As falácias dos ideólogos do capitalismo

Uma das teorias mais frequentes, e simultaneamente mais hábeis, para os capitalistas e seus ideólogos de serviço procurarem justificar não só a manutenção como também o agravamento das condições (de salários, de horários de trabalho, de precariedade de vínculos, etc.) dos trabalhadores é a de, dentro da velha lógica de dividir para reinar, denominar de privilegiados os que ainda dispõem de alguns direitos e os apontar aos restantes, em particular aos mais jovens e com piores condições, como os “responsáveis” pela sua situação.

Essa teoria, na qual, aliás, se vai depois basear em larga medida o discurso e a “dogmática laboral” de tais ideólogos, assenta em duas ficções, que se impõe desmontar e desmascarar.

A primeira é a da chamada “segmentação do mercado de trabalho”, buscando com tal linguagem conceder um verniz científico à diferenciação de condições entre os trabalhadores com antiguidades mais elevadas, vínculos mais estáveis, níveis de direitos mais altos e, regra geral, com maior experiência de organização e de luta colectivas e aqueles outros trabalhadores, normalmente mais jovens e ainda que com maiores qualificações, com contratos precários, níveis salariais baixos e forçados a trabalhar em condições próprias do século XIX (horários de 10, 12 ou mesmo mais horas por dia, trabalho aos fins de semana e feriados, ausência de locais e tempos de trabalho fixos, exigência de contactabilidade e disponibilidade a todo o dia e a toda a hora, contratos susceptíveis de terminarem a todo o momento, etc.).

Apontando as condições dos primeiros como “leoninas e inusitadas” – como se ter um horário minimamente certo e limitado no tempo e um vínculo com um mínimo de estabilidade fosse um escândalo e um abuso!?… – trata-se de dizer aos mais jovens e hiperexplorados que a culpa é afinal dos “velhos protegidos”, que estes serão uma “elite” de “burgueses privilegiados”, que por isso são quem faz os protestos e greves, os quais seriam sempre injustos e cujas consequências e inconvenientes seria, porém, a dita “plebe laboral” a ter de suportar.

E, desta forma, quando os mais espantosos progressos científicos e tecnológicos (a informatização, a robotização e o desenvolvimento da inteligência artificial, entre outros) deveriam permitir, não milhões de despedimentos (necessários, todavia, para manter as elevadíssimas taxas de lucro dos grandes interesses financeiros…), mas sim a redução para metade, ou até menos, da duração e da penosidade, física e intelectual, das actuais jornadas de trabalho, do que se trata porém é de, ainda por cima sob a provocatória invocação do princípio da igualdade e das alegadas exigências da produtividade, procurar nivelar por baixo e, sob o pretexto de pagar a dívida pública e diminuir o défice (e é também para isso que eles servem…), retirar aos trabalhadores os (já poucos) direitos de que alguns deles ainda dispõem.

Por isso mesmo, as reivindicações patronais de sempre – desde as do chamado “Direito do Trabalho da crise” do final dos anos 70 do século passado, aquando da chamada crise do choque petrolífero de 73/74, até às denominadas “reformas laborais da Tróica” após a crise financeira de 2008 – consistiram sempre, no essencial, no mesmo: diminuição de salários e outras condições remuneratórias (quer directamente, quer sob a forma de aumento dos tempos de trabalho), facilitação e embaratecimento dos contratos precários (designadamente a prazo) e dos despedimentos, e, finalmente, a diminuição e restrição, senão mesmo destruição, dos direitos e prestações sociais mais elementares dos trabalhadores e dos pobres.

Aquilo que, todavia, estes teóricos do capitalismo financeiro significativamente nunca querem que se discuta é que não existe nenhuma evidência (inclusive nos sempre tão citados relatórios da neoliberal OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) de que tais medidas hajam conduzido, muito em especial em países como Portugal, a qualquer aumento de produtividade, bem antes pelo contrário, pois mantiveram ou até diminuíram a mesma produtividade e aumentaram foi a parcela do rendimento apropriado pelo capital.

E, claro, estes tais teóricos escamoteiam também que a primeira e a principal causa da dita “segmentação” resulta do capitalismo financeiro global que fez deslocar o essencial da actividade da produção para os países ditos “emergentes”, que estão a fazer os seus processos de industrialização e de acumulação primitiva e que reservou para os países de economia capitalista mais avançada os sectores dos serviços e dos saberes mais qualificados (como os dos bancários, dos médicos, dos engenheiros, dos arquitectos, dos técnicos da informática), cujos portadores estão hoje a ser expropriados desses mesmos saberes e a ser sujeitos a um processo crescente de proletarização. Ao mesmo tempo que, para manter os seus astronómicos lucros, esse mesmo capitalismo financeiro cria um exército crescente não só de não-empregados, mas também de não-empregáveis, ou seja, de trabalhadores jovens que completam os seus cursos e adquirem qualificações, mas que, para se garantirem as fabulosas taxas de lucros dos grandes interesses financeiros, não conseguirão nunca um emprego ou, pelo menos, um emprego compatível com as competências que acabaram de adquirir.

Outra das fábulas que os ideólogos neoliberais sempre invocam, mas também sem qualquer razão, é a de que a fonte de todos os males seria o arrastar no tempo de uma legislação laboral pretensamente demasiado protectiva (ou “rígida”, como eles lhe chamam) que levaria os pobres dos patrões portugueses a, estando em concorrência com economias muito mais flexíveis (leia-se, com elevada desregulação laboral), terem de ser criativos na ilegalidade e na fraude, ou seja, recorrendo a contratos a prazo e a recibos verdes fraudulentos (que, juntos, significam mais de um milhão e duzentos mil trabalhadores), a trabalho não declarado ou clandestino (que já representa bem mais de 20% do PIB),  a pagamentos encobertos e difíceis de provar porque feitos por baixo da mesa ou disfarçados de “quilómetros” ou “abonos”, etc.

