“Porém eu não sei viver sem. Fim” (Chico Buarque na canção: “ela faz cinema”)
Hoje encontrei-me de novo com a morte. De um jovem, de um velho. E ontem também de alguém mais velho e no dia anterior de um amigo com meio século de vida. Ela é assim. Apanha-nos de surpresa. Mas não falha. Faz doer. Nuns dias vem vestida de cores jovens, noutros é uma crisálida que acabou de se transformar, noutras uma pomba.
Que sei eu sobre a morte? E sobre a vida? A resposta é…nada. Cada dia que passa, menos ainda. E quando me cruzo com ela morro pasmada. E de entorpecimento. Porque nada sei sobre ela. É uma desvantagem minha. Sei que vai chegar para mim e para os outros mas não quero. Dói-me quando chega. Quando nos cruzámos ela compôs um ar desdenhoso e arregalou a sobrancelha. Só uma. A outra ficou preguiçosamente deitada no seu canto arredondado. Sabe que não terá problemas. Vai sempre ficar por ali, no seu canto. Arredondadinho. É que é assim que também vamos ficar! Arredondados na volta com fim, da vida.
Sentei-me e esperei que ela se sentasse. Começamos a conversar a contragosto da morte, claro. Ela estava ali a cumprir a sua missão, levar gente para casa, seja lá onde for. Como um táxi mas sem contador. Todos lhe devemos pagar a devida corrida.
Achas que é no céu questionou-me? Foi a minha vez de levantar as duas sobrancelhas em sinal de espanto. Que sei eu? Ando aqui como num carrocel, sem saber o destino das voltas que dou, ou porque razão as dou. Nem sequer entendo porque por vezes desce a cantos escuros e sombrios, noutras faz-me ficar no ponto mais alto e luminoso. E de repente dá uma cambalhota que só com sorte não perco o equilíbrio. Para quê, podes-me responder? Sempre com o ar desdenhoso, retorquiu-me, não precisas saber. Vais saber. Mas…e se te disser que continuas no carrocel? Gostas da ideia? Já olhaste para as árvores? Nas várias estações elas ganham o sorriso das folhas e das flores e noutras estações deixam-nas cair para se renovarem. Gostas tanto de teatro então ouve cá… gostavas que te dissesse que a peça se vai escrevendo eternamente? Chegas à plateia, ou com sorte tens lugares no balcão ou ainda como alguns privilegiados ficas nos camarotes e ganhas um passaporte. Com ele sais e vais ao cinema, jantar fora num restaurante gourmet com amigos janotas, beber uns copos, casar, ter filhos, fazer um cruzeiro, usar as pessoas para cresceres, ser rejeitado vezes sem conta, rejeitar outras tantas, sofrer por amor, descobrires quem és e o que te dá prazer fazer, experimentar o que te traz alegria, amar muito, chorar e rir, chorar a rir e depois regressas ao teatro para ver a cortina descer com o passaporte devidamente carimbado. A peça não pode continuar sem fim não achas? Ou quem sabe pode…
E então? Já estava a ficar impaciente e continuava sem respostas. Então o quê? Achas que é pouco? Olha se queres saber eu farto-me de trabalhar a toda a hora. Sou muitas e em várias partes do mundo. Mas isto cansa. A morte é eterna e vive sempre a trabalhar. Dá trabalho digo-te eu que sou ela.
