Poucos discordarão de que as campanhas eleitorais, e muito em particular a que já hoje decorre para as eleições legislativas do próximo dia 6 de Outubro, se revelam, de forma geral, como um verdadeiro deserto de ideias, e os respectivos (e elucidativos) debates como algo absolutamente enfadonho, sem quaisquer ideias novas, sem perspectivas estratégicas e sem surpresas a não ser as que resultam de incidentes e/ou de anedotas, perfeitamente secundários e de todo irrelevantes para os grandes problemas do País e para a sua resolução.
Têm que ser necessariamente assim as campanhas eleitorais? Não, não têm! Mas então porque é que o são sempre?
São-no porque é precisamente isso que mais convém aos partidos do Poder e aos interesses de classe que eles representam, assim garantindo, sem grandes sobressaltos, a manutenção no essencial dos mesmos “representantes” e, logo, dos governos, das políticas e dos grandes interesses que os comandam.
Como se tem visto, os partidos políticos que se sentam à mesa do Orçamento tratam de se eternizar e – até para garantir uma imagem democrática… – de se alternar no Poder, continuando e completando (e apenas com excepções de pormenor que somente visam justificar a afirmação de que são “diferentes”) os programas, as escolhas e as decisões dos seus antecessores.
Veja-se assim como sobre questões essenciais tais como as da União Europeia e, consequentemente, das desastrosas políticas industriais, agrícolas e marítimas impostas ao nosso País, da pertença ao sistema euro, das leis laborais relativas aos despedimentos, da carga fiscal sobre quem trabalha, etc., etc., tudo se mantém no essencial na mesma, não obstante a sucessão de partidos no governo. E nenhum desses partidos permite, muito menos promove, sequer em período eleitoral, a discussão livre, aberta e igual sobre essas matérias.
Por outro lado, tudo é orientado, organizado e dirigido para que, para além dos tradicionais partidos do Poder, só entrem no Parlamento (e, logo, só possam ter uma tribuna para as suas posições e uma visibilidade pública muito maior) aqueles que dêem garantias suficientes de que serão no essencial idênticos aos que já lá estão e com eles se entenderão perfeitamente.
Foi isso que aconteceu, há anos atrás, com o Bloco de Esquerda e todos os que muito chocados se mostraram perante as vozes que denunciavam a natureza meramente reformista e até social-democrata do dito Bloco, eis que nesta campanha – e talvez no seu único momento digno de interesse… – a respectiva responsável máxima, Catarina Martins, no desejo de partilhar o Poder no Governo que saia das próximas eleições, tal confessou de forma absolutamente clara, em entrevista à rádio “Observador”, em 2 de Setembro último, afirmando ipsis verbis que o programa que o Bloco preparou é “essencialmente social-democrata, no sentido que corrige os excessos com controle da economia e mecanismos de igualdade”!
Como foi também isso que mais recentemente sucedeu com o PAN, que apresenta agora um programa eleitoral de 1.196 “medidas”, grande parte das quais meras expressões suficientemente vagas e difusas para não representarem nada de concreto e, muito menos, qualquer compromisso específico, susceptível de ser controlado, e que se revestem de singularidades como a de que as chamadas medidas de “Protecção, Saúde e Bem estar animal” (entre as quais, a “autonomização da protecção animal nos órgãos do Estado” e os “pombais contraceptivos”) vêm à frente das medidas de “Prevenção da Doença e Promoção da Saúde” dos humanos.
E que, buscando subir de votação perante a inexistência de reais alternativas aos tradicionais partidos do Poder, se proclama de “pós-ideológico”, uma expressão típica dos que se pretendem acima das classes e portadores de uma especial sapiência e de uma particular superioridade moral relativamente aos restantes e, logo, a quem os deuses terão atribuído a suprema tarefa de salvarem a Pátria. E também já conhecemos da História onde sempre e invariavelmente esses personagens “superiores” e “salvadores” foram, e vão, dar…
Nesta lógica, todas as vozes que não obedeçam àqueles critérios e àquelas lógicas dominantes e que “saiam da caixa” da chamada “normalidade institucional” ou parlamentar, pura e simplesmente não têm direito à palavra e são liminarmente silenciadas.
