Entre Catalunha e Portugal – As “Boas festas” lusitanas e o exemplo catalão

Realizaram-se no passado dia 21/12 eleições na Catalunha. Numa (só) aparente normalidade que não conseguiu disfarçar o verdadeiro estado de excepção em que as mesmas decorreram, com a  inédita aplicação coerciva do famigerado artº 155º da Constituição espanhola e a consequente suspensão forçada da autonomia, com 5 candidatos independentistas exilados em Bruxelas, outros 4 encarcerados em prisões castelhanas e mais 7 entretanto criminalmente indiciados pela Justiça espanhola. E sobretudo com o Rei, o Governo de Rajoy, os dirigentes da UE e de vários países membros, inclusive Portugal, e ainda a esmagadora maioria da comunicação social procurando, e por todos os meios, forçar a derrota do independentismo nas urnas decretando a sua morte antecipada e promovendo, todos os dias e a toda a hora, os seus adversários.

E, todavia, são dois os grandes factos políticos decorrentes dessas eleições, que nem sequer a maciça intoxicação por parte dos habituais comentadores consegue já disfarçar.

Em primeiro lugar, é claro, a vitória dos defensores da independência da Catalunha e a maioria absoluta dos mandatos que eles alcançaram contra tudo e contra todos (34 para o movimento Juntos pela Catalunha, de Puidgemont, 32 para a ERC – Esquerda Republicana da Catalunha, de Oriol Junqueras, e 4 para a CUP – Candidatura de Unidade Popular, num total de 70 em 135), maioria absoluta essa que lhes confere o direito a, de novo, constituírem o Governo da Catalunha.

 Aliás, o desconsolo, o desespero e até a raiva da comunicação social, amiga do Governo de Madrid, foram tais que, aquilo que trataram durante toda a noite de procurar destacar, foi a vitória relativa do Cidadãos (um movimento apoiado pelos sectores mais retrógrados e reaccionários da Catalunha, face ao completo isolamento e desmascaramento de Rajoy e do seu Partido Popular-PP), deixando lá para o fim da mesma noite escapar, enfim, que essa vitória de Pirro “não trava a maioria independentista”. A qual, recorde-se, no seu conjunto teve cerca do dobro dos votos do Cidadãos, isto é, 2.062.378 contra 1.101.279, e foi superior a todo o bloco assumidamente anti-independência (Cidadãos, PP e, note-se, Partido Socialista da Catalunha) com 1.887.679.

O segundo facto político foi precisamente a estrondosa e mesmo catastrófica derrota do dito PP de Rajoy, o qual passou de 8,49% dos votos e 10 deputados nas eleições de 2015 para 4,2% e 3 deputados apenas. Um resultado que, mostrando o desprezo e a denúncia a que o Povo catalão votou os neo-franquistas e as suas políticas repressivas, assume também um inequívoco significado nacional, evidenciando como a justa luta do Povo catalão pôs absolutamente a nu a natureza odiosa e proto-fascista do Partido e do Governo de Rajoy.

Os resultados das eleições de 21/12 constituem assim uma dupla e magnífica vitória para o povo catalão e deixaram os seus adversários completamente enredados na própria estratégia que tinham delineado, na vã e agora desmentida expectativa de que, forçando uma derrota eleitoral dos defensores da independência para a Catalunha, conseguiriam abafar essa luta e enterrar essa causa.

Enganaram-se redondamente!

Uma maioria eleitoral clara (que também castigou o oportunismo de forças políticas ditas sem ideologia como o Podemos – Catalunha em Comum, o qual dizia concordar com o referendo mas não apoiar a luta pela independência), obtida nestas condições de autêntico estado de sítio, de terrorismo de Estado e de contínua intoxicação da opinião pública, consubstancia uma vitória política absolutamente notável e um impulso vigoroso na luta do povo catalão pela sua independência. Que deve agora prosseguir pelo caminho já traçado com a legitimidade acrescida decorrente destes resultados.

É óbvio que a guerra não está ganha e que ainda há muito caminho a percorrer, até por existirem diferenças de opinião entre as forças políticas e partidárias que lutam pela independência e nem todas, a começar pelo Juntos pela Catalunha de Puidgemont, estarão de acordo com uma declaração imediata e unilateral dessa mesma independência. Porém, a verdade incontornável é que a manobra neo-franquista de cerco e aniquilamento foi derrotada e o caminho para novos e mais decisivos passos foi desbravado. E a aplicação prática do regime do artº 155º da Constituição ficou cada vez mais inviabilizada, pois não é mais possível continuar a dissolver o parlamento catalão, a prender todos os dirigentes independentistas e a suspender indefinidamente os direitos políticos fundamentais dos catalães.

Mas o que se tem vindo a passar na Catalunha constitui igualmente um exemplo, e um magnífico exemplo, de resistência e de luta para todos os povos do mundo e logo também para o povo português.

É que entretanto, nesta quadra natalícia, fomos também sabendo diversas coisas, tão interessantes quanto significativas, referentes ao nosso próprio País. Mas que, estranhamente ou talvez não, parecem ter ido caindo numa espécie de torpor ou indiferença colectivos:

1 – O mesmo governo de Costa que se recusa a revogar as reformas laborais da Tróica, em particular quanto à facilitação e embaratecimento dos despedimentos, lá aumentou, e a muito custo, o salário mínimo nacional para 580€ (o que, só com a taxa social única e sem qualquer desconto de IRS, representa 516,20€ líquidos por mês), isto quando, por exemplo, em Espanha, ele é de 707,60€ e irá brevemente subir para 735,90€.