Finalmente via-a sem o ar trocista e desdenhoso de superioridade. Olha lá morte, mas tu não precisas de ter esse ar, tu sabes que mandas, quando e como queres. Nós temos medo de ti, por isso tens todas as vantagens. Gostava muito de perceber a razão de fazermos tudo o que disseste e mais algumas coisas como ficarmos doentes, inválidos, incapacitados, dependentes, às vezes deprimidos, vazios, sem sentido, desesperados e sem perceber o porquê de tudo isto e de repente tu chegas e…
Voltou o ar escarninho à sua expressão sem rosto: achas que não significa nada? Está bem, problema teu! encolheu os ombros e nem me olhou. É uma experiência digo-te eu. Como vocês têm a mania de fazer uns com os outros. Usam-se e estão sempre a tentar provar qualquer coisa. A alguns corre bem. São importados para a vida dos outros. Outros escolhem caminhos infelizes e sós. Escuta-me, vocês aqui é que escolhem as mil vias alternativas. Eu só sou avisada para vos servir de acompanhante num sonho do sono, numa esquina na rua, numa onda, numa corda que aperta ou onde tiver de ser. E só ouço choros e lastimações. Sempre a mesma coisa: porquê? Era tão bonzinho, é uma injustiça, ainda tinha tanta vida pela frente, não merecia…Deviam aprender a ser menos aborrecidos. Já sabem desde sempre que vou aparecer…
Aborrecidos? Mas achas tu que é possível não sofrer quando tu vens buscar algum de nós? Como?
Não te posso responder. Só te posso dar umas pistas. Por exemplo tu és uma velha e uma nova também, cheia de carimbos no teu passaporte. Se te vier buscar não vais feliz? Vá lá responde!
Claro que vou, respondi-lhe de forma insolente. Se puder até gostaria de te pedir que não me leves inteira para onde quer que me carregues. Deixa cá o meu corpo para fazerem cinzas e estas que sejam levadas pelo vento e entregues aos mares já que continuo sem saber para que fim sirvo.
Então cuida de teres uma vida que não seja mesquinha, nem sem graça. Não sabes se não vais nascer de novo quando te levo e desconfio que vais continuar assim, sem saber, pelo menos por mim…
És uma verdadeira egoísta, disse-lhe desistindo da conversa. Ganhar-me-ia sempre pensei com a certeza de um pensamento claro.
Não queres saber quando é que te venho buscar? Ou o que deves fazer para nos momentos em que estás no ponto alto e luminoso prolongares a vida e não deixares que te apanhe? ou quando estás na descida deixares de sentir que ela se alonga?
Estás a falar a sério? És capaz de me dizer a tua razão de ser? A razão de vivermos com a morte a interferir nas nossas vidas?
Ahh apanhei-te de novo a fazer as mesmas perguntas. Que cansativa que és…não te vou responder e vou continuar o meu trabalho de ceifadora. Essa é a minha razão de ser. A tua é a de continuar bem viva, de olhos bem abertos para não tornares a tua vida monótona e pequena. E olha que posso demorar a passar pela tua sombra. Faz o que puderes está bem? Assim quando te surpreender não te vou encontrar em lamúrias nem me chamas cínica. Não tenho muita paciência sabes? Bem, eu tenho de vos levar mesmo, por isso mais vale que façam a viagem bem dispostinhos. Agora até já têm costumes sociais novos. Falam com aqueles que eu levo nas páginas das vossas redes. Já não interessa, mas vocês é que sabem e escolhem esses rituais de consolo.
O meu segredo está e estará sempre na surpresa. Talvez o segredo da tua vida esteja em fazeres coisas importantes pelas pessoas que te rodeiam, seres amável e aprenderes outras tantas coisas importantes até eu te vir buscar. Mas podes não fazer nada disto e eu venho na mesma de surpresa.
Virei-lhe as costas zangada, nada conformada, descrente, aborrecida, lamurienta. O amigo tempo visitou-me e confirmou-me: deixa-me passar que eu ajudo a sarar o que for preciso e a encontrar-te com quem és se for essa a tua vontade. Quando te encontrares com a tua surpresa, vais limpa e refrescada. E com muitas matérias aprendidas. Confia em mim. Era amável este tempo que se apresentava num fato catita de ramagens coloridas e primaveris. Sorria benevolente.
A morte já tinha desaparecido no horizonte e levava com ela alguém com todas estas características, jovem, velho, criança.
Hesitei. Pode ser que tenha tempo para confiar no tempo, vou tentar aprender mais, estar atenta, desapegar-me do que puder, pensei eu limpando os meus botões. Tarefa de uma vida inteira onde não posso perder tempo. Para que seja importante talvez. Com sorte pode ser que a peça vá até ao fim da eternidade. Até ser surpreendida.
Anabela Ferreira
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