As unidades locais de saude contra o SNS?

Mário Jorge Neves (Foto FNAM)

Durante o primeiro governo presidido pelo Engº António Guterres, foi publicado o Decreto-Lei nº 207/99, de 9 de Junho, que criou a primeira Unidade Local de Saúde (ULS) em Matosinhos.

As suas atribuições foram definidas como: a prestação global de cuidados de saúde à população da sua área de influência, directamente através dos seus serviços ou indirectamente através da contratação com outras entidades, bem como assegurar as actividades de saúde pública e os meios necessários ao exercício das competências da autoridade de saúde na área geográfica abrangida.

Entre 2007 e 2011 foram criadas mais 7 ULS, sem que alguma vez tenha sido efetuada qualquer avaliação acerca das vantagens deste modelo organizativo.

Apesar da continuada ausência de avaliação, o governo de António Costa decidiu, de uma vez só, criar mais 31 ULS através do Decreto – Lei nº102/2023, de 7 de Novembro.

No preambulo deste diploma é referido que o financiamento destas unidades de saúde é feito através da “estratificação pelo risco que identifique a distribuição da carga da doença pela população”.

Ora, o financiamento pelo risco, na lógica neoliberal privatizadora tem, entre outros, os seguintes propósitos fundamentais: estabelecer níveis de pagamento por indivíduo ou para seguros de saúde; incentivar prestadores a aceitar doentes com elevados riscos assoviados.

Como enquadrar tais propósitos com o SNS e o direito constitucional à saúde?

Não será para ir preparando o terreno para no futuro facilitarem a generalização de seguros de saúde com os cálculos já elaborados pelos dinheiros públicos?

No seu artigo 4º estabelece que “o capital estatutário da ULS é fixado, aumentado ou reduzido pelo Ministério das Finanças”.

Se o objetivo apregoado para as ULS é estarem no SNS por que razão é fixado um capital estatutário?

Será para no futuro terem já a porta aberta para a alienação desse capital estatutário por parte de entidades privadas?

A prática deste modelo a partir das 8 ULS anteriores teve contornos hospitalocêntricos e não se traduziu em benefícios sentidos pelas populações na maior e melhor capacidade assistencial destas entidades de saúde.

A decisão repentina, sem qualquer discussão pública sobre uma medida com tão amplas repercussões nos serviços de saúde, do anterior governo em criar 31 ULS, não pode deixar de suscitar as mais vivas desconfianças sobre os seus reais objetivos.

O que se torna desde logo óbvio é que essas novas unidades de saúde são um expediente legal para estender a todos os agrupamentos de Centros de Saúde o modelo EPE.

Por outro lado, esta forma de organização e gestão não é nenhuma “invenção lusitana” mas constitui uma cópia de medidas já tomadas noutros países europeus, casos mais próximos da Grã-Bretanha e da Espanha.

Em várias comunidades autónomas do nosso país vizinho, casos mais marcantes de Galiza, Madrid e Valencia, no desenvolvimento de políticas neoliberais de privatização dos serviços públicos de saúde, foram criadas as chamadas “ Áreas de Gestão Integrada” englobando hospitais e centros de saúde.

A experiência em Espanha destas áreas de gestão integrada tem mostrado uma perspetiva claramente hospilalocentrica, com a desvalorização crescente dos cuidados primários de saúde, maior complexidade administrativa e funcional com o consequente aumento dos custos da gestão, grande parcela dos custos por explicar, a omissão das dimensões sócio-económicas e cultutrais das populações e a não implementação de atividades de promoção da saúde e prevenção da doença.

A publicação do diploma que procede à criação das 31 ULS, para além de colecionar normas revogatórias, mostra uma marcada ausência de preocupações com a saúde das populações e revela uma clara orientação para o tratamento da doença.

Simultaneamente, este diploma procedeu à tentativa de “assassinato “ dos sistemas locais de saúde que se encontram consagrados na Lei de Bases da Saúde (base 9) e no Estatuto do SNS (artº 13º).

Mas este diploma das ULS coloca ainda questões delicadas quanto à gestão dos recursos humanos como, por exemplo, o âmbito dos concursos de colocação dos profissionais de saúde.

Com este novo diploma, o profissional de saúde candidata-se a uma unidade de saúde concreta ou à ULS?

Se for à ULS, aquilo que vamos assistir é à deslocalização/circulação arbitrária dos profissionais de saúde pelas várias unidades, mesmo que isso implique muitos quilómetros de distância.

O governo anterior, durante os seus 8 anos de exercício do poder político não realizou qualquer medida de revitalização do SNS, e manteve os seus 3 sucessivos ministros da saúde e respetivas equipas num espartilho político subordinado às decisões do seu núcleo duro de gestão política.

Mesmo numa matéria tão dramaticamente importante como a Saúde Pública, que de forma heroica combateu a pandemia, o trabalho da comissão para a sua reforma foi bloqueado de forma sistemática e continua enfiado numa gaveta.

Se a criação da Direção Executiva do SNS e a existência do cargo CEO foram já uma capitulação vergonhosa aos sectores da direita neoliberal que andaram tanto tempo a reclamar por essa medida em posições de imitação do NHS England, que tem constituído um instrumento de facilitação da ampla privatização dos serviços públicos de saúde ingleses, a escolha dos seus membros, em que na sua grande parte nada têm a ver com a defesa do SNS, veio confirmar que o núcleo duro do governo tinha mudado os seus pontos cardeais sobre este serviço público nuclear do Estado Social.

Criar ULS, com grandes áreas geográficas, aglomerando hospitais com múltiplos centros de saúde à sua volta, só pode significar o escancaramento da porta para futuras medidas privatizadoras na saúde.

É preciso ter presente que a primeira entidade privada que geriu um hospital público no nosso país, várias vezes reclamou que os centros de saúde da sua área geográfica deviam estar também sob a sua alçada gestionária para obter maior rentabilidade para a sua atividade.

Em vez de estarem a privatizar serviços públicos de saúde a “conta-gotas”, o que acabaria por desencadear amplas medidas de contestação das populações envolventes, fazem tudo de uma vez para garantir, desde logo, a adequada rentabilidade da exploração privada.

António Arnaut, depois de na parte final da sua vida ter apelado a António Costa para aguentar o SNS, não merecia que o seu legado de enorme alcance civilizacional fosse desprezado desta forma chocante.

Mário Jorge Neves, médico

2 comentários a “As unidades locais de saude contra o SNS?”

  1. Pedro Paulo Machado Alves Mendes diz:

    Uma análise pertinente sobre a qual os organismos representativos da classe médica deveriam promover ampla discussão…

  2. Joao Batalheiro diz:

    Pois. Organização hospitalocêntrica.
    Não aceitam que os Cuidados de Saúde primários são os clientes e não
    asvectensoes dos hospitais.

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