As novas polícias de defesa do Estado – ACT e DGERT

Já eram, porventura, conhecidas por alguns, as técnicas de manipulação em massa e de intoxicação da opinião pública, de par com actuações perfeitamente policiescas, que o governo de António Costa vinha utilizando para fazer face a processos de luta e a greves com que lida manifestamente mal e que quer sufocar e esmagar à força. Mas decerto aquilo de que muitos não teriam a ideia exacta era o ponto a que as coisas estão a chegar e o modo como organismos do trabalho encarregues seja de fiscalizar o cumprimento das leis do Estado (como a ACT – Autoridade para as Condições do Trabalho) ou a actividade económica (como a ASAE – Autoridade de Segurança Alimentar e Económica), ou ainda o funcionamento das instituições e serviços de saúde (como a IGAS – Inspecção Geral das Actividades em Saúde), seja de promover a conciliação e mediação nos conflitos laborais (como a DGERT – Direcção Geral do Emprego e das Relações de Trabalho) estão, afinal, a ser utilizados como verdadeiros braços armados do Governo contra aquelas pessoas e aquelas organizações e instituições cuja actuação não agrade ao mesmo Governo.

Porque os reaccionários de todos os tempos, e sejam quais forem as vestes que eles enverguem, sempre contaram, e contam, com que a memória do Povo seja curta, convirá aqui recordar desde já a chusma de miseráveis provocações e calúnias produzidas no início deste ano de 2019 contra os enfermeiros em luta, contra a sua greve e contra o respectivo financiamento, culminando toda essa campanha com o tonitruante anúncio de que o Executivo já encarregara a ASAE de ir investigar as supostas coisas gravíssimas que se insinuava estarem a ser praticadas no crowdfundingda greve (como, por exemplo, a de que a referida greve dos enfermeiros  estaria era a ser financeiramente suportada não só pela Ordem dos Enfermeiros como, sobretudo, pelos grupos privados da Saúde, numa operação para liquidarem o Serviço Nacional de Saúde). Porém, passados cerca de 7 meses, e apesar de todas as manchetes feitas então com tal “notícia”, nem uma só irregularidade foi descoberta das milhentas que supostamente existiriam.

Seguiu-se uma hollywoodesca operação policial de ataque a uma Ordem (a dos Enfermeiros), coisa nunca vista nem depois nem sequer antes do 25 de Abril. Uma vez mais para, logo após o já habitual prévio “ataque de artilharia pesada”, imputando nos jornais e televisões a essa mesma Ordem e respectivos dirigentes as mais diversas e inconcebíveis ilegalidades, se lançar contra aqueles a IGAS, com inspectores que nada têm de independentes, até por serem quadros directamente dependentes da própria Ministra da Saúde (um deles pertence ao INEM e outro já opinara anteriormente sobre a matéria em causa, estando assim legalmente impedido de intervir no respectivo procedimento), numa propositadamente espectacular, intimidatória e obviamente mediatizada investida contra a mesma Ordem. Chegando-se mesmo ao ponto de ser produzido um (assim mais que previsível) relatório final sem que a mesma Ordem tivesse podido exercer o contraditório relativamente ao respectivo teor, mas cujos trechos logo foram deixados “escorregar” para a imprensa “amiga” – e são então as pessoas do PS que se queixam (e aí, bem) das cirúrgicas violações do segredo de Justiça no processo de José Sócrates?!…

Seguiu-se nova operação, em tudo similar a estas, no caso das greves dos motoristas das matérias perigosas. Com uma propositada e programada utilização da dramatização e do alarmismo social, os habituais assassinatos de carácter dos dirigentes e das organizações que escapam aos controles tradicionais das centrais sindicais do regime, a escandalosa definição dos serviços mínimos muito próximos ou até superiores aos serviços máximos, a provocação de incidentes e de situações de pretensos incumprimentos dos ditos serviços mínimos, para com isso se justificar não só o decretamento de sucessivas requisições civis (depois de em 2005 terem sido decretadas 2 requisições civis contra os oficiais de Justiça em greve e de em 20/4 ter sido decretada a requisição civil dos trabalhadores da TAP pela greve marcada para o final de Dezembro desse ano, só voltou a haver requisições civis em 2019, mas neste ano elas já vão em 3!), como – pasme-se! – a utilização da tropa e das polícias para substituir grevistas (como ocorreu na greve dos camionistas, com a mobilização de militares e elementos da GNR para conduzirem camiões em substituição dos grevistas).

