Numa rua com um nome de que ninguém se lembra – nem o escritor nem os leitores nem sequer o revisor que, sendo o mesmo que o primeiro, apenas se recorda de algumas letras, de sonoridades vagas, difusas palpitações –, existe a Barbearia Firme, propriedade antiga de Abílio Firme, o Mestre nas artes da confecção de penteados. O número sabemos qual é: 99. Mas só porque é número demasiado fácil para o jogo da memória.
Todos os dias a religião é a mesma: às 08:00 dá três voltas à chave, de modo rigorosíssimo passa os pés no tapete, estica a mão esquerda em bamboleios a ligar os grandes candeeiros de metal e entra no estabelecimento em silêncio, como se de uma procissão de um só homem se tratasse. Depois o costume: casaco no cabide e as mãos e a cabeça sempre a fugirem-lhe ao controlo: diagnosticado com Parkinson há mais de uma década, o barbeiro Firme lá vai gerindo os soluços físicos como pode, fazendo perigosas rasantes às paredes, às cadeiras em frente aos espelhos, aos cremes, às espumas, à brilhantina, ao gel, à própria sorte. Cabeceia com inquestionável arte a bola do azar.
Até às 9, hora de abertura, Abílio prostra-se em profundas reflexões mirando-se a mirar-se. Encosta o queixo que meneia para o chão a um dos punhos que meneia para o tecto, conseguindo assim, entre a força do Parkinson para baixo e a força do Parkinson para cima, um equilíbrio perfeito para pensar em paz, sem sobressaltos. Por vezes, a mão lateja para os lados e a cabeça de Abílio cai em estrondo sobre o braço da cadeira (já devidamente almofadado para estes momentos de enorme infelicidade). Depois levanta-se e, até abrir a Barbearia, ali fica entregue a uma sucessão de bizarros acontecimentos, vendo no espelho as suas estranhas danças pelas quais foi ganhando carinho – chegando inclusivamente a rir-se delas, de si. Como se, por nada haver a fazer, tudo deixasse de importar.
Por volta das 9 da manhã, chega Osvaldo, o empregado – mais coisa menos coisa, que os atrasos dos autocarros servem demasiadas vezes de resposta à pergunta de Abílio Firme
– Ó Osvaldo, outra vez atrasado?
O funcionário não se demora em explicações. Culpa o 28 e segue para a limpeza do estabelecimento, varrendo chão, passando panos nos espelhos, espalhando produto sobre o couro das cadeiras recostáveis. Os jornais desportivos em cima da pequena mesinha junto ao sofá preto; os generalistas espalhados pelas quatro cabinas, no tampo que sustém os champôs, os cremes, as tesouras, os pentes, as escovas e a memória das sombras de Abílio Firme a dançar rumbas e boleros sem querer.
Às 09:30, o primeiro cliente entra na Barbearia. Senhor Fernando Boa-Morte, mensalmente frequentador do estabelecimento. Amigo antigo de Abílio. Para Fernando, o Parkinson não constitui problema – há uma inabalável confiança nas artes mágicas do Mestre, na sua forma de ludibriar os golpes soluçantes que o seu corpo debita. Até lhe parece que o cabelo ganhou melhores contornos desde que a doença afectou Mestre Firme. Algo o terá inspirado para lá do que seria expectável: em vez de definhar, evoluiu. Ao invés de cair em prantos, ganhou nova queda para as artes e para o negócio. Nunca a Barbearia Firme teve tanta clientela e tão variada: novos, meio-novos, meio-velhos, velhos, pessoas com Parkinson às quais chegou a informação e esperança de um homem que, tendo a doença, a ataca com tudo o que tem e lhe dá outros e mais elegantes movimentos. Até as senhoras da outra rua (com um nome de que nem leitores nem escritor se recordam), tão diligentemente habituais frequentadoras do Salão de Cabeleireiro Rosinha do Campo, passaram a visitar Mestre Abílio, pedindo-lhe que lhes arranjasse melenas, que experimentasse técnicas estrangeiras de corte, inovadoras criações americanas vindas dos maiores especialistas em pilosidades faciais e outras até desconhecidas na Península Ibérica (região tendencialmente mais dada a um certo conservadorismo na hora de escortinhar cabelos).
O dia passa e Abílio Firme não tem descanso. Cliente após cliente, dançando atrás deles curiosas salsas, peculiares valsas, break-dance lusitano, zumba original, golpes de capoeira e diferentes formas de full-contact, o Mestre os vai despachando mais bonitos do que quando chegaram. E, quando chega a hora de fechar as luzes com a mão direita bamboleante, de passar no tapete um movimento pulsante de pés, quando a porta fecha às três voltas chocalhantes que deixam na rua (sem nome que se conheça) um zumbido de pandeiretas a ecoar entre as casas, Abílio Firme segue rua acima aos pontapés a uma sombra que não é a sua.
Ricardo Silveirinha
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