Receita de rancho;Ingredientes: Escravos, monarquia, república, impérios e redes. Subversão aos molhos. Pitadas qb de ideias.
O capitão do mato e a escrava.
Sou uma escrava pertença de um amo, também ele dono de capitães do mato. O meu amo tem um título nobiliárquico, terras entre o mar e o pico. Eu sou escrava numa roça, vestida de amarelo cacau, na ilha de São Tomé.
Naquela ilha de natureza de beleza frondosa e também cheia de perigos, na maioria de mim desconhecidos, todos me conhecem como sendo a favorita do patrão quando este me rouba a vida, todas as noites e sempre que entra na minha intimidade.
Também me descrimina por ser rebelde, afastando-me do contacto dos outros escravos por medo que eu o atraiçoe.
Imaginem, é ali naquela ilha vestida de arco-íris que eu vou preparar a liberdade e recolher escravos, para lhes mostrar que somos todos escravos e, como somos escravos.
Por vontade ou por obrigação, não podemos ser por ignorância. Não hoje. Não agora.
Podemos fugir…da ilha?
Para que outra ilha? A roça e a rede.
Sabemos que estamos a ser cozinhados. E sabemos como será a liberdade de desvendar os segredos do capitão do mato e dos seus patrões.
Essa é a imprevisibilidade da natureza do ser humano. Podem controlar, subjugar, porém nós como eles, também sabemos ver. Como corujas na noite. Observamos e sabemos.
Nós como eles somos subversivos. Arranjaremos formas de denúncia, de rebeldia, de fuga.
Melhor, tudo preparamos, tudo denunciamos de dentro da casa do patrão capitão do mato.
A Res-Pública.
A coisa pública nasce pela denúncia dos crimes da Monarquia, em particular os roubos, a ganância, os favores, os interesses privados num grupo chamado “elite” com direitos e privilégios exclusivos apenas por nascimento.
Caiu o regime monárquico, viva a República – a política representativa de um governo de cidadãos com o desejo e o dever de servir o bem comum. O seu ethos – componente moral – usa o logos (raciocínio e razão) para defender interesses públicos sem recorrer ao pathos (emoção) dos nacionalismos de embuste. Pratica a liberdade e a democracia.
Porém, hoje esta mulher, a República, sente-se (o super poder feminino) de novo refém e escrava, acorda diariamente com a necessidade de subversivamente, a partir de dentro, procurar outros rebeldes, mostrar a outros rebeldes que os sistemas se fundiram, apesar da Constituição lhes garantir direitos, estes de novo a ser minados pela ambição desmedida dos capitães do mato e seus patrões.
Mais não fazem que preparar o campo para outros ditadores manipuladores sem ética nem moral que chegam de mansinho, ilusionistas da liberdade, com os chicotes escondidos atrás das costas.
O rancho e as redes.
Como clube de ratos órfãos dentro de uma roda sempre a procurar libertação, em ciclos de vida, ora na roça, ora na cidade, ora na caravela, ora no império, ora em Babel, ora na bolsa de valores sem valores, ora informação num terabyte, cá nos encontramos, na panela a cozinhar um caldo ainda a apurar.
Chegámos aqui a este rancho onde misturamos feijão com grão, toucinho e batata com vaca cortada em entremeada. Impérios caíram outros nasceram.
Babel foi destruída e hoje os descendentes dos deuses espalhados por todos os cantos da terra juntam-se em redes, redes essas que descriminam uns escravos, de outros têm medo, outros cancelam, fazendo o trabalho do capitão do mato:
-recolhe todos os dados oferecidos que vamos deixando para serem recolhidos. Reunindo-os num rancho. Preparando a cerca onde o próximo império torna o escravo refém. Numa torre gigante.
Mas as redes não são só ódios, desencantos e cancelamentos. São espaços de Resistência e denúncia.
Capitães do mato e auto-biografias não autorizadas.
Os novos capitães do mato, independentemente da Constituição que no império contemporâneo protege os cidadãos livres, conseguiram finalmente possuir uma aldeia global, uma ilha de São Tomé com as suas “elites” subjugadas.
Entrem senhores, venham à ilha, é ver para crer!
Pela mão de capatazes vão construindo biografias não autorizadas, controlando não apenas os caminhos de fuga dos escravos, como pretendendo influenciar o gosto do escravo pela vida na roça.
Os capitães do mato sonham ter um novo império! O capitão do mato é o rancho.
E na roça todos os escravos sentem o cheiro do rancho a ser cozinhado.
O rancho, as redes e a liberdade.
O que me deixa dormir à noite descansada? Saber da certeza da imprevisibilidade da natureza do ser humano.
Foi ela que fez cair impérios, monarquias e sistemas violentos. Também será capaz de derrubar mais esta panela cheia de caldo apurado.
Aqui (e em todos os lugares), quando a Monarquia foi adormecida e a República acordou, trazendo no fundo do tacho pedaços de carne estragada, deixando-se ser salpicada de perigos e venenos, há escravos atentos, resistentes, denunciadores.
As redes são o capitão do mato – podem maltratar, roubar, escravizar e são também denunciadas por dentro. As redes são os catalizadores das natureza humana, imprevisível.
As redes com os seus capatazes artificiais ao serviço dos capitães do mato roubam dados biográficos e as redes humanas fazem o contraponto em peças de resistência.
Estas últimas como se organizam para alimentar regimes também os fazem cair, também derrubam ditadores, ordens estabelecidas e segredos bem guardados.
Na roça global onde hoje se situa Portugal, país que com redes humanas fortes fez cair regimes, impérios e sistemas, será possível alimentar outro rancho, sem carnes pestilentas ?
Os escravos estão embrulhados em redes, com a Constituição de cidadãos para os cidadãos, orgulhosos da tal imprevisibilidade humana, quiçá preparando outra liberdade, outra Res-pública.
Ou não! Já agora, uso a rede, de dentro, para a denunciar, a ela esse capitão do mato que cancela quando quer e como lhe apetece mas também para lhe enaltecer as qualidades de denúncia, neste rancho onde estamos todos a ser apurados.
Anabela Ferreira
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