“CAVAQUISMO”, A Ilusão e a Realidade (Por Alfredo Barroso)

– Considerar que o “cavaquismo” (1985-1995) terá sido “uma experiência de social-democracia moderna”, como o próprio Cavaco Silva resolveu agora afirmar em livro, não me parece sério e abusa da natural falta de memória histórica característica das opiniões públicas. Por isso, achei interessante e importante olhar para o cavaquismo pelo meu retrovisor. 

Devo esclarecer, antes de mais, que nunca subestimei Cavaco Silva, cujo pendor autoritário, mesclado de demagogia e populismo, e alicerçado num apurado sentido da oportunidade, fez dele, não só um adversário temível, mas também um dos políticos mais calculistas que conheci em toda a minha vida activa (que já vai em mais de meio século). Há, aliás, duas frases que retive na memória, da autoria de Cavaco Silva, que caracterizam bastante bem o político excessivamente rígido e limitado que ele também é.

Uma delas foi proferida em 2005, tornou-se famosa e dizia o seguinte: «Pessoas inteligentes, com a mesma informação, chegam às mesmas conclusões». Quem tenha alguns conhecimentos de história, seja do país ou do mundo, seja das ideias ou dos factos políticos, sabe perfeitamente que tal afirmação não é verdadeira. Porque, regra geral, pessoas inteligentes, com princípios, ideias e opções políticas distintas, chegam a conclusões diferentes mesmo quando possuem a mesma informação. É isso, aliás, que está na base dos sistemas democráticos, pluralistas e pluripartidários.

Mas a frase proferida (em 2005) por Cavaco Silva era (e é) característica do discurso político dominante nos diversos partidos que alternam no poder em quase todas as democracias ocidentais. É uma frase que traduz aquilo que alguns já designam como «o fim da política».

Para políticos que dizem situar-se rigorosamente ao centro – como era, então, o caso de Cavaco Silva – a política na sua dimensão conflitual é considerada como algo pertencente ao passado. O tipo de democracia que recomendam é uma democracia consensual, totalmente despolitizada, não partidarizada, sem confronto ideológico e programático entre adversários, submetida aos princípios tecnocráticos e burocráticos implícitos naquilo que os banqueiros, gestores e empresários «modernos» designam por «boa governança», seja lá isso o que for – mas democrático não é.

Esta concepção aparentemente moderna teve a sua tradução histórica em Portugal com a instauração de uma «democracia orgânica» por Salazar, em 1933. Uma «democracia» em que só era consentido o partido único – a União Nacional – e em que os adversários políticos eram colocados fora da lei, eram considerados subversivos, eram perseguidos pela polícia política e eram forçados, muitas vezes, a passar à clandestinidade, para fugir à prisão. 

Claro que Cavaco Silva não quis instituir uma democracia orgânica e até respeitou formalmente as regras da democracia pluralista, ascendendo aos mais altos cargos políticos através de eleições. Mas o seu desejo ardente duma democracia consensual, sem conflitos entre adversários, sem ilusões e utopias, virada para o futuro e cheia de esperança, dominada pelo discurso politicamente correcto e esvaziada do confronto de ideias – que só pode subverter o consenso – é algo de genético e intrínseco, que está sempre implícito (e até explícito) no discurso de Cavaco Silva. 

2 – A outra frase de Cavaco Silva que retive na memória, já esquecida mas também famosa, foi proferida por ele em 2 de Março de 2002, durante uma conferência na Faculdade de Economia do Porto.

A propósito da sustentabilidade da Segurança Social e referindo-se à quantidade de funcionários públicos em Portugal (cujo numero, diga-se de passagem, aumentou significativamente durante os dez anos em que ele foi primeiro-ministro), Cavaco Silva disse, às tantas: «Como é que nos veremos livres deles? Reformá-los não resolve o problema, porque deixam de descontar para a Caixa Geral de Aposentações e, por isso, diminui também a receita do IRS. Só resta esperar que acabem por morrer»

Esta extraordinária declaração proferida por Cavaco Silva, que revela uma total insensibilidade humana, não lhe deve ser levada a mal, porque é característica dos tecnocratas da política, sempre mais preocupados com os números do que com as pessoas. Cavaco Silva é isso mesmo, um tecnocrata da política. Considera-se, acima de tudo, um economista, e foi assim, como economista, que quis ser eleito Presidente da República em 2005.