O princípio da igualdade de tratamento das candidaturas é “mandado às urtigas” e substituído pelo de que só os que já estão alcandorados no Poder é que merecem chegar aos cidadãos eleitores e apresentar-lhes as suas propostas.
Por outro lado, grande parte da Comunicação Social desempenha também um importante papel nesta malversação da Democracia, cuja essência é, recorde-se, muito mais a salvaguarda das minorias – até porque estas podem ter razão… – do que a ditadura das maiorias. Por um lado, criticando as campanhas eleitorais e qualificando-as como monótonas, desinteressantes, senão até inúteis, mas definindo um modelo da sua cobertura que precisamente a tal conduz: em nome dos denominados, e democraticamente incontrolados, “critérios jornalísticos”, o que interessa e o que é praticado são debates, de preferência cordatos e “fofinhos”, somente entre os partidos do Poder (ou seja, precisamente apenas entre os responsáveis pela situação em que nos encontramos!) e cobertura de “arruadas” e comícios que não passam, na maior partes dos casos, de fantochadas “para televisões filmarem”, levadas a cabo pelas respectivas máquinas partidárias e seus “jotinhas”, de par com umas tomadas de declarações ao candidato, para este proferir, em 10 ou 15 segundos, um qualquer sound bitesem qualquer conteúdo efectivo.
O basilar e constitucional princípio da igualdade de oportunidades e de tratamento das diversas candidaturas[1]– princípio este pelo qual, quanto tive actividade partidária, sempre me bati e pelo qual, enquanto cidadão, me continuo , e continuarei sempre, a bater – é assim totalmente aniquilado, com a cumplicidade activa e descarada das entidades que supostamente têm por competência legal precisamente assegurar a sua preservação e aplicação efectiva, isto é, a verdadeira anedota em que se transformaram nesta matéria a Entidade Reguladora para a Comunicação Social (ERC) – que tem caucionado e até promovido os debates discriminatórios – e a Comissão Nacional de Eleições (CNE) – que se limita a proclamar a sua completa impotência. E, em lugar daquele elementar princípio democrático, e sob a capa dos tais “critérios editoriais”, são impostos, reproduzidos e amplificados até à exaustão apenas os programas e as propostas daqueles cuja continuidade no Poder assim se trata de assegurar.
Com tudo isto se permite e se prolonga o jogo viciado e perverso de possibilitar e até incentivar que quem já prometeu algo umas 40 vezes e 40 vezes o incumpriu, possa vir impunemente fazer a 41ª promessa (basta pensar nas promessas eleitorais de todos os partidos parlamentares sobre a Saúde, por exemplo), enquanto se verifica o tal significativo e absoluto silêncio sobre alguns dos mais graves e importantes problemas do País, não se questionando nem comprometendo nunca os candidatos a governantes acerca daquilo a que se comprometem e vinculam e impondo-se a lógica de que, se – após calar a boca aos outros – ninguém falar de tais problemas, então eles não existem…
Ora, é precisamente sobre estes silêncios cúmplices e criminosos que importa desde logo reflectir e desta forma compreender as verdadeiras razões por que os partidos da área do Poder se entendem e se conluiam na perfeição para que não se fale do que não (lhes) convém.
Para além de diversos outros, de natureza mais ampla e de importância vital e estratégica para os destinos do nosso país e para os interesses do povo português – como sejam, por exemplo, o que fazer com a gigantesca dívida pública (mais de 250 mil milhões de euros!) criada e incrementada pela pertença de Portugal ao sistema da moeda única (o euro), a necessidade de preservação da soberania portuguesa sobre a nossa gigantesca Zona Económica Exclusiva e de adopção de uma nova política de pescas, de construção naval e de comércio marítimo que a dimensão e riqueza daquela Zona permitem e até impõem, ou a necessidade do estabelecimento de uma rede ferroviária modernizada, de bitola europeia e alta prestação, que ligue o litoral ao interior do país e, sobretudo, que ligue os nossos portos atlânticos, em particular Leixões e sobretudo Sines, ao Centro e Norte da Europa – saliento, sendo absolutamente sintomático e esclarecedor que elas manifestamente não interessem à generalidade dos partidos políticos e muito em especial aos que têm aspirações a nos governar, as seguintes matérias mais concretas:
Em primeiro lugar, a Justiça.
