Como bem sabemos, a pandemia da Covid-19 já causou no nosso país um elevado número de pessoas infectadas, de doentes a carecerem de assistência hospitalar e, nos casos mais graves, de internamento em Unidades de Cuidados Intensivos, bem como, e infelizmente, de mortes (já mais de 1.500).
Há, porém, e para além destas vítimas directas da infecção, um número enorme, e arrepiadoramente crescente de outras vítimas, de que, todavia, ninguém ou quase ninguém fala ou quer saber e que também têm pouca ou mesmo nenhuma capacidade de se fazerem ouvir. Até por esta razão, destaco aqui algumas dessas vítimas.
Os doentes não infectados pela Covid-19.
Se, mercê das políticas das últimas décadas de sucessiva desarticulação e destruição do Serviço Nacional de Saúde, em Agosto de 2019 o número de doentes que estavam à espera de cirurgia para além dos prazos previstos na lei[1]já ultrapassava os 50.000, sendo de 250.000 o total em listas de espera, esses números cresceram enormemente nos últimos três meses.
É que, durante este período crítico da pandemia, a actividade que estava programada sofreu – por força da concentração extrema de recursos humanos, logísticos e materiais a que o SNS se viu forçado – uma quebra da ordem de, pelo menos, 50%. O número de consultas e de exames auxiliares de diagnóstico diminuiu assim muito drasticamente.
A situação das listas de espera – como os responsáveis governamentais, a começar pela Ministra da Saúde, bem sabem mas que procuram esconder com a apresentação de números similares aos de há seis meses atrás – está, afinal, a ser ostensivamente camuflada pela não consideração de que, desde Março, não entram praticamente doentes nessas mesmas listas de espera para cirurgias precisamente porque as consultas dos Centros de Saúde quase de todo pararam pois os doentes, com receio da contaminação, deixaram de ir aos hospitais (houve menos 122 mil idas às urgências por dia) e os mesmos hospitais diminuíram, e muito, o número das suas consultas. Ora, deixando de haver consultas, deixou de existir indicação médica para a realização de cirurgias necessárias e, logo, houve inúmeros doentes, designadamente crónicos e graves, que deixaram de ter a assistência e o acompanhamento que deveriam ter. E tal situação determinou o agravamento do seu estado de saúde e, em muitos casos, a sua morte.
Segundo um estudo muito recente, intitulado “Excess Mortality Estimation During the Covid-19: Pandemic Preliminary Data from Portugal”[2] e de que um dos co-autores é o conhecido médico de Medicina Interna Dr. António Vaz Carneiro, o aumento da mortalidade em doentes não Covid-19 durante o período entre 1 de Março e 22 de Abril foi muito significativo, estimando-se que essas mortes (os chamados “óbitos a mais” relativamente à mortalidade média normal) tenham atingido um número entre 2.400 e 4.000, representando assim um valor entre 3,5 a 5 vezes superior ao das mortes causadas no mesmo período de tempo pela Covid-19!
As teses e as práticas do “unanimismo” levaram a que fosse impedido e abafado o debate sobre as opções políticas que, antes da Covid-19, haviam desarticulado e enfraquecido o SNS, ao ponto de o nosso País ser, nessa altura, o país de toda a União Europeia que tinha menos camas de cuidados intensivos (7) por cada 100 mil habitantes.
A gritante carência de meios[3] levou mesmo a que, se não fosse a resistência dos dirigentes de hospitais de referência no tratamento de patologias com natureza de urgência (como o Hospital Curry Cabral ou o Instituto Português de Oncologia), este abandono de doentes prioritários não COVID, defendido e pressionado em nome da necessidade de concentração de todos os meios disponíveis no combate à pandemia, fosse ainda mais grave.
Com tudo isto, as estimativas da Ordem dos Médicos são as de que o número real de cirurgias em atraso relativamente a esses doentes ronde ou até ultrapasse as 100.000, o que dá uma ideia da enorme gravidade desta situação.
Mas como se trata, na esmagadora maioria dos casos, de cidadãos mais pobres, que não têm seguros de saúde, nem possibilidades económicas de recorrer a médicos e hospitais privados, praticamente ninguém fala neles, como se constituísse uma qualquer fatalidade do destino morrerem por falta da adequada e atempada assistência médica.
Os desempregados
Outro autêntico exército de desvalidos e desprezados criado pelos efeitos da Covid-19 são os desempregados.
E a primeira arma desse desprezo e desse abandono é, uma vez mais, a grosseira manipulação dos números: tal como demonstrou um recente e importante estudo do economista Eugénio Rosa, segundo os dados do próprio Boletim Estatístico do Ministério do Trabalho, no final de Abril de 2019 existiam 321.340 desempregados registados nos Centros de Emprego e no período entre Maio de 2019 e Abril de 2020 o número total de pessoas que perderam o seu emprego foi de 544.226, enquanto o número total de colocações em novos empregos feitas pelos Centros de Emprego foi de 79.626.
Isto significa que, salvo o caso de óbitos e de reformas, o número de desempregados em Abril de 2020 deveria ser de 321.240 + 544.226 – 79.626 = 785.740.