Em reforço desta tese, não resisto à tentação de citar uma passagem da entrevista que Cavaco Silva concedeu ao Expresso, publicada em 23 de Outubro de 2010, que ilustra bastante bem o lado acentuadamente tecnocrático, mas também burocrático, da personalidade política de Cavaco Silva.

Quando diz que chamou os partidos, «na sequência da afirmação de que o Governo não teria condições para governar sem a aprovação do Orçamento de Estado», Cavaco Silva salientou: «Forneci às forças políticas toda a informação relativa às consequências de uma crise, no caso da não aprovação do orçamento. E forneci informação bastante detalhada relativamente à dependência da economia portuguesa dos mercados financeiros internacionais»

Tanta minúcia comove. Dá vontade de perguntar como é que Cavaco Silva terá fornecido aos partidos toda aquela informação? Terá sido em dossiers repletos de relatórios escritos em folhas A4? Ou ter-se-á limitado a proferir uma lição, do tipo magister dixit, aos pobres ignorantes que foram por ele recebidos no Palácio de Belém em representação dos diferentes partidos?

A minha curiosidade era grande. Mas a declaração citada revela bem que Cavaco Silva não era apenas um tecnocrata. Era também um verdadeiro burocrata da política que dedicava muito do seu tempo em Belém a coligir informação (em jornais, estudos, pareceres, relatórios oficiais), informação essa que, uma vez fornecida a políticos inteligentes, só podia, na sua opinião, obrigá-los a chegar às mesmas conclusões. Era a escola do pensamento único em todo o seu esplendor. E a democracia consensual, sem conflitos e sem alternativas, elevada por Cavaco Silva a um patamar nunca antes alcançado.  

3 – Ao longo dos anos, foi sendo construído um mito à volta de Cavaco Silva, que o próprio foi alimentando desde que exerceu as funções de primeiro-ministro, entre 1985 e 1995. Aliás, na já citada entrevista ao Expresso, não perdeu a oportunidade de declarar, às tantas: «Eu sei bem a situação em que deixei Portugal em 1995 e tenho muito orgulho»

Sem questionar o «muito orgulho» a que Cavaco Silva tem direito, é bom salientar que o balanço de dez anos de «cavaquismo» está longe de ser brilhante, tal como convém lembrar as circunstâncias excepcionais em que Cavaco Silva acedeu ao poder, dando provas do seu proverbial sentido da oportunidade, que alguns qualificam como puro oportunismo político. 

Refira-se, para começar, que Cavaco Silva se afastou sempre da vida política activa e do poder quando previa momentos difíceis. Recusou-se, em 1980, a fazer parte dos Governos da AD chefiados por Francisco Balsemão, e só regressou à política para reconquistar o poder quando outros já tinham feito o trabalho mais difícil – Mário Soares e o Governo do «bloco central», em 1985 – ou estavam a fazê-lo – primeiro Governo de José Sócrates, em 2005.

Depois de ter sido o ministro das Finanças do primeiro Governo da AD, chefiado por Sá Carneiro (VI Governo constitucional), Cavaco Silva não aceitou continuar como ministro das Finanças dos Governos chefiados por Francisco Balsemão, porventura por conhecer bem, como evidentemente conhecia, as consequências da política económica e financeira que ele próprio tinha adoptado em 1979-1980 – a saber: perda de competitividade da economia; agravamento brutal do défice externo; enorme endividamento em dólares das empresas públicas; recusa de financiamento por parte do sistema financeiro internacional, face um défice externo record.

