Vivo num universo paralelo cujos átomos e moléculas são letras. Nasci mulher, chocolate de leite, bisneta de alforriada vaidosa e de séria branca-leite, que considerava o riso um desperdício, descendente Bossassum da tabanka pépel, filha de olho escuro amendoado tuga-árabe, trineta de judeu cabo-verdiano fugido de um Marquês, de imaginação solta, fértil, que apenas com o cheiro da giesta em permanência se emprenha de histórias.
Tudo o que faço são partos em sequência. Tenho partos feitos de brisa poética serena, outros de prosa – tempestade furiosa, outras explosão por combustão, noutros são necessárias o uso de anestesia epivertical para lidar com a seriedade da contracção.
As criações amadurecidas no côncavo útero imaginário, prontas a nascer, descem do cérebro dilatando o canal cárpico, até encontrarem na ponta dos dedos a vulva de escape.
Perceber a vida e ser feliz, o que é isso? Não perder tempo com desimportâncias, encontrar consolo e um possível oásis nas insignificâncias, como a música, a pintura, a literatura, o vinho, a dança, o mar, os animais, as conversas e claro, abraços , beijos e nunca desperdiçar um dia sem risos (em oposição à minha bisavó).
Sei-me mortal mas nem por isso considero ter completado o processo de viver. Ninguém pode ver-se sem entender a sua mortalidade. Quando alguém arrogante não se vê e pratica a loucura de viver sem consciência da sua humanidade e dos demais está mais doente do que imagina.
Como tal não vivo compadecida ou embaraçada em deixar desejos e tentações para outra vida. Pratico na filosofia dos meus escritos, na prosa poética, na poesia (que nada têm de irrelevante), a expulsão de incandescências e loucuras humanas.
É um preço fácil de pagar por esta oportunidade a preço de ocasião que encontrei na montra de escolha da vida – um rio para a correnteza da expressão.
E as loucuras com as quais me confronto não podem ficar presas. Se presas, engordam o fígado e provocam combustão interna.
Quando o coração fica musculado, com dificuldade de expansão, pouco flexível para bombear, activo o modo de exercitar as línguas nas quais se expressa, para fazer correr sangue na linfa de quem conseguir ouvir o seu compasso, em favor dos desprotegidos e vulneráveis, ou seja, outros orgãos vítimas de excessos de bombardeamentos carregados de colesterol, daquele que danifica as artérias dos que só querem experimentar a beleza da máquina perfeita que é o milagre de viver.
Se alguém ainda não se apercebeu, quem se sentir ajustado neste manicómio devia mudar da profissão de ser humano. Este exige presença vinte e quatro horas do dia, todos os dias do ano. Só os especiais estão cá. Somos muitos milhões.
Agradeço aos que me deram ombros para me carregar.
Gostava de ter entrado para a política – essa arte tão bela de servir o interesse colectivo – até perceber que nada tem de colectivo ou comunitário antes sim de fingimento, cinismo, de vestir máscaras todo o ano, de mentir sem remorso, vender a alma com um sorriso descarado, servir os seus próprios interesses e deitar-se na almofada do que não lhe pertence, pensando na melhor forma de matar os sonhos colectivos.
Hoje a política colocou o colectivo na cruz. Sacrificou o deus chamado humanidade. Rendeu-se à sacola de trinta dinheiros nem que para isso tenha que matar a mãe, roubar o sol e vender a via láctea ao retalho para especulação, como alojamento local.
De Gaza ao Sudão passando por todas as geografias debaixo de fogo, onde se mata e morre, seja de fome, de escravatura, de falta de condições, somos todos nós os pregados do colectivo. De pés e mãos a sangrar até à morte.
Vim vender-vos um peixe porque nado de olhos abertos e ouvidos com som aumentado, absorvo e experimento a dor no lago dos peixes, nesta era de cozer os peixes a altas temperaturas. Quero saber que desempenho a minha profissão de humano arrematando com palavras o escrutínio do tempo contemporâneo.
E se por arrasto mais peixes se percebem na mesma consciência, a força e a pressão para rasgar a rede na qual estamos envolvidos é imensurável.
Já imaginaram a liberdade?
A frustração por não ter seguido a política mas sim as palavras é inexistente. Não conseguiria ajudar. Teria de me prostituir. E gosto demasiado de sexo para o vender a qualquer um.
Assim, com a escolha que fiz (só me lê quem quer e tem paciência), aqueles que consigo ajudar são os que estão nas cruzes à minha volta (cada um podendo fazer o mesmo), desamarrando palavras, esperançando deixar uma semente para sairmos desta encruzilhada, enlaçando-as num ramo de poemas e prosas filosóficas, e sem muito tino, sem qualquer controlo sobre o processo de destruição em curso, cumprir como bardo num árvore amarrada, o meu destino.
Desejo que vivam acordados, protestem sobre o que não estiver bem, reclamem, resistam a injustiças, estejam atentos, tenham uma relação de amor convosco, escrutinem a vida dos políticos, exijam o direito à vida livre sem pré-condições.
Se não o fizerem vão pagar com o corpo, a mente, o espírito.
Anabela Ferreira
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