Todavia, o número de desempregados que, de acordo com os dados divulgados pelo Instituto de Emprego e Formação Profissional (IEFP), constavam em Abril deste ano dos registos dos Centros de Emprego era de apenas 392,323. Para onde foram então esses 385.740 – 392.323 = 393.517 desempregados que terão sido, assim, varridos daqueles registos? Voltámos aos oportunos apagões trimestrais de há uns anos atrás para falsificar, e grosseiramente, a esmagadora realidade do desemprego?
Por outro lado, mesmo com base nas estatísticas oficiais do desemprego publicadas pelo Instituto Nacional de Estatística (INE), verificamos que a projecção do número de desempregados no final de Abril era de 319.000. Porém, se a tal número somarmos pessoas realmente desempregadas, mas que o INE não considera como tal (23.000 inactivos não disponíveis e 131.000 inactivos disponíveis, mas que, desencorajados face à sua idade, às suas habilitações e a outras causas, já não procuram emprego) teremos o número astronómico, no fim de Abril, de 573 mil desempregados.
Todavia, nessa mesma altura, os registos oficiais indicam que estavam a receber subsídio de desemprego apenas 197.949 desempregados (ou seja, cerca de 50% dos desempregados oficiais e de 34,4% dos referidos 573 mil desempregados reais), num valor médio mensal de 442€ por mês! E, do número de mais de meio milhão acima referenciado, quase 300 mil não recebiam rigorosamente nada e estavam assim irremediavelmente condenados à fome e à miséria.
Atente-se, por outro lado, em que, de acordo com a publicação de 3/6 do Ministério do Trabalho, “Monitorização da COVID-19”, em 2 de Junho o número de trabalhadores inscritos pelos patrões para o regime de lay-off atingia os 1.342.852, mas, destes, só cerca de 800 mil tinham sido aceites. Onde estão e o que aconteceu então a esses mais de 540 mil trabalhadores colocados em lay-off não reconhecidos? Não estando formalmente desempregados, não recebem subsídio de desemprego e, não tendo as empresas recebido as verbas da Segurança Social, decerto que também não pagaram salários a tais trabalhadores (que mesmo nesse regime apenas têm direito a receber 2/3 dos seus vencimentos) e estes, sem salário e sem subsídio de desemprego, não têm nada.
Não nos espantemos por isso com o que se passou há semanas na Mesquita da Amadora quando se formou uma fila de quilómetros de pessoas em busca de comida ou das filas de meio quilómetro em vários locais de Lisboa como, por exemplo, na rua da Escola do Exército, como já foi publicamente noticiado e instituições de apoio social vêm reiterada e constantemente denunciando. Há, pois, fome, e cada vez mais, em Portugal!
E esta dramática situação só se vai agravar mais ainda. Ao mesmo tempo que se repetem os anúncios e as referências aos milhares de milhões de euros que virão para serem distribuídos pelas empresas (designação eufemística para designar os capitalistas e mascarar assim e cada vez mais a evidente natureza de classe dessas mesmas medidas), as previsões apontam para quase um milhão de desempregados no final do presente ano. O Centro da Economia para a Prosperidade da Universidade Católica (Prosper) refere 400 a 700 mil empregos directos destruídos e mais de 130 a 345 mil de outros empregos, dependentes dos primeiros, o que representará quase 1/3 do chamado “mercado de trabalho privado”.
Para além destes, referem-se ainda como grupos mais vulneráveis à perda, inclusive total, de rendimentos, cerca de 400 mil trabalhadores a recibos verdes com rendimentos incertos e 250 mil, pelo menos, trabalhadores ditos independentes não registados na Segurança Social.
Pescadores e feirantes
Temos ainda sectores inteiros e os profissionais que neles trabalham votados ao completo abandono e colocados em situações absolutamente dramáticas nomeadamente os pescadores, cujo produto da pesca é comprado nas lotas a preços irrisórios para ser depois revendido nos espaços comerciais a preços 4 ou 5 vezes superior, e os feirantes e empresários de diversão itinerante que, com a corda ao pescoço, não conseguem compreender como e porque é que abrem centros comerciais e negócios em espaços fechados mas o seu sector continua proibido de laborar e por isso, cheios de razão, protestaram persistentemente nas ruas de Lisboa até ontem, dia em que finalmente conseguiram que essa proibição terminasse.
As crianças
Vítimas ainda mais dramáticas e silenciosas, até porque praticamente só se fala delas quando há uma tragédia mais chocante, e isto quer a nível internacional, quer a nível nacional, são as crianças.
Luis Pedernera, Presidente do Comité dos Direitos das Crianças da ONU, afirmou mesmo que “as crianças são as principais vítimas colaterais desta pandemia”. A ONU calcula que a Covid-19 terá já colocado entre 42 e 66 milhões de crianças em grave risco de pobreza, enquanto a UNICEF assinalou o aumento dos casos de violência, designadamente de violência doméstica, de tráfico de crianças, de exploração sexual e de trabalho infantil, alerta igualmente feito pela Organização Internacional do Trabalho.