Deste modo, o Governo do democrata Costa, perante o crescendo de pré-avisos de greve (de Janeiro a Julho deste ano eles já somaram 663, representando um aumento de 75% relativamente a igual período de 2018, sendo que – contrariamente ao que sempre prega uma certa contra-informação… – 542 desses períodos de greve ocorreram fora do sector empresarial do Estado), julgou assim ter descoberto a “fórmula mágica” para abolir na prática o direito à greve: recorrendo não apenas à abusiva e exagerada definição de serviços mínimos e às requisições civis (e até já fala em mais que ilegais e inconstitucionais requisições preventivas…), como também à utilização “científica” da manipulação, da calúnia, da mentira, de descredibilização, das operações de homicídio de carácter. Os ataques miseráveis na net que se sucederam recentemente contra a professora Carmo Miranda Machado – que ousou, num programa televisivo de perguntas a políticos, questionar António Costa sobre as falhas e irregularidades do Estado face às escolas e a situação miserável em que muitas delas se encontram – são bem elucidativos da existência nas chamadas redes sociais de uma verdadeira tropa de choque ao serviço do partido do Governo para abater quem quer que seja que se atreva a criticar Costa e seus pares. 

Tudo isto a par de actuações absolutamente incontroladas do ponto de vista democrático dos diversos serviços de informações, incluindo o SIS mas também os serviços próprios das várias polícias, acções “musculadas” das mesmas polícias contra os trabalhadores em greve (como já sucedera, recorde-se, com a polícia de choque contra os estivadores em luta no porto de Setúbal) e à utilização, como seus autênticos “braços armados”, dos vários serviços e organismos oficiais, desviando-os por completo das suas atribuições e competências próprias e tornando escandalosamente o partido dos patrões mais cavernícolas a actuar no nosso país (desde a ANTRAM até à Ryanair).

A Ryanair – que acintosamente mantém a sua postura ilegal de não respeitar os direitos, legalmente estabelecidos, dos seus tripulantes (nomeadamente em matéria de parentalidade, de férias e de subsídios) –, contra lei expressa, arroga-se definir unilateralmente “serviços mínimos”, substituir, perseguir disciplinarmente e até despedir trabalhadores grevistas (estão 12 suspensos em processos visando o seu despedimento), do mesmo passo que desde há cerca de 2 anos não passa facturas com número de contribuinte aos respectivos clientes.

A Autoridade Tributária (AT) – a tal que persegue implacavelmente os pequenos contribuintes, mas que em 3 anos (2016 a 2018) deixou fugir, sem pagarem quaisquer impostos, 30.000 milhões de euros para as offshores– vai permitindo esta escandalosa violação da lei.

Nem ACT, nem DGERT mexem uma palha para impor à Ryanair o cumprimento das leis laborais a que está obrigada.

E o Ministério Público nada vê de ilegal em tudo isto, nada promove e muito menos anuncia a este respeito. O mesmo Ministério Público que se apressou não só a produzir pareceres favoráveis ao Governo nos casos das greves dos enfermeiros e dos motoristas, como a intentar, em plenas férias judiciais, uma acção (que tem natureza não urgente) visando a extinção do Sindicato dos motoristas de matérias perigosas e, mais do que isso, a publicitar por todos os meios esse mesmo processo, fortalecendo assim a estratégia de descredibilização promovida pelo Governo.

Numa clara demonstração de um verdadeiro proto-fascismo em plena marcha, agora já não se trata, apenas, de reprimir à bastonada manifestações e concentrações, ou de usar polícias e militares como fura-greves, em clara violação das suas competências legais e constitucionais. Também, para não dizer sobretudo, trata-se de, em nome do combate aos “agitadores ao serviço de interesses inconfessáveis” e da defesa do “superior interesse nacional” (a versão recauchutada do velho “tudo pela Nação, nada contra a Nação” de antes do 25 de Abril…), o Executivo de António Costa – cujo sentido de legalidade consiste em o mesmo só homologar pareceres do Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República quando eles lhe convenham – passar ao completo despudor (e absoluta ilegalidade) de mobilizar e utilizar a ACT e a DGERT como auxiliares das polícias e do serviços de informações nas suas actividades de controle e vigilância das greves e dos grevistas.

E daí que, já bem à noite do passado dia 13/8, a Inspectora-Geral da ACT, Maria Luísa Torres de Eckenroth Guimarães, tenha enviado aos dirigentes da mesma ACT esta inacreditável série de instruções relativamente aos “procedimentos a adoptar (pelos inspectores do Trabalho) no contexto da greve dos camionistas”, então em curso, e da requisição civil contra eles decretada:

Na sequência do telefonema efetuado pela Senhora SIG esta tarde, refiro seguidamente os procedimentos a adotar no contexto da greve em curso que resultaram de reunião realizada esta tarde no Ministério do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social e que visam também assegurar uma melhor articulação com as demais autoridades competentes no terreno.

