COVID-19 e estado de emergência. E os trabalhadores?

Já era, e vem sendo cada vez mais, evidente o modo como o estrato social dos cidadãos influencia a eficiência das suas reacções perante as suspeitas de infecção pelo COVID-19. Basta pensar no meio de transporte (particular, público, táxi ou Uber) utilizado para chegar a um Hospital após indicação nesse sentido por parte do SNS 24. Ou na capacidade financeira para adquirir por si equipamentos individuais de protecção. Ou, mais ainda, para ir realizar num laboratório privado, por 120€, 150€ ou 200€ o teste quando o SNS 24 pura e simplesmente não atende ou quando, perante alguma sintomatologia como a tosse seca, a febre e as dificuldades respiratórias, entende não dar a indicação da realização do referido teste. 

Tudo isto é já de si muito grave, mas mais ainda quando a principal directiva da Organização Mundial de Saúde (OMS), e que é a de “testar, testar, testar sempre!”, não está a ser seguida em Portugal, chegando-se ao ponto de a Direcção-Geral de Saúde (DGS) ter dado a indicação de que os trabalhadores da Saúde, mesmo que tenham tido contacto com pacientes infectados ou altamente suspeitos de o serem, só sejam sujeitos ao teste do COVID-19 se apresentarem sintomas. Permitindo assim que tais trabalhadores, se já contaminados, mas ainda sem sintomas, possam estar não só a agravar o seu próprio estado de doença como a transmiti-la a todos os outros com quem contactam, incluindo outros profissionais da Saúde, e sobretudo aos próprios pacientes.

Porém, mais impressiva ainda é a circunstância de o Decreto do Presidente da República que declarou o estado de emergência[1] ter decidido explicitamente suspender[2] o direito de resistência que está consagrado na Constituição[3] e que consiste em os cidadãos poderem resistir, não a qualquer ordem, mas sim a uma ordem que ofenda os seus direitos, liberdades e garantias, bem como repelir pela força qualquer agressão, quando não seja possível recorrer à autoridade pública.

Mas o que do ponto de vista dos direitos laborais é sobretudo relevante (e bastante revelador da natureza de classe desta medida do estado de emergência) é que, para além da possibilidade da requisição civil de trabalhadores, públicos e privados, para assegurarem finalidades de interesse público – o que sempre seria possível sem o estado de emergência e no âmbito da requisição civil, prevista nomeadamente para os casos de calamidade tal como previsto na Lei de Bases da Protecção Civil[4] – é que na declaração do estado de emergência haja sido escolhido suspender o direito à greve[5]

Portugal é o único país em que, havendo sido declarado um “estado de emergência” ou algo similar, o direito à greve tenha sido suspenso. Por exemplo, nem na Alemanha, nem na França, nem na Itália, nem em Espanha, nem no Reino Unido, nem nos Estados Unidos tal sucedeu.

Aquilo que, pelos vistos, preocupa e até assusta quer o Presidente da República, quer António Costa e o seu governo é que alguns trabalhadores pudessem fazer greve, por exemplo, para protestarem contra o não pagamento ou a diminuição, unilateral e arbitrária, dos seus salários. Ou sequer a possibilidade de quererem fazer greve porque os patrões continuam a obrigá-los a trabalhar não respeitando as directivas da OMS ou da DGS  (como sucedeu na Autoeuropa, com uma justíssima greve antes do estado de emergência mas que hoje, com este, seria ilegal).

Mas já não os preocupa aquelas medidas que, em função da mentalidade empresarial dominante no nosso país, era mais do que previsível que tivessem de ser adoptadas. E, claro, nem uma medida de congelamento de pagamento fosse de prémios e/ou comissões a gestores ou administradores, fosse de lucro a accionistas…

O Presidente da República e o Governo, muito preocupados com as lutas dos trabalhadores deram assim o sinal. E logo começámos a assistir a toda a sorte de abusos e ilegalidades: férias alteradas e marcadas unilateralmente para esta época; aplicação de lay-off forçados (fora dos respectivos parâmetros e dos procedimentos ilegais, face quer ao Código do Trabalho, quer ao novo regime), sem garantias de recebimento das respectivas retribuições; cortes das remunerações devidas através, por exemplo, do abaixamento do salário mensal, do não pagamento dos prémios, comissões ou outras prestações complementares contratualmente estabelecidas, e até retiradas dos carros atribuídos para uso total (logo, também pessoal, e integrando assim a retribuição, a qual, nos termos da lei, não pode ser diminuída).

Mas a situação mais grave é a dos despedimentos, que assim se estão a verificar cada vez mais. É o caso dos trabalhadores das empresas de trabalho temporário a quem estas, invocando que as empresas beneficiárias da respectiva actividade a dispensaram, tratam de consumar o respectivo despedimento sem os procedimentos previstos na lei para os despedimentos colectivos e, sobretudo, sem o pagamento quer da indemnização legal de antiguidade, quer dos créditos laborais relativos a férias e a subsídios de férias e de Natal.