Com efeito, nenhum desses partidos quer verdadeiramente que se discuta e se faça um balanço a sério daquilo que é hoje, realmente, a Justiça em Portugal, como funciona e com que resultados e, muito em particular, a Justiça Criminal, a de Família e a do Trabalho.
Ninguém exige que esse balanço da Justiça – que não se confunde com a satisfação saloia de se ter feito baixar o número de processos pendentes, não importando saber nem as razões (designadamente as de insuficiência económica dos cidadãos para recorrerem aos Tribunais), nem os meios por que tal foi feito – seja não só efectuado, como trazido aos órgãos de responsabilidade política (a começar pelo Parlamento) e aos cidadãos em geral, e amplamente debatido.
Como nenhum desses partidos quer, por exemplo, diminuir em um cêntimo que seja o custo absolutamente escandaloso, para não dizer pornográfico, dos processos judiciais, em particular em casos como os de violação de direitos fundamentais (despedimentos, despejos, violência doméstica, etc.). E actuam assim por uma razão inconfessável, e por isso mesmo nunca confessada: diminuir-se (para já não dizer terminar-se com ele) esse astronómico custo (que impede muitos e muitos cidadãos e cidadãs de acederem à Justiça para defesa dos seus legítimos direitos) significaria facilitar tal acesso, aumentar o número de processos e ter de alargar os meios materiais, horários e logísticos actualmente postos à disposição da Justiça, o que obviamente para essa gente – que prefere pôr quem trabalha a pagar do seu bolso (e já lá vão 30 mil milhões de euros!) os buracos das fraudes financeiras dos Bancos – está, numa opção de classe absolutamente clara, de todo em todo fora de causa.
Cidadãos a defenderem os seus direitos? Credo! Que perigo!…
Assim, e sempre em nome de uma Justiça pretensamente mais “eficiente”, prendem-se os pilha-galinhas e deixam-se à solta os corruptos e os engravatados ladrões dos Bancos, eterniza-se a hecatombe das vítimas mortais de violência doméstica, executam-se impiedosamente as dívidas dos pobres e dos remediados, mas logo, benevolamente, se aceitam “acordos” e “renegociações” com os grandes e gigantescos devedores. E enquanto se aumentam os vencimentos dos juízes e procuradores numas centenas de euros por mês, as acções dos cidadãos contra o Estado e as diversas entidades públicas (das Finanças e Segurança Social aos Hospitais Públicos e às autarquias locais) arrastam-se mais de uma década nos Tribunais Administrativos e Fiscais.
Mas, claro, nenhum dos Partidos do Poder quer saber disso para nada…
Em segundo lugar, a situação dospobres, e muito em particular das crianças pobres (pois que estas não votam).
Num país em que, em pleno século XXI e 44 anos após o 25 de Abril, 23% da população se encontra em situação de pobreza ou de exclusão social, as famílias com crianças são, e incomparavelmente, as mais pobres, sendo que nas famílias mono-parentais essa percentagem chega aos 33% e nas famílias com 2 ou mais filhos ultrapassa mesmo os 40%!? Mas, em ano de eleições, e como bem assinalou o líder da Rede Europeia Anti-Pobreza em Portugal, Jardim Moreira, em vez de se atacar o problema a partir dos alicerces (isto é, no apoio sobretudo à base da estrutura demográfica do País e àquele que é o sector mais pobre, mas que não vota, ou seja, aos bebés e às crianças), o governo de Costa entendeu, e logo a um mês das eleições, anunciar convenientemente o aumento do complemento solidário dos idosos.
Claro que se invocará que os nossos governantes se preocupam muito com os velhinhos, mas é preciso denunciar a hipocrisia de quem, sempre chorando a falta de meios, escolhe, não a opção estrategicamente mais correcta, mas sim aquela que julga que, no curto prazo, lhe dá mais votos.
Em terceiro lugar, a situação daSegurança e Saúde no Trabalho.
