A gota de água foi a revelação do que aquele pacote continha…
As prendas da mamã sempre foram mais do que uma surpresa… Eram uma permanente provocação que se situava entre a angústia e o exoterismo da felicidade. Apareciam com embrulhos que me recordavam as descrições que se faz dos presentes ofertados em livros; em que o cuidado da imagética fala de papel crepe, permitindo-nos imaginar os tons pastel e o ruído do mesmo ao ser manipulado.
Eram aparições…
Entrava em casa e lá estavam… em cima da cama, na banca da cozinha, inerte num dos sofás da gigantesca sala desprovida de calor humano mas pejada de réplicas de móveis de época.
Habituei-me a dirigir-lhes um olhar respeitoso sem nunca saber se era observada por terceiros ou, até, se o próprio embrulho teria vida própria, sendo necessário, neste caso, um acréscimo de cuidados que não o permitissem sentir-se ofendido com o despudor com que o despiria. Um pudor intragável que cheirava a bafio e a medo… muito medo, confesso.
Lá dentro, depois de prestadas as necessárias reverencias, encontrava vestidos de renda antiga, pequenos alfinetes de cabelo que me remetiam para um mundo de riquezas de tal modo obsoletas que me causavam desconforto. A marquesa parira uma alma de criadita que não sabia usar sapatos acetinados! Tinha sempre a sensação de que a mamã tinha acesso a uma pequena Babilónia dentro do seu armário de nogueira. E eu, para além de olhar pela saúde familiar tinha que me vigiar as penas, não fosse despenhar-me compadecida da minha falta de genialidade estética.
Não havia perguntas… Olhava-me com um brilho orgulhoso nos olhos; um brilho de febres para as quais não existiam panaceias conhecidas. Eu vestia-os, colocando os longos caracois para o lado. Pedia-lhe ajuda para correr o fecho que nunca apertava o corpo sem que tivesse que suster a respiração.
“-Pareces uma princesa. Menos dois quilos e fica-te perfeito.”
Noutras ocasiões havia chocolates. Bombons de formas arredondadas cujo aroma era tão intenso que deixava no ar a suspeita de que poderia morrer com uma overdose de cacau, caso me decidisse come-los.
A mamã aguardava que eu desistisse de observar os pequenos pecadilhos castanhos e, quando me via, pelo canto do olho, colocá-los de lado, aparecia, magra, airosa, indecentemente confortável na sua pele, para retirar o prazer redobrado e os sentir, travessos, com a ponta da língua, enquanto me dirigia palavras desconexas e pedidos de desculpa pelo esquecimento de que me encontrava em dieta. Dieta imposta por um guarda-roupa que escolhera por sua mão e que me apertava os órgãos e aprisionava a alma.
Que não fique a ideia errada de que este ritual servia, unicamente, para sustento do ridículo que era a subjugação da continuidade da beleza física da progenitura! Nada disso. A mamã amava-me… e estes mimos eram, por degradada que aparente a mimosice do acto, imbuídos de uma vontade absoluta de me agradar. Através do incentivo de me transformar na magra que a gorda em mim deglutira!
A questão é que, não me agradavam.
O facto de o passar do tempo não me trazer o conforto óbvio da relação romantica, desejada pela meninice eternizada neste espírito, não ajudou ao meu descanso. Quando fiz 30 anos comecei a observar revistas de moda assinaladas em vestidos de noivas com os mesmos traços dos vestidos que me haviam sido dados a experimentar em criança.
Mas, aquele último presente foi a gota de água.
Nada nos pode fazer recordar mais o passar tonitruante do tempo do que a evolução de um determinado brinquedo.
Eu não era grande fã de Barbies, não pelo conceito estético da boneca em si mas porque o cabelo que lhes implantavam não era lavável, a não ser que nos sujeitássemos a nunca mais o desembaraçarmos ou a ficar com uma top model careca em miniatura… Como se isto não bastasse, vinha sempre numa caixinha pejada de acessórios impossíveis de manter durante mais que as primeiras horas: anéis de milímetros, sapatinhos de borracha em tons insuspeitos e que nunca se mantinham próximos um dos outro por mais de cinco minutos. Mas, como dizia, não sendo grande fã desta boneca, morria de amores pelas Barriguitas. Bonecas robustas mas ainda assim, suficientemente miudinhas para me darem o conforto de as perfilar na caminha sem que me ocupassem muito espaço ou não se deixassem manipular.
Tinha dezenas delas….
Como tudo na vida, as Barriguitas não mantiveram a sua forma inicial. Têm agora um rosto que, continuando arredondado, achata antes de se ligar ao pescoço e uma maquiagem excessiva que, emoldurada por uma cabeleira farta e sedosa, recorda a insuportável figura de uma Annie boo boo.
Cheguei a casa, retirei os sapatos que me apertavam os tornozelos inchados pelo calor que se fazia sentir num dia de verão. A mamã apareceu à porta da cozinha. Os seus cabelos brancos compridos, bem cuidados pelas incontáveis idas à cabeleireira, a cintura estreita ornamentada por um grande laço azul do mesmo tecido do vestido claro que trazia. Um sorriso de dentes brancos demais para a idade. Um embrulho de fitas rosadas na mão.
Bufei audivelmente o que me mereceu um olhar de repreensão muda. A mamã sempre me proibira sons que fizessem adivinhar estados de espírito.
Cuidadosamente, de pés descalços, encarquilhando os dedos para que ela não observasse o verniz das unhas a descascar, aproximei-me.
“-Obrigada mamã.”
Um momento de silencio em memória da minha paz de espírito.
“- Não vais abrir?”
Um momento de silencio em memória da minha infância.
Abri o embrulho com cuidado para que não se rasgasse, demorando-me a encontrar os cantos da fita cola… Encontrei, dentro de uma caixinha mimosa, igual à das bonecas que eu detestava; uma jovem Barriguita, cuidada, de formas modernas e tenebrosas vestida de rendas e tules.
“- Gostas? É a Barriguita noiva!”- disse-me uma voz que me chegava distante e com uns agudos demasiado fortes para o meus ouvidos.
Foi a segunda vez que abandonei a família à sua sorte.
Hoje, passados anos, a mamã recebe prendas minhas… ternas. E o perímetro abdominal aumentou.
“- Filha estou com uma barriga enorme…”
Nem vingada me senti.
Até que acrescentou:
“- Pelo menos estou casada!”
E ainda assim, vi-me feliz… porque há momentos da vida da gente em que só queremos que a pele do outro o retenha tal como sempre foi… ainda que nos atice!
Rita Maia
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