Quando estes gravíssimos problemas foram resolvidos pelo Governo do chamdo «bloco central», chefiado por Mário Soares (entre 13 Junho de 1983 e 6 Novembro de 1985) – a saber: recuperação da competitividade da economia; controlo das contas públicas; eliminação do défice externo; restauração da credibilidade do país face às instituições internacionais; abertura do processo de reprivatização da economia; assinatura do Tratado de Adesão à CEE -, Cavaco Silva decidiu, então, regressar à vida política activa, conquistando a liderança do PPD-PSD no congresso da Figueira da Foz, derrubando o Governo do «bloco central» com a conivência do Presidente da República, então Ramalho Eanes, e provocando, assim, as eleições legislativas antecipadas que ambos desejavam, para derrotar o PS.

– Como primeiro-ministro, Cavaco Silva beneficiou dos excelentes resultados das políticas levadas a cabo pelo Governo do «bloco central» – designadamente: do excedente da balança de transacções correntes; da abertura do mercado espanhol propiciada pela integração na CEE: e das abundantes transferências de fundos estruturais provenientes de Bruxelas – o que, obviamente, favoreceu um crescimento rápido da economia, a descida da inflação e dos défices, e o aumento do emprego.

No entanto, conforme salienta a economista Teodora Cardoso, numa pormenorizada «análise crítica» publicada em 2005 (sob o título «Cavaco Silva, a ciência económica e a política»), o que «começou por faltar» a Cavaco Silva foi «uma orientação inequívoca, no sentido de aproveitar esta fase ímpar, mas passageira, para preparar a economia para um tipo de competição completamente diferente da que enfrentara no passado. (…) O caminho para Portugal não podia continuar a ser o da falta de qualificação e dos baixos salários».

Teodora Cardoso esclareceu o seu ponto de vista: «Ao contrário da moda recente de criticar a opção pelas infraestruturas, não me parece que esta tenha sido um erro. Erros sim – e graves – foram a incapacidade de usar eficazmente os fundos de formação profissional; de levar a cabo uma reforma do sistema de ensino que privilegiasse as necessidades da sociedade e da economia; de proceder a um correcto reordenamento do território e a uma reforma do processo orçamental que permitisse a descentralização racional da gestão pública; ou (a incapacidade) de criar uma administração pública e parceiros sociais preparados para encaminhar o país no sentido que a integração europeia e mundial lhe impunham. Ao contrário do que às vezes se deixa entender, o facto de se construírem estradas não impedia que se melhorasse a qualificação dos portugueses. Pelo contrário, face à abundância dos fundos estruturais e ao crescimento rápido da economia e da sua capacidade de financiamento, ambas as opções eram não só possíveis como indispensáveis».

Aproveitando «uma folga financeira irrepetível», Cavaco Silva criou um novo sistema retributivo (NSR) da administração pública, que podia ter sido a contrapartida ideal para levar por diante as reformas indispensáveis, mesmo que impopulares. Mas não foi. Cavaco Silva não quis correr riscos, e nem sequer mexeu nos múltiplos esquemas «especiais» que continuaram a proliferar durante os seus governos. Por isso mesmo, conforme conclui a professora Teodora Cardoso: «O que Cavaco Silva nos legou reduziu-se à expansão dos regimes especiais, ao reforço da rigidez e da incapacidade de gestão e inovação, e, sobretudo, a um aumento dos encargos com a função pública que correspondeu, em termos reais, à mais que duplicação da massa salarial das administrações públicas entre 1985 e 1995»

Mas os graves erros cometidos por Cavaco Silva não se ficaram por aqui. Como recordou António Perez Metelo, num artigo publicado no DN Economia, em 12 de Julho de 2006: «Em termos de Segurança Social é bem sabido que, entre 1985 e 1995, o Estado não pagou integralmente as verbas devidas ao correcto financiamento dos sistemas não contributivos. Criou-se, aí, um défice, que acelerou as tensões à volta do financiamento sustentado de toda a Segurança Social pública». E essas verbas, esclarecia António Perez Metelo, situaram-se «na casa dos milhares de milhões de euros». 

