As nossas crianças passam fome… Mas para o compadrio há dinheiro! (por Jacinto Furtado)

FomeEsta “carta” que partilho convosco foi escrita por Valentina Ferreira e relata um momento por ela vivido no Funchal, mas infelizmente podia passar-se em qualquer cidade deste País onde um Povo apático, resignado, acobardado baixa a cabeça perante todos os atropelos que os feudais senhores lhes fazem. Um Povo que permite que as suas crianças passem fome é um Povo que perdeu a sua identidade, perdeu a sua estima, perdeu o respeito e se encaminha a passos largos para perder o direito de ser chamado Povo.

Ramalho Eanes há tempos disse, a propósito do aumento dos impostos, poder ainda ser mais carregado mas que lhe garantissem que essa carga serviria para que ninguém passasse fome em Portugal. Palavras vãs, essa carga, a dele e a nossa, serve para as negociatas continuarem a ser feitas, servem para as jogadas continuarem ao mesmo ritmo, servem para aumentar o lucro dos bancos mas não servem para alimentar quem tem fome.

Não vou fazer mais comentários, leiam a “carta” que aqui transcrevo na integra e tirem as vossas próprias conclusões. Tiradas que sejam as conclusões pensem se é isto que querem para o futuro do nosso País. Decidam se é este o que desejam para os vossos filhos, para os vossos netos.

Caros senhores do Governo: ontem, ao sair do autocarro, vi uma menina. Rosto de 15, corpo de 10. Sorri para ela, dois segundos e segui caminho. Veio ao meu encontro: mão estendida e olhos de vergonha no chão. Perguntou se não tinha moedas. Eu, que estou farta que me venham pedir nos estacionamentos dos supermercados e a cada esquina do Funchal, endureci a voz e questionei-a para quê queria o dinheiro.

– Tenho fome.

Fiquei eu envergonhada. Muito.

– O que queres comer?

– Tanto faz. Pode ser pão.

Disse-lhe para vir comigo. Ela veio, aos pulinhos, sem dizer nada. Levei-a ao Pingo Doce, fiz-lhe um prato decente e sentámo-nos. Mastigou sem saborear, sem respirar. Disse-lhe três ou quatro vezes que podia comer devagar, que aquilo era dela, para ela. Mas só nas últimas garfadas vi-a realmente desfrutar da comida: já estava com o buraco da fome tapado e podia, então, experimentar os sabores com calma. Deixei-a acabar para conversarmos. Disse-me ter nove anos.

Caros senhores do Governo: nove anos, às oito e pouco da noite, no Inverno, sozinha, na rua. Porque tinha fome.

– Onde estão os teus pais?

– A minha mãe está em casa. O meu pai está em “Jer” (presumo que seja Jersey).

– E estão difíceis as coisas em casa?

– Sim. A minha mãe costumava fazer limpezas mas agora já não há muitas casas para limpar e então ela só vai a uma. E o meu pai foi trabalhar para “Jer” mas não tem conseguido mandar dinheiro estes últimos tempos.

– E tens irmãos?

– Sim, cinco.

– Assim pequenos como tu?

– Tem um com dois, outro com quatro, outro com sete, outro com treze e outro com quinze.

Olhei melhor para ela. Era bonita; lindíssima se penteasse o cabelo. Tive medo. Caros senhores do Governo: nove anos, à noite, na rua. Uma menina com fome, acessível, necessitada. Tive muito medo.

– E eles também pedem dinheiro?

– Sim, cada um tem que cuidar de si, não é?

Não, não é. Não deveria de ser. Caros senhores do Governo: as crianças são para serem cuidadas.

– Costumo pedir a quem parece simpático – continuou. Sinais de alerta na minha cabeça.

– Sim, mas há pessoas que parecem simpáticas mas depois fazem coisas más. Por exemplo, há pessoas que só ajudam se lhes derem algo em troca. Já te aconteceu?

Ela pensou. E eu agoniava por dentro.

– Houve uma vez que uma vizinha pediu-me para levar muitos sacos ao lixo e deu-me dois euros.

Sorri-lhe.

– Eu sei que há homens que querem sexo e dão dinheiro – disse-me, com a voz mais baixa.

Senti uma pontada na cabeça.

– Como sabes?

– A minha mãe disse que podíamos roubar e pedir. Roubar só a quem tiver mais que nós. Mas nunca fazer sexo. Está sempre a dizer isso. É bastante chata porque eu já lhe disse que nem sequer sei fazer sexo.

