todos os agentes culturais deste rectângulo estão a ser lentamente encaminhados para um silenciamento forçado. Não, não é a crise! Há dinheiro, há muito dinheiro para ser queimado em casas do putedo, para ser torrado em concursos de qualidade duvidosa, para ser torrado em programas inqualificáveis. Dinheiro há mas para tudo o que sirva para embrutecer o Povo, para a cultura não!
Não venham tentar justificar o que não é justificável, não venham dizer que as audiências é que mandam por isso é mentira. Sempre que alguém promove iniciativas de cariz cultural as salas enchem portanto há fome de iniciativas culturais. Bem sei que um Povo inculto é mais maleável, mais fácil de levar, mais fácil de enganar.
Estive com Fernando Tordo há cerca de um mês, nessa altura já ele tinha tomado a decisão de, após meio século dedicado ao seu País, recomeçar de novo noutro País, noutro continente. Mas não pensem que por ter já essa decisão tomada estava abatido ou de mal com a vida, não estava. Talvez desiludido com o que estão a fazer ao nosso País, talvez magoado por ver que as décadas de evolução regridem à mesma velocidade que crescem os assessores com cartão azul e laranja. Mas acima de tudo com a garra e a força de quem sabe que venha quem vier podem torcer mas não nos vão quebrar.
Já referi, mas volto a referir, não é apenas Fernando Tordo a encontrar as portas fechadas há mais, muitos mais. Hoje a CMTV publicou uma reportagem com a cantora Dora para quem também as portas estão fechadas, também ela não pode dedicar-se à sua arte. Está a trabalhar num Mc Donald’s em Lisboa, é isso ou a fome.
Este é o caminho que estamos a percorrer porque para ele nos empurram mas claramente porque deixamos que nos empurrem.
Deixo-vos com a carta que João Tordo escreveu ao Pai e com um tema de Fernando Tordo que muito se adequa a este momento, “Adeus Tristeza”
Ontem, o meu pai foi-se embora. Não foi e já volta; emigrou para o Recife e deixou este país, onde nasceu e onde viveu durante 65 anos. A sua reforma seria, por cá, de duzentos e poucos euros, mais uma pequena reforma da Sociedade Portuguesa de Autores que tem servido, durante os últimos anos, para pagar o carro onde se deslocava por Lisboa e para os concertos que foi dando pelo país. Nesses concertos teve salas cheias, meio-cheias e, por vezes, quase vazias; fê-lo sempre (era o seu trabalho) com um sorriso nos lábios e boa disposição, ganhando à bilheteira. Ontem, quando me deitei, senti-me triste. E, ao mesmo tempo, senti-me feliz. Triste, porque o mais normal é que os filhos emigrem e não os pais (mas talvez Portugal tenha sido capaz, nos últimos anos, de conseguir baralhar essa tendência). Feliz, porque admiro-lhe a coragem de começar outra vez num país que quase desconhece (e onde quase o desconhecem), partindo animado pelas coisas novas que irá encontrar. Tudo isto são coisas pessoais que não interessam a ninguém, excepto à família do senhor Tordo. Acontece que o meu pai, quer se goste ou não da música que fez, foi uma figura conhecida desde muito novo e, portanto, a sua partida, que ele se limitou a anunciar no Facebook, onde mantinha contacto regular com os amigos e admiradores, acabou por se tornar mediática. E é essa a razão pela qual escrevo: porque, quase sem o querer, li alguns dos comentários à sua partida. Muita gente se despediu com palavras de encorajamento. Outros, contudo, mandaram-no para Cuba. Ou para a Coreia do Norte. Ou disseram que já devia ter emigrado há muito. Que só faz falta quem cá está. Chamam-lhe palavrões dos duros. Associam-no à política, de que se dissociou activamente há décadas (enquanto lá esteve contribuiu, à sua modesta maneira, com outros músicos, escritores, cineastas e artistas, para a libertação de um povo). E perguntaram o que iria fazer: limpar WC’s e cozinhas? Usufruir da reforma dourada? Agarrar um “tacho” proporcionado pelos “amiguinhos”? Houve até um que, com ironia insuspeita, lhe pediu que “deixasse cá a reforma”. Os duzentos e tal euros. Eu entendo o desamor. Sempre o entendi; é natural, ainda mais natural quando vivemos como vivemos e onde vivemos e com as dificuldades por que passamos. O que eu não entendo é o ódio. O meu pai, que é uma pessoa cheia de defeitos como todos nós – e como todos os autores destes singelos insultos -, fez aquilo que lhe restava fazer. Quer se queira, quer não, ele faz parte da história da música em Portugal. Sozinho, ou com Ary dos Santos, ou para algumas das vozes mais apreciadas do público de hoje – Carminho, Carlos do Carmo, Marisa, são incontáveis – fez alguns dos temas que irão perdurar enquanto nos for permitido ouvir música. Pouco importa quem é o homem; isso fica reservado para a intimidade de quem o conhece. Eu conheço-o: é um tipo simpático e cheio de humor, que está bem com a vida e que, ontem, partiu com uma mala às costas e uma guitarra na mão, aos 65 anos, cansado deste país onde, mais cedo do que tarde, aqueles que o mandam para Cuba, a Coreia do Norte ou limpar WC’s e cozinhas encontrarão, finalmente, a terra prometida: um lugar onde nada restará senão os reality shows da televisão, as telenovelas e a vergonha. Os nossos governantes têm-se preparado para anunciar, contentíssimos, que a crise acabou, esquecendo-se de dizer tudo o que acabou com ela. A primeira coisa foi a cultura, que é o património de um país. A segunda foi a felicidade, que está ausente dos rostos de quem anda na rua todos os dias. A terceira foi a esperança. E a quarta foi o meu pai, e outros como ele, que se recusam a ser governados por gente que fez tudo para dar cabo deste país – do país que ele, e milhões de pessoas como ele, cheias de defeitos, quiseram construir: um país melhor para os filhos e para os netos. Fracassaram nesse propósito; enganaram-se ao pensarem que podíamos mudar. Não queremos mudar. Queremos esta miséria, admitimo-la, deixamos passar. E alguns de nós até aí estão para insultar, do conforto dos seus sofás, quem, por não ter trabalho aqui – e precisar de trabalhar para, aos 65 anos, não se transformar num fantasma ou num pedinte – pegou nas malas e numa guitarra e se foi embora. Ontem, ao deitar-me, imaginei-o dentro do avião, sozinho, a sonhar com o futuro; bem-disposto, com um sorriso nos lábios. Eu vou ter muitas saudades dele, mas sou suspeito. Dói-me saber que, ontem, o meu pai se foi embora.
Fernando Tordo – Adeus Tristeza
[…] publiquei neste espaço um texto a propósito da carta ao Pai escrita por João Tordo ao seu Pai Fernando Tordo. A ideia inicial […]
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Fernando Tordo, pela sua coragem e enorme força de vontade, só merece a admiração e o aplauso por procurar noutro país aquilo que o seu lhe nega, a exemplo daqueles 200.000 que já seguiram nos últimos tempos o mesmo caminho. Pobre é o país que rejeita os seus filhos, que despreza a cultura, que descarta o saber! Até quando?
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