Ora, como já os estudos do perito da União Europeia Colin Crounch demonstravam há mais de 15 anos e os mais recentes Índices de Protecção Laboral da Europa, divulgados no Livro Verde das Relações Laborais de 2016, comprovam, e de forma evidentíssima, após as já citadas reformas laborais da Tróica – que fizeram de Portugal o lastimável recordista europeu da “queda do índice de protecção no emprego de trabalhadores com vínculos permanentes em caso de despedimento individual (menos 0,87 entre 2010 e 2013)” –, que é completamente falso que, designadamente em matéria de contratação precária (contrato a termo) e de despedimentos por causas ditas “objectivas”, Portugal tenha a legislação laboral mais apertada e inflexível da Europa.

Por um lado, a prática quotidiana é muito mais flexível ainda que a própria legislação devido ao seu elevadíssimo grau de inefectividade (desde a inoperacionalidade quase absoluta da ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho até ao custo e difícil acesso e à fraquíssima resposta por parte da Justiça Laboral e ainda a mecanismos legais como, por exemplo, o da necessidade da devolução da indemnização de antiguidade ao patrão por parte do trabalhador que queira impugnar um desses despedimentos).

Por outro, o certo é que, mesmo do ponto de vista estritamente jurídico-formal, é muito mais fácil, e muitíssimo mais barato (recorde-se que, actualmente, as indemnizações de antiguidade são de 12 dias de vencimento base por cada ano) fazer um despedimento colectivo em Portugal do que na Alemanha ou um despedimento por extinção do posto de trabalho no nosso país do que em Espanha, por exemplo.

Para além de que Portugal é o 5º país da UE com índice de sinistralidade laboral mais elevado e o 2º em sinistralidade laboral mortal. E em que um trabalhador trabalha em média 1865 horas por ano, ou seja, mais 365 que no Luxemburgo e mais 565 que na Alemanha.

Assim, nem é de todo verdade que tenhamos uma legislação laboral demasiado “rígida” ou “protectiva”, nem muito menos que a responsabilidade da elevada precarização e exploração dos trabalhadores mais jovens seja da responsabilidade dos trabalhadores mais velhos e experientes contra quem os capitalistas procuram, e por todos os meios, que a revolta e a energia dos primeiros se desvie.

Os trabalhadores, todos os trabalhadores, os mais velhos e experientes e os mais novos, os ainda empregados, os já desempregados ou até reformados ou os ainda não-empregados, devem compreender que é no sistema de relações que permite que alguém os explore e oprima a todos que reside afinal a verdadeira raiz dos seus problemas.

E devem, por isso, saber unir-se e organizar-se para combaterem consequentemente pelos seus interesses comuns.

E os sindicatos, comissões de trabalhadores e outras estruturas representativas dos mesmos trabalhadores – que são absolutamente indispensáveis, pois a unidade e organização destes é a sua principal arma – têm também de fazer uma séria reflexão, quer sobre os novos desafios (e também as novas possibilidades) que o capitalismo financeiro global traz à organização e à luta dos trabalhadores, quer sobre a forma como eles próprios têm actuado até aqui.

A organização capitalista da produção nos anos 60 e 70 – com grandes concentrações industriais, de milhares e milhares de operários e trabalhadores, com horários e locais fixos – facilitava grandemente o próprio desenvolvimento da acção sindical.

Hoje, com a exteriorização e a terciarização da actividade económica e a pulverização e dispersão de muitas das estruturas produtivas, não é mais possível continuar a agir e a tentar mobilizar como naquela época. A chantagem da ameaça de deslocalização de fábricas e empresas para países com ainda maior grau de desregulação das relações de trabalho tornou-se permanente. A experiência demonstrou que aceitar vender tudo, designadamente em termos de contratação colectiva, em troca de mais uns míseros tostões nas revisões salariais, e o aceitar do premiar dos dirigentes e delegados sindicais com “prémios” e “comissões” ou “subsídios de chefia”, por exemplo, resultou muitas vezes na transformação dos sindicatos em estruturas anquilosadas dirigidas por elementos “profissionais do sindicalismo”, totalmente desligados da actividade prática e daqueles que dizem representar. Com uma visão corporativa de defesa, quando muito, dos que ainda estão ao serviço activo, esquecendo quer os que já lá não estão, quer aqueles que ainda não conseguiram e, provavelmente, nunca conseguirão lá entrar.

Ora, o conhecimento das novas formas de organização do Capital e o domínio das novas realidades, a ligação ao saber mais avançado da sociedade, o permanente combate pela unidade de todos os trabalhadores, quer a nível nacional, quer a nível internacional, o não alimentar de ilusões reformistas acerca do mundo do Trabalho e do Direito do Trabalho, a capacidade de luta e de imaginação para chamar todos os trabalhadores a participarem na tarefa de construir uma sociedade sem exploração nem opressão devem, assim, constituir a  “estrela polar” orientadora de toda a futura acção sindical.

Porque, como a História se tem sempre encarregado de demonstrar, a Humanidade nunca colocou a si mesma nenhum problema que não fosse depois capaz de resolver e ultrapassar. E o primeiro passo para o conseguir fazer é precisamente o de colocar e debater, abertamente e sem preconceitos, todas as questões e assim encontrar as formas de as resolver.

António Garcia Pereira

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