Esta é verdadeiramente dramática, pois Portugal, não obstante o abrandamento das actividades económicas nos sectores mais relevantes para este efeito (a saber, a construção civil e as indústrias transformadoras), mantém o arrepiante número oficial (o verdadeiro será superior) de mais de 200 mil acidentes de trabalho por ano. E, por outro lado, a não identificação e a subnotificação das doenças profissionais, em particular das mais graves (como as oncológicas) mantêm-se sem alteração à vista, assim ocultando uma situação particularmente crítica.
Deste modo, todos os dias trabalhadores mutilados em acidentes de trabalho ou afectados por doenças profissionais são tratados como trapos e abandonados à sua sorte, submetidos a todo o tipo de humilhações por parte dos serviços médicos das seguradoras e sujeitos aos maiores sacrifícios para conseguirem continuar a ser um ganha-pão para os seus filhos.
E, já agora, e para além disto, convirá recordar também que o governo de Costa manteve inalterada a solução legal de 2014[2], ou seja, dos tempos do Governo de Coelho e Portas, que, relativamente aos trabalhadores da Administração Pública que sofram um acidente em serviço ou contraiam uma doença profissional, mas que apesar de tudo conseguem regressar ao serviço, lhes retira a pensão a que eles têm formalmente direito[3].
Em quarto lugar, os serviços de informações.
É uma autêntica roda livre a situação em que se encontram os chamados serviços de informações, quer os oficiais (o denominado SIRP – Serviço de Informações da República Portuguesa, que tem, como seus “braços operacionais”, o SIS – Serviços de Informações de Segurança e o SIED – Serviço de Informações Estratégicas de Defesa), quer os “oficiosos” visto que cada corporação policial (da PSP à GNR, do SEF à PJ) dispõe dos seus próprios e secretíssimos serviços. Todos eles têm, ao longo dos anos, impunemente vigiado, seguido e escutado dirigentes políticos, sindicais e associativos, bem como activistas sociais.
O Conselho de Fiscalização das ditas “secretas” – composto por 3 membros eleitos pelo Parlamento – nada inspecciona efectivamente (muito menos de surpresa e de modo aleatório, como devia) acerca do que esses serviços fazem, quem vigiam, porquê, com base em que critérios e o que é feito e para que bases de dados vão essas informações.
E, recorde-se igualmente, o Primeiro Ministro António Costa – por um despacho cujo conteúdo também impôs que ficasse secreto, pelo que nem as razões por ele invocadas se conhecem, embora se calculem… – impediu que o segredo de Estado fosse levantado no processo em que foi arguido um ex-dirigente do SIS, Jorge Silva Carvalho, para se saber se era ou não verdade que, como ele invocava, actividades legalmente vedadas aos serviços de informações (como a devassa das comunicações telefónicas) constituíam, e constituem, uma prática habitual do SIS, para a qual os respectivos operacionais até têm formação específica e manuais de procedimentos e de operações.
E, desta forma, todos podemos ser, tão rigorosa quanto ilegitimamente, espiados, escutados e controlados por personagens acima (ou ao lado) da lei, sem que os principais responsáveis políticos de um Estado que se proclama de “direito democrático” e os partidos que os sustentam e apoiam mexam “uma palha” porque, pelos vistos e como se torna claro, se dão bem como este pidesco estado de coisas.
Para além das grandes questões estratégicas a que atrás me referi, eis quatro questões mais específicas, mas que se prendem com o âmago da Democracia e que interessam a quem diariamente labuta pela sua vida e pelos seus. Mas que, precisamente por isso mesmo, não interessam aos exploradores, aos opressores, aos parasitas e aos corruptos e a quem, com vestes diferentes embora, se presta afinal a servi-los…
António Garcia Pereira
[1]Artº 113º, nº 3, al. b) da Constituição.
[2]A Lei nº 11/2014, de 6 de Março, que deu nova redacção ao artº 41º da Lei dos Acidentes de Trabalho e Doenças Profissionais na Administração Pública e que a maioria dos juízes do Tribunal Constitucional, no seu famigerado Acórdão nº 786/2017, de 26/11, decidiu que não era inconstitucional.
[3]E que lhes está atribuído desde logo pelo artº 59º, nº 1, al. f) da Constituição.
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