Confrontado com a hipótese, cada vez mais provável, de ver a sua proposta de imposição da obrigatoriedade da aplicação STAYAWAY COVID ser rejeitada no Parlamento, inclusive com um considerável número de votos do seu partido, Costa tratou de efectuar mais uma daquelas manobras evasivas e manipulatórias em que se tornou exímio.
Numa simpática e afável entrevista previamente ajustada com a nova Direcção de Informação da TVI e emitida na passada segunda-feira, Costa aproveitou para informar, com o ar mais cândido deste mundo, que já promovera, junto do Presidente da Assembleia da República, o “desagendamento” (expressão dele) da decisão e votação na generalidade da referida proposta, que, por imposição do próprio Costa, era única e incindível e estipulava a obrigatoriedade legal quer da instalação e uso da aplicação, quer do uso da máscara em locais públicos.
Mas fê-lo num acto de humildade democrática, reconhecendo o disparatado erro da referida imposição legal da STAYAWAY COVID, e, logo, abandonando essa peregrina ideia? Não, de todo!
Embora se esforçasse por dