Segundo a própria Associação do Comércio Automóvel de Portugal (ACAP) anunciou muito recentemente, a marca italiana de automóveis de alto luxo Lamborghini vendeu este ano, em Portugal e até ao final de Setembro, 18 dessas inacreditavelmente caras viaturas, o que significa mais do que a triplicação dos números de 2018.
Convém desde logo salientar que um carro de luxo como este é vendido apenas por encomenda personalizada e custa larguíssimas centenas de milhares de euros (por exemplo, segundo anúncios públicos, um Lamborghini Aventador SuperVeloce custa, em novo, mais de 500.000€ e, usado e já de 2015, 460.000€). Importa dizer também que outras marcas topo de gama (como a Ferrari, a Bentley e a Porsche) tiveram de igual modo um grande aumento das vendas, tudo isto num ano em que o mercado nacional de automóveis ligeiros está, não obstante toda a publicidade e todos os sistemas de compras a crédito disponibilizados, em clara queda.
Entretanto, depois de se conhecer que a tão “exigente” Banca (CGD, BPI e Novo Banco), afinal, perdoou mais de 116 milhões de euros ao capitalista Pereira Coutinho (que beneficiou igualmente da extinção de 253,2 milhões de outras dívidas, num perdão total de 370 milhões), soube-se também que o canal televisivo ETV foi vendido por 100€ (isso mesmo, cem euros!), como parte da massa falida da Ongoing que deixou mais de mil milhões de euros de dívida (700 milhões dos quais ao BCP e ao Novo Banco), enquanto o seu principal responsável, Nuno Vasconcelos, se passeia tranquilamente pelo Brasil…
Significativamente, e não obstante alguma recuperação desses números, segundo os próprios dados divulgados pela Eurostat (o Gabinete de Estatísticas da União Europeia), em Julho deste ano, Portugal era o 6º país dos 28 da UE com maior desigualdade de rendimentos (medida entre 20% dos rendimentos mais altos e 20% dos rendimentos mais baixos da população).
Ainda em 2017, agora segundo o Inquérito às Condições de Vida e Rendimento do Instituto Nacional de Estatística (INE), 1 milhão e 700 mil portugueses tinha de rendimento mensal um valor inferior a 468€ (ou um rendimento familiar, para um casal com duas crianças dependentes, de 982 euros mensais). E deste número arrepiante de pessoas extremamente pobres, uma parte muito significativa é constituída pelos sectores mais vulneráveis da população, ou seja, as crianças e os idosos, sendo que a situação destes últimos, inclusive, se agravou no mesmo ano de 2017.
Depois – e este é outro factor tão relevante quanto preocupante – as famílias monoparentais (constituídas em grande parte dos casos por mães solteiras, separadas ou divorciadas e pelos respectivos filhos) representam o grupo social com mais alta taxa de incidência de pobreza: 31,6%.
O valor médio da pensão de velhice era, em Dezembro de 2017, de apenas 460,56€. E no período de 12 anos entre 2007 e 2018 o aumento anual de todos os pensionistas foi de 8,56€, ou seja, qualquer coisa como 0,60€ por mês…
Por fim, é certo que existe, no nosso sistema da Segurança Social, a chamada “pensão social”, atribuível a pessoas com mais de 65 anos que, por qualquer razão, não tenham direito a pensão de invalidez, de velhice ou de sobrevivência, ou que o tenham, mas de montante inferior ao da referida “pensão social” e que tenham rendimentos mensais ilíquidos inferiores a 167,69€ (tratando-se de pessoa isolada) ou a 251,53€ (tratando-se de casal). Só que a mesma pensão social, já no presente ano de 2019, é somente de 210,32€ mensais!?
Entretanto, e não obstante todo este panorama, o Ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, continua, por um lado, a escamotear à Assembleia da República e ao povo português em geral a segunda parte do Relatório e Contas da Segurança Social de 2018
que permitiria verificar com toda a clareza a situação absolutamente miserável em que (sobre)vivem os reformados em Portugal. E, por outro lado, o Ministro continua a acenar com o espectro da insustentabilidade do sistema da Segurança Social para com isso justificar quer a recusa do aumento das miseráveis pensões pagas, quer as fortíssimas penalizações aplicadas a quem se reforme um pouco mais cedo do que a idade legalmente fixada (e isto mesmo com mais de 40 anos de trabalho e de descontos).
Mas, ao mesmo tempo, o dito Ministro e o Governo de que faz parte, cirúrgica e intencionalmente, escamoteiam duas outras coisas essenciais.
A primeira é a de que um dos grandes perigos para a referida sustentabilidade decorre precisamente dos gigantescos 25% do PIB (Produto Interno Bruto) que a chamada “economia informal” ou “atípica” representa, e nos quais tudo (horários, salários, ausência de condições de Segurança e Saúde no Trabalho, etc.) se passa à margem da lei e onde, claro, não há quaisquer descontos. Esta enorme área de trabalho clandestino (e, nalguns casos, designadamente na restauração e na actividade agrícola, autenticamente escravo) subsiste praticamente intocada, sem fiscalização e, mais ainda, sem punição adequada, por uma razão político-económica evidente – esse autêntico exército industrial de reserva constituído pelos trabalhadores que exercem a sua actividade nesse mundo obscuro (na França chama-se-lhe muito significativamente “travail au noir”) representa um poderoso factor de pressão para o abaixamento dos salários, para o agravamento das condições de trabalho e para a diminuição e aniquilamento dos direitos da generalidade dos trabalhadores.