A presença da ACT será assegurada a partir de amanhã, dia 14 de agosto e até indicações em contrário, nos seguintes locais:

1.   CEPSA Portuguesa Petróleos, S.A. – Av. O Comércio de Leixões – Leça da Palmeira

2.   PERGÁS – Parque de Perafita – Rua de Almeiriga – Matosinhos

3.  Refinaria Matosinhos – R. Dom Marcos da Cruz 2-10 – Matosinhos

4.   CLC – Companhia Logística de Combustíveis, S.A. – Estrada Nacional 366 – km 18 – Aveiras de Cima

5.  Refinaria Galp de Sines – Sines 

A presença da ACT será assegurada em equipa com a DGERT (1 Inspetor da ACT + 1 Técnico da DGERT) e com o objetivo de apoiar esta Direção Geral.

Até indicação em contrário, a presença das equipas deverá assegurada entre as 8:00 e as 18:00 nos locais identificados nos números 1 a 4, e das 9:00 até às 18:00, no local identificado no ponto 4, desde que estejam asseguradas condições de segurança, ou seja, desde que estejam presentes as forças policiais no terreno. Se se verificar alguma circunstância que justifique eventual alteração do horário, deverá ser comunicada à Direção.

 A intervenção da ACT visa apoiar a DGERT nas seguintes funções:

              1)   Apoio na análise das escalas para efeitos de requisição civil:

              2)   Apoio na análise à portaria 255-A/2019

Quaisquer pedidos das entidades competentes (PSP e GNR) no contexto acima referido devem ser formalizados, independentemente do apoio que possa ser dados pelas próprias equipas no local, por email para os seguintes correios de endereço eletrónico:

dgert@dgert.mtsss.pt 

secretariado.direcao@act.gov.pt

Nos locais em que não esteja presente uma equipa da DGERT e da ACT – designadamente, na PRIO Energy, em Ílhavo e na Alkion Lisbon Terminal, no Barreiro, em que não está previsto a partir de amanhã terem presença física da ACT – a comunicação deve ser feita para os endereços de e-mail acima identificados, para que se possam avançar com os procedimentos expostos. O mesmo procedimento aplicar-se-á nos locais do País. 

Os procedimentos acima referidos foram transmitidos ao Ministério da Administração Interna, para uma melhor articulação no terreno.

Junto Resolução do Conselho de Ministros n.º 134-B/2019, de 12 de agosto, e a Portaria n.º 255-A/2019, de 12 de agosto de 2019, que a regulamenta.

Indicam-se igualmente os contactos dos colegas da DGERT que integrarão as equipas nos locais acima assinalados a partir de amanhã e até indicação em contrário:

Porto – mantêm-se os contactos já indicados;

Aveiras de Cima – Dr. (…)

Sines – Dr. (…)[1]

Aproveito esta oportunidade para agradecer a todos o trabalho que têm vindo a desenvolver nos últimos dias.

Com os melhores cumprimentos,

Luísa Guimarães


Ora, como não foram vistas por aqueles dias e naqueles locais quaisquer acções, fosse de fiscalização do cumprimento e da legislação do trabalho, maxime da lei da greve (designadamente quanto ao respeito pelos artºs 535º e 540º do Código do Trabalho, os quais proíbem quer a substituição de trabalhadores grevistas, quer quaisquer manobras de intimidação, ameaça ou coacção sobre os mesmos), fosse de promoção da conciliação ou da mediação como meio de resolução do conflito laboral, fácil é de perceber aquilo que, afinal, e por ordens do Governo, andaram desde Agosto, e em particular no dia 14 de Agosto, os inspectores da ACT e os técnicos da DGERT a fazer: a assessorarem e a articularem-se com as polícias e os serviços de informações, controlando e vigiando os trabalhadores grevistas!

É, pois, para isto que, para o Governo de António Costa, afinal servem a ACT, a Inspecção e os inspectores do Trabalho, a DGERT e os seus técnicos!

Mas se assim é, qual a diferença de fundo entre as concepções e as práticas de quem assim actua e as concepções e as práticas dos regimes anti-democráticos e ditatoriais, onde todos os que protestam de forma mais consequente são considerados e tratados como seres desprezíveis e inferiores, agindo ao serviço de tenebrosos e inconfessáveis interesses e, logo, como marginais a abater, onde a legalidade significa que a lei é interpretada e aplicada (apenas) do modo como convém à autoridade executiva suprema (o Governo e o seu chefe) e onde as funções e serviços policiais – cuja legalidade de meios é sempre justificada pela suposta legitimidade dos fins – são sempre omnipresentes e omnipotentes? 

Por mim, tenho bem clara a resposta…

António Garcia Pereira


[1]Optei por ocultar os nomes e contactos das pessoas em questão.

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