Antecipando as consequências dos seus erros – défices excessivos do sector público administrativo; aumento da despesa pública superior a 12  %, entre 1990 e 1995; taxa de crescimento muito baixa (0,8 %, em vez dos 2,8 % que tinha prometido, entre 1991 e 1994); taxa de desemprego a crescer (superior a 7 % em 1994) – Cavaco Silva, depois de alimentar o famoso «tabu», decidiu mais uma vez afastar-se, quer da chefia do Governo quer da chefia do PPD-PSD, deixando a «batata quente» nas mãos de Fernando Nogueira, que lhe sucedeu como presidente do partido e acabou por ser derrotado por António Guterres nas eleições legislativas de 1995.

5 – Cavaco Silva ainda disputou a eleição presidencial de 1996 – mais para tentar provar que não «fugia», do que convencido de que a ganharia – mas, uma vez derrotado, afastou-se da vida política activa e remeteu-se a um silêncio algo ruidoso. Prevendo a crise que se agravou a partir de 2001, Cavaco Silva ajudou a derrubar o Governo de coligação entre o seu próprio partido e o CDS-PP (o Governo de Pedro Santana Lopes), e continuou a preparar discretamente a sua nova candidatura a Belém, alimentando mais um «tabu». E quando o Governo do PS (saído das eleições de Fevereiro de 2005 e chefiado por José Sócrates) tomou as medidas duríssimas e impôs as políticas de austeridade que eram conhecidas, Cavaco Silva não hesitou em considerar que era chegado o momento de regressar à política activa. E a verdade é que, como diria Júlio César, «regressou, viu e venceu».

Cavaco não é, de facto, um político para os momentos difíceis. Mas é um político que sabe tirar partido deles. Em relação à gravíssima crise que o país então atravessava, sacudiu logo a água do capote. Na declaração de recandidatura a Belém, em 2010, já teve o cuidado – e a falta de pudor – de afirmar, sem se rir, que o Pais ainda estaria pior se não fossem os avisos e os alertas que ele dispensou com tanta generosidade, durante cinco anos. Foi assim que o Presidente economista pretendeu ultrapassar a frustração de não ter sido capaz de cumprir o que prometeu na eleição de 2006. Ou seja: com ele em Belém, o país nunca poderia chegar ao ponto a que chegou… 

Que pena não terem sido lidas, tanto em Portugal como lá fora, todas as informações coligidas e fornecidas urbi et orbi por Cavaco Silva. Porque, se as tivessem lido, todos teriam chegado às mesmas conclusões e o mundo estaria bem melhor, porventura a caminho dos amanhãs que cantam!

É certo que os mitos são sempre muito duros de roer e resistem bastante à realidade, por mais evidente que ela seja. Cavaco Silva sabe disso – e a direita que sempre quis transportá-lo num andor, também sabe. A crise brutal que o país enfrentava em 2010 – somada ao inevitável parecer positivo da sua augusta família, mais do que favorável à recandidatura do famoso “homem do leme” – favoreceu, pois claro, os desígnios de Cavaco Silva e condenou ao insucesso a tarefa daqueles que, então, se atreveram a enfrentá-lo. Porque, em 2010, ele já não se recandidatou apenas como o economista capaz de resolver as crises. Cavaco Silva teve o atrevimento de se recandidatar em nome de Portugal – como ele próprio o disse! – sugerindo a imagem quase subliminar do tão almejado “partido único” numa democracia consensual totalmente despolitizada e despartidarizada  – e, evidentemente, sem quaisquer laivos da “social-democracia moderna” que ele agora, em 2020, nos quer impingir retroactivamante. Cavaco Silva, impregnado dos velhos mitos e ilusões do Estado Novo, em que foi educado, sempre advogou «o fim da política». O que é extremamente perigoso para a democracia…

Campo d’Ourique, 8 de Outubro de 2020 –  ALFREDO BARROSO      

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