Acresce que aos sectores tradicionais da economia se junta agora o “exército invisível” (a designação é da própria OIT – Organização Internacional do Trabalho) dos trabalhadores das plataformas digitais e que vão desde a área da tradução ou revisão de textos até à entrega de comida (como a Glovo e a Uber Eats), passando pelos serviços de transporte (Uber e Cabify, por exemplo).
Segundo os dados da União Europeia – obtidos através do inquérito online JRC COLLEEM e divulgados no documento intitulado: “Digital Labour Platforms in Europe” –, Portugal é o terceiro país europeu com a maior percentagem de trabalhadores que em algum momento já exerceram actividade para algumas daquelas plataformas.
A grande questão é que tais trabalhadores, embora sejam aparente e formalmente autónomos, se encontram afinal na completa dependência (e não só económica, mas também jurídica, ainda que por formas e instrumentos distintos dos tradicionais) das entidades para quem trabalham, com a enorme vantagem para estas da ausência quer de custos e de responsabilidades, quer de direitos e de protecção para os respectivos trabalhadores. E isto em matérias tão vitais como a garantia de uma remuneração mínima, o direito ao repouso e à limitação da duração das jornadas de trabalho, a defesa contra rescisões contratuais arbitrárias e ainda o direito à formação e o direito à protecção em caso de doença ou acidente.
Por isso mesmo, alguns países já tiveram decisões dos Tribunais (como em Inglaterra e em Espanha, por exemplo) a garantirem a esses trabalhadores o direito a uma tutela protectiva mínima, com o reconhecimento da sua qualidade de trabalhadores e não de “colaboradores”, designação eufemística utilizada para escamotear a real natureza de trabalho dependente de tais relações de actividade profissional. E noutros (como no Estado da Califórnia, nos Estados Unidos da América, com a aprovação da proposta AB5) foi aprovada legislação consagrando os direitos dos trabalhadores das plataformas digitais, designadamente da Uber, considerando-os como funcionários da empresa no caso de esta controlar de algum modo o seu trabalho ou aqueles se mostrarem necessários para assegurar o regular funcionamento da organização, na sequência, aliás, de uma decisão de 2018 do Supremo Tribunal do Estado da Califórnia consagrando esse mesmo entendimento.
Em Portugal, porém, ao mesmo tempo que o Governo fez aprovar no Parlamento as alterações ao Código do Trabalho mais convenientes aos interesses dos patrões (O código do Trabalho de António Costa – Um regresso ao passado), nem o Executivo nem quem o apoia dizem uma palavra sobre esta matéria que fica, assim, completamente fora da agenda das preocupações do Sr. Costa e Companhia.
Como completamente fora da agenda está também esse outro autêntico escândalo que são as enormes dívidas patronais à Segurança Social e que, curiosamente, nenhum dos especialistas governamentais em Segurança Social refere como sendo um risco para a sua sustentabilidade…
Essas dívidas – de acordo com os dados constantes dos Relatórios dos Orçamentos de Estado dos sucessivos anos – ascenderam a um total de 11.575 milhões de euros em 2014, a 12.404 milhões em 2015, a 12.579 milhões em 2016 e a 11,220 milhões em 2017. Pareceria assim que, ainda que sempre gigantescas, tais dívidas entre 2014 e 2017 até teriam diminuído, embora muito ligeiramente (3%). A realidade, porém, é diferente e bem mais negra: dentro desses valores é preciso considerar o montante da dívida que o próprio Governo considera “perdida” ou “incobrável” e, assim, perdoada na prática e que, no mesmo período de tempo (2014 a 2017, inclusive), subiu de 5.230 milhões de euros para 7.030 milhões!
Significa tudo isto que o Governo de Vieira da Silva e António Costa declara incobráveis mais de 62% das dívidas à Segurança Social e, mesmo quanto àquela parcela que ainda considera recuperável, desde 2017 que deixou de apresentar quaisquer planos para essa mesma recuperação.
E também, escândalo dos escândalos, para p Governo, mas muito em particular para os partidos que se dizem de esquerda como o PCP e o BE, nenhum partido representado no Parlamento que agora cessou funções, exigiu, durante 4 anos a fio, fosse a apresentação daqueles mesmos planos, fosse a averiguação do destino do dinheiro (os 11% da respectiva taxa social única) que foi assim tirado dos salários dos trabalhadores e metido ao bolso pelos patrões.
Fora do Parlamento também não ouvimos nenhum partido político nem nenhuma organização sindical preocupar-se minimamente com estas matérias, aceitando assim serem autores ou, pelo menos, cúmplices, de toda esta gigantesca fraude e de todo este espezinhar dos direitos mais básicos de quem trabalha ou já trabalhou a vida inteira.
Por isso, se revela importante e premente mais do que nunca a questão da criação de organizações que verdadeiramente sirvam os trabalhadores e que, colocando-se à frente dos acontecimentos, ousem combater firmemente por eles.
António Garcia Pereira
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