2 – Tornou-se público que a política dos empregos precários, dos baixos salários e dos despedimentos fáceis e baratos fez Portugal perder 40 mil trabalhadores altamente qualificados em apenas 2 anos, sendo que, entre 2001 e 2011, ou seja, ainda antes dos piores anos da crise, aumentou em 87,5% o número de trabalhadores com formação superior que se viu obrigado a emigrar.

3 – Enquanto os bancos ganham 5 milhões de euros por dia em astronómicas comissões, por exemplo, de “manutenção de conta”, comissões essas que aumentaram 45% nos últimos 10 anos, o Ministro do Trabalho e da Segurança Social, Vieira da Silva, aconselhou, leia-se, pressionou, a que a Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (que não é suposto ser uma instituição financeira, mas sim de solidariedade social) adquirisse, pela módica quantia de 200 milhões de euros, 10% do capital social do falido Montepio.

4 – Os CTT, depois de privatizados, têm vindo todos os anos a distribuir lucros de dezenas e dezenas de milhões de euros pelos seus acconistas, ao mesmo tempo que piora todos os dias o serviço universal postal e, para “compensar”, a administração tenciona mandar embora 800 trabalhadores, ainda que  haja evidentes faltas de pessoal, desde logo naquele mesmo serviço postal, e em particular nas encomendas que, com as vendas online, subiram em flecha.

5 – O actual chairman da TAP, nomeado pelo Governo de Costa, Miguel Frasquilho, dirigente, ex-deputado e ex-governante do PSD, recebeu, como o próprio já reconheceu e confirmou, em nome e através de familiares, qualquer coisa como 54 mil euros do chamado saco azul do Grupo Espírito Santo.

6 – Por acórdãos, um do Tribunal de Justiça Europeu e outro do Tribunal da Relação de Lisboa, foi decidido que a UBER é uma empresa de transportes e, logo, ao actuar em desrespeito pelas leis aplicáveis ao transporte público de passageiros, está em situação totalmente ilegal. Porém, contando com a complacência do Governo (que, aliás e descaradamente, pretende conceder-lhe uma prenda, isto é, um perdão, de 4 milhões de euros de coimas ou multas!?), a mesma UBER já declarou, com aquele ar arrogante de quem se sente por completo impune, que “tudo fica na mesma” e que vai continuar a operar como até aqui.

7 – A Câmara Municipal de Lisboa do Sr. Medina, que persistiu teimosa e arrogantemente em cobrar aos seus munícipes um exorbitante, ilegal e inconstitucional imposto sob o disfarce da designação de “taxa de protecção civil” e viu, como era já mais que esperado, o Tribunal Constitucional (pelo acórdão nº 848/17 de 13/12) declará-lo inconstitucional, veio dizer que irá devolver, sem explicitar exactamente quando, os 58 milhões de euros que, à margem da lei e desde 2015, sacou dos bolsos dos lisboetas, mas que os cidadãos, ainda por cima,  terão de os ir reclamar expressa e formalmente num qualquer balcão de atendimento camarário (decerto na esperança de que muitos não possam ou não consigam reclamar e assim manterem nos cofres camarários algumas dezenas de milhões de euros) e que, quanto aos juros de mora devidos pelo tempo deste ilegítimo confisco, não sabe ainda se os irá pagar.

8 – No passado dia 21/12, vergonhosamente, os partidos parlamentares que suportam o actual Governo (PS, PCP e BE), mais o PSD, à porta fechada, sem actas e sem textos de propostas formais de cada partido, aprovaram na generalidade, na especialidade e em votação final global (tudo no mesmo dia!), alterações à lei de financiamento dos próprios partidos, as quais, não só os passaram a isentar totalmente de IVA em todas as aquisições e transmissões de bens e serviços, como acabaram com o tecto máximo dos donativos (que até aqui era de 628.830€), atribuindo-se deste modo, a si mesmos, benefícios de milhões e milhões de euros.

9 – Segundo dados da própria Associação do Comércio Automóvel de Portugal – ACAP, 18% do total dos automóveis vendidos em Portugal em 2017 foram veículos de luxo.

Em suma, o que sobra em ganhos e vantagens para uns, poucos mas ricos e poderosos, escasseia para todos aqueles que têm de lutar diariamente pela sua própria subsistência.

Mas isto não tem que ser forçosamente assim!

E eis que, deste modo, regressamos ao ponto de partida – aquilo que todos estes factos da Catalunha e de Portugal, (só) aparentemente sem relação entre si, demonstram afinal é que aquietar-se e ajoelhar-se perante a injustiça, o abuso e a ilegitimidade e aceitá-los como uma espécie de “fatalidades do destino” que estaríamos fadados a ter de suportar, significa alienar, e nas mãos de quem oprime, a capacidade de se mudar o rumo das coisas.

É que apenas quem ousa lutar é que, por mais difícil que a batalha pareça ser, ousa vencer!

E assim ressoam as belas e certeiras palavras do poeta José Gomes Ferreira:

“Acordai,

homens que dormis

a embalar a dor

dos silêncios vis

vinde no clamor

das almas viris

arrancar a flor

que dorme na raiz.”

António Garcia Pereira

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