E, entre nós, na passada quinta-feira 11/6, a Confederação Nacional de Combate ao Trabalho Infantil (CNASTI) denunciou que há cada vez mais crianças a trabalhar em Portugal, em particular no sector da restauração, com sujeição a situações crescentes de pobreza, de fome e de violência extrema.
Há, pois, crianças extremamente pobres, famintas, maltratadas e violentamente exploradas em Portugal!
Os velhos
Os velhos são em grande parte pobres (há um milhão de reformados com pensões até 264€ mensais!) e estão abandonados à sua sorte. Sendo um país profundamente envelhecido (somos o 3º mais envelhecido da Europa e o 5º de todo o mundo!), temos mais de um milhar de velhos em “internamentos sociais” nos hospitais, ou seja, em situação em que poderiam ter alta clínica, mas que não têm ninguém de família nem nenhuma instituição de cuidados continuados que os receba e que por isso vão ficando pelas camas e corredores dos hospitais.
Cerca de 100.000 pessoas de idade foram desde há anos encafuadas em lares e residências, muitos deles sem as condições mínimas de higiene e sanidade. Essa circunstância, aliada à política inicial de não realização de testes e de não adopção de equipamentos individuais de protecção, como as máscaras, fez com que, com a pandemia, aqueles nossos concidadãos, morressem que nem tordos com a Covid-19, sobretudo na sua fase inicial.
Depois, seguiram-se sucessivas tentativas de ostracizar e discriminar (como assinalou Manuel Alegre) e até (como denunciou Júlio Machado Vaz) de infantilizar os velhos, reduzindo-os à qualidade de cidadãos “de segunda”. Como se fossem um peso para a sociedade, com as suas doenças e as suas dificuldades, e não fizesse grande mal deixá-los também ao abandono.
Vítimas de violência doméstica
As vítimas dessa epidemia “escondida” no confinamento que é a violência doméstica foram condenadas, por força das regras do mesmo confinamento, a ficarem ainda mais perto dos agressores, ainda mais impossibilitadas de pedirem ajuda, de buscarem refúgio e de denunciarem os abusos.
Por isso mesmo, a Organização Mundial de Saúde (OMS) alertou para o facto de que o número de casos durante o confinamento imposto pela pandemia da Covid-19 aumentou até 60%. O Director da Região Europeia da OMS, Hans Kluge, denunciou esse aumento em países como a Bélgica, a França, a Irlanda, o Reino Unido e a Espanha, salientando que medidas como a quarentena para as vítimas de violência doméstica representam uma verdadeira prisão conjuntamente com o respectivo torturador.
Só de facto em Portugal é que foi possível ver um governante – o Secretário de Estado da Saúde António Lacerda Sales – afirmar numa conferência de imprensa de 29 de Abril que “em Portugal não existe um aumento do número de participações por violência doméstica” e que “as forças de segurança até detectaram um decréscimo em 39% relativamente ao mesmo período do ano passado”, sem pelos vistos querer compreender que a situação em 2019 (com 23.586 crimes registados e 11.676 vítimas, 35 das quais mortais) não melhorou de todo nos últimos três meses, antes foi abafada e dissimulada pela muito maior dificuldade de as vítimas falarem, se deslocarem e se queixarem.
E se as vítimas são também crianças e se são expostas a situações de violência doméstica (embora se lhes continue a querer negar o estatuto de vítima) ou até mesmo são elas próprias violentadas por um dos progenitores, a sua condição – com o encerramento das creches, dos infantários e escolas – ainda mais se agravou.
É assim verdadeiramente indizível o sofrimento das vítimas que têm de ficar forçadamente em casa com os agressores, em silêncios tão opressivos quanto impostos porque têm (justificado) medo de pedir ajuda e sair com os filhos quando a Covid-19 e os constrangimentos e confinamentos decretados espreitam cá fora e o agressor vigia e controla lá dentro.
Mas quem dá verdadeiramente a palavra a estas silenciosas, melhor dizendo, silenciadas vítimas da Covid-19, que não constam das estatísticas oficiais e não parecem merecedoras de conferências de imprensa e de comentários de “especialistas”, muito menos de medidas e de acções de verdadeiro apoio social?
Até quando estaremos dispostos a permitir e a manter este ensurdecedor silêncio?
António Garcia Pereira
[1] 180 dias para as cirurgias de prioridade normal e 72 horas a 60 dias sobre a data da respectiva indicação clínica para os muito prioritários e prioritários.
[2] “Estimativa da mortalidade em excesso durante a Pandemia da Covid-19: Dados preliminares de Portugal”. Publicado no vol. 33, nº 5 da Acta Médica Portuguesa, a revista científica da Ordem dos Médicos
[3] Que, todavia, não levou o governo a decretar a reabertura ou até a requisição civil do SAMS, cuja comissão executiva, presidida pelo deputado do PS Rui Riso, encerrou o hospital e todos os serviços clínicos, privando cerca de 100.000 beneficiários, quase todos reformados e velhos, das suas consultas, dos seus exames e análises e do acompanhamento médico para o qual descontaram uma vida inteira de trabalho.
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