Ou então, como está a fazer a TAP, dispensando, através da não renovação dos respectivos contratos a termo e inclusive sob a invocação de pretextos falsos, dezenas de trabalhadores, designadamente de tripulantes de cabine. E também ameaçando os trabalhadores do respectivos quadros com um lay-off a muito curto prazo seguido de despedimento colectivo proferindo ameaças como as de que “ninguém está seguro, nem os mais novos, nem os mais velhos”!

Ou, finalmente, pela mera comunicação, seja por mail, seja por aviso afixado nas paredes da empresa, seja até por sms, como este: “(…) devido ao estado crítico do país e à suspensão dos contratos com empresas nossas clientes somos forçados a fazer um despedimento colectivo do pessoal. Muito tristemente envio esta mensagem esperando que tudo se recomponha”. E tudo isto, ainda por cima, sem processo de despedimento e sem pagamento de qualquer indemnização ou de qualquer dos créditos laborais.

É certo que o Primeiro-Ministro António Costa declarou que os apoios financeiros previstos para as empresas não seriam atribuídos àquelas que praticassem despedimentos. Mas a verdade é que não só tal expressão é suficientemente vaga para ficarem de fora e impunes uma série de abusos e ilegalidades, como entre as medidas organizativas não foram previstas coisas tão básicas como o reforço da capacidade de resposta da já anteriormente moribunda Autoridade para as Condições do Trabalho (ACT), como nem sequer, por exemplo, foi criada uma linha directa para denúncia daquele tipo de situações ilegais e subsequente perseguição e punição.

Os trabalhadores – a quem se julgou muito importante cercear o direito à greve (mesmo que para mais do que legitimamente reagirem e lutarem contra situações como as acima expostas e que correspondem, todas, a casos concretos que chegaram ao meu conhecimento directo e pessoal – estão assim a ser abandonados à sua sorte, muitos deles a serem impunemente mandados embora, ainda por cima sem as indemnizações e sem os créditos laborais a que legalmente teriam de ter sempre direito. E dos restantes, (ainda) não despedidos, muitos são diariamente ameaçados de que, se não aceitarem cortes nos salários, férias e lay-offs à força, lhes acontecerá a mesma coisa…

Os trabalhadores e as suas estruturas representativas – para quem assim e agora se deve tornar absolutamente clara a verdadeira razão de ser da suspensão do basilar direito constitucional à greve – devem organizar-se, estabelecer redes de contactos entre si distintas das da empresa, denunciar com todas as forças e por toda a parte estas ilegalidades e exigir do governo todas as medidas, legislativas, administrativas e organizativas adequadas a fiscalizar e punir exemplarmente os patrões que assim actuem.

A natureza de classe das medidas do estado de emergência em matéria de relações de trabalho assim o exige e impõe!

Entre as medidas basilares de protecção aos mais vulneráveis está, naturalmente e porque não existe qualquer justificação democrática (bem pelo contrário) para a mesma (abrindo um precedente ditatorial gravíssimo) o fim da suspensão do direito constitucional à greve.

Outra é o imediato reforço de todas as medidas e equipamentos de protecção individual dos trabalhadores do sector da Saúde, pois eles representam a primeira linha de combate à pandemia e constitui um escândalo e um absurdo – que se pagarão muito caro! – o grau de desprotecção em que muitos deles hoje se encontram. Mas também as medidas de protecção dos trabalhadores que trabalham noutros serviços essenciais, muito em particular os dos transportes nacionais e internacionais incluindo a TAP, a Groundforce, os Transportes Internacionais Rodoviários (TIR) e ainda os estivadores (objecto de salários em atraso e de um lock-outcompletamente ilícito, efcetuado antes do estado de emergência).

E se o governo quer pensar em decretar requisições civis, pois comece pela do sector privado da Saúde, pondo, como lhe compete fazer, ao serviço do interesse público todos os respectivos recursos. Ou pela das empresas industriais que, pela readaptação da sua capacidade produtiva, possam começar a produzir os materiais de protecção individual (batas, máscaras, luvas) e os equipamentos (ventiladores) que hoje, e não obstante as miríficas declarações governamentais, faltam por toda a parte.

É possível vencer esta gravíssima crise, mas isso só será possível respeitando, e não aniquilando, os direitos de quem trabalha. 

A luta continua, pois! Difícil é certo, mas absolutamente necessária.

António Garcia Pereira


[1] Decreto do Presidente da República nº 14-A/2020, de 18/3.

[2] Artº 4º, alínea g) do Decreto do PR.

[3] Artº 21º da Constituição.

[4] Lei nº 27/2006, de 3/7

[5] Artº 4º, alínea c) do Decreto Presidencial

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