A arbitrariedade da justiça (por Carlos Matos Gomes)

Carlos Matos GomesEu não recearia muito as más leis se elas fossem aplicadas por bons juízes.(Anatole France)

 “À justiça o que é da justiça, à política o que é da política”. Compreendo as circunstâncias e aceito que não se devam agitar águas quando estão a ferver, mas discordo do princípio e já o manifestei antes, pelo que me sinto à vontade para o criticar de novo e nesta ocasião. Não sou sapateiro e não quero subir da fivela, mas não entendo que a independência e a autonomia do poder judicial sejam um exclusivo dos técnicos do Direito. É um assunto da sociedade, logo da política. Ninguém se lembrou de dizer “à engenharia o que é da engenharia” quando caiu a ponte de Entre-os-Rios, “nem de dizer à medicina o que é da medicina” quando uns tantos doentes cegaram no Hospital de Santa Maria. Já Churchill afirmou que “a guerra é um assunto sério demais para ser deixado aos militares”.

O exercício do poder político contém o poder de julgar e de condenar. Julgar e condenar são acções eminentemente políticas.

Ao longo da história o poder de julgar os outros membros da sociedade, impondo-lhes uma verdade, uma norma de comportamento, de determinar o que é o bem, de acusar alguém de herege, de subversivo, de corrupto foi exercido por castas de vários tipos, aristocratas, sacerdotes, guerreiros, em seu proveito e sempre de acordo com os seus interesses. Parece que chegou a vez da casta dos juízes e eu sou contra.

As sociedades europeias liberais do século XIX dispersaram os poderes do Estado, entre eles os de resolver os conflitos apresentados pelas pessoas, naturais ou jurídicas, que atribuíram a um corpo tecnicamente especializado, o judicial. Ficou no entanto claro que o magistrado nada mais dispunha do que um poder estatal delegado. Era o Estado (ou o grupo que o dominava) quem impunha a norma e nomeava os magistrados. No fundo, o Estado liberal e laico atribuía ao sistema judicial a tarefa da pacificação social e seguia o pensamento de Montesquieu de que o poder judiciário deveria ser neutro e despolitizado. O juiz seria apenas la bouche de la loi.

A autonomização do poder judicial só se desenvolveu na Europa continental na segunda metade do século XX, entre outras razões pelo aprofundamento da vida democrática proporcionada pelas novas tecnologias, pela educação, liberalização dos costumes, globalização económica e financeira, distensão ideológica após a queda do muro de Berlim, que provocaram uma crescente procura da intervenção do poder judicial em questões que envolvem decisões sobre princípios, o que transformou o poder judicial em ator político de primeiro plano, em vez de árbitro social.

À autonomia correspondeu a degradação da imagem dos agentes judiciais independentes do Estado. Esta imagem de deus ex machina vai-se esvaindo à medida que juízes e magistrados são chamados a decidir sobre questões e problemas políticos. A crescente politização do direito, e a judicialização da política e das relações sociais fazem com que os juízes e os outros magistrados se assumam hoje como a mais determinante e perigosa das castas no poder, isto porque o juiz, individualmente, e o sistema judiciário institucionalmente, exercem a atividade nuclear de representação do interesse público sem controlo democrático, funcionam como as células cancerígenas: têm uma elevada probabilidade de degenerescência e podem ser, mesmo contra vontade, o cancro do sistema democrático.

O antídoto para este perigo está na obrigatoriedade de prestação de contas. Esta devia começar pela publicidade da ação dos agentes e das instituições judiciais perante a sociedade. A informação é uma questão de cidadania. É uma questão política.

Se aceitarmos que juízes podem fazer escolhas de princípios para a sociedade, partimos da premissa que o sistema judicial tem uma natureza política. Logo tem de ser politicamente controlado e responsabilizado. A prestação de contas à sociedade é um princípio fundamental para garantir a legitimidade política em democracias representativas e liberais. A arrogância e o secretismo sem justificação a que temos assistido são intoleráveis a não ser em regimes totalitários. São uma atitude politicamente inaceitável.

Numa democracia, a independência do poder judicial tem como contrapartida ele ser uma arena de debate público, onde questões controversas que envolvam valores fundamentais são debatidas e as decisões são publicamente justificadas. É o oposto a estes princípios do Estado de Direito aquilo a que temos assistido por parte dos agentes judiciais.

O problema da prestação de contas envolve duas ordens de problemas políticos: uma referente ao processo de decisão em si e outra que diz respeito aos processos de gestão do sistema judiciário, em particular às suas prioridades.

Num sistema judiciário democrático é indispensável que as decisões judiciárias, principalmente aquelas que dizem respeito a princípios fundamentais, ocorram num contexto de ampla publicidade e com respeito inequívoco pela Constituição. As acções dos agentes judiciários, como qualquer outro poder político republicano, devem ser controladas pela sociedade, que necessita de conhecer os fundamentos delas. O contrário disto, o segredo injustificado e a traficância de informações são manifestações intoleráveis de arbitrariedade e parcialidade, da politização da justiça no seu pior sentido, da justiça manhosa.

Quanto à gestão do poder judiciário, a sociedade tem o direito de conhecer os critérios e as prioridades de acção dos seus agentes. As prioridades resultam de escolhas políticas e não devem ser os agentes judiciais a estabelecê-las, mas a executá-las, sob pena de serem, como parece ser, os juízes e os procuradores a decidirem quem e quando são atirados para a condenação pública determinadas pessoas ou instituições.

É vital estabelecer formas de controlo interno e controlo externo ao poder judicial e esta e estas são questões políticas, uma tarefa da política.

(Texto publicado pelo Coronel Carlos Matos Gomes no blog Jardim das Delícias)

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