Caros senhores do Governo: já imaginaram o que é uma mãe dizer aos filhos que roubar e pedir pode ser? Já imaginaram a angústia desta mãe, todas as noites, a pensar que os filhos, por precisarem, podem cair no vício da prostituição?

– Já sabes que as mães são assim porque se preocupam connosco.

– A tua também te diz para não fazeres sexo pelo dinheiro mesmo que tenhas muita fome?

Caros senhores do Governo: o que se responde a isto?

– Sim, diz….

– Então é chata como a minha – sorriu.

Nesse momento, começou a mexer-se na cadeira. Perguntei-lhe se queria ir embora. Disse-me que sim, antes que ficasse muito tarde. Pedi-lhe para vir comigo. Comprámos pão de forma, manteiga e leite. O saco quase que era maior que ela – mas não do que o sorriso e o brilho nos olhos.

– A minha mãe vai ficar contente! – e olhou-me demoradamente. – Gosto muito dos teus brincos.

– Ah, gostas?

– Sim – levou a mão à orelha. – Eu tinha uns dourados em pequena, que a minha madrinha deu-me, mas a minha mãe teve que vender. Fiquei menos vaidosa. A minha mãe diz que essas coisas agora não importam.

Tirei os brincos e coloquei-os nos buraquinhos quase fechados dela. Caros senhores do Governo: eu tinha diante de mim uma menina que deixara de ser menina para crescer à pressa nas curvas da crise, palavra que já me causa vómitos. Ela suspirou.

– Vou guardá-los – e tirou-os à pressa. – Para quando casar.

– Mas isso ainda falta muito tempo – admirei-me. – Já pensas nisso?

– Eu sei que falta algum tempo – disse algum e não muito. – Mas é menos uma coisa que tenho que comprar. Mas ele tem que ter dinheiro porque não quero que os meus filhos passem fome. Quero ter dois filhos – e espetou-me dois dedos diante dos olhos.

Caros senhores do Governo: uns brincos rafeiros, de plástico, vermelhos. Para o casamento de uma menina que já não era menina e que tinha o plano bem traçado de casar com um homem rico.

– Olha, tu queres que eu fale com umas pessoas para tu e os teus irmãos poderem ir para um sítio seguro enquanto a vossa situação está assim?

Vi o pânico na expressão.

– Não! A minha família é feliz. Não quero separar-me deles. Isto vai mudar. O meu pai prometeu – meteu a mão na cintura, muito ofendida. – O meu pai faz sempre o que diz.

Caros senhores do Governo: eu espero que vocês permitam que este pai cumpra o que prometeu à filha. É que vocês já lhe tiraram tudo: deixou de ser criança e de ter os pais juntos, obrigam-na a mendigar na rua e a passar fome. Não lhe tirem, também, o orgulho em ter um pai que cumpre o que promete.

Caros senhores do Governo: dizem as mulheres da minha família que a vida é uma rodinha. Que o que fazemos aos outros, seja de bom ou de mau, volta sempre – mas sempre mesmo. Portanto, algum dia, em qualquer circunstância, em alguma vida, os senhores vão receber aquilo que estão a dar: miséria, desconforto, sofrimento e a impossibilidade de serem quem querem ser.

Caros senhores do Governo: só vos desejo que a vida seja muito cruel convosco.

Cumprimentos,

Valentina Silva Ferreira

Leram? Sentiram-se bem? Vão continuar a permitir que as nossas crianças sejam maltratadas?

2 comentários a “As nossas crianças passam fome… Mas para o compadrio há dinheiro! (por Jacinto Furtado)”

  1. Vasco diz:

    Vou ser criticado mas…

    “- Tem um com dois, outro com quatro, outro com sete, outro com treze e outro com quinze.”

    O Governo tem culpa dos pobres andarem a fazer filhos a torto e a direito? então eu que vivo na classe média ainda acho que não tenho o suficiente para ser pai e estes montes de merda metem para o mundo uma quantidade de crianças a passar fome e o governo é que tem culpa?

  2. José Novais diz:

    É de arrepiar…
    Vislumbra-se que esta história é uma de entre milhares iguais ou piores … e passam- se aqui ao lado de nós que nos dizemos civilizados. E que votamos e tudo. E que somos religiosos. E com uma conduta cívica. E que GOVERNADOS SOMOS, por quem (e nós também ) consente que ocorram vivências destas. Tenho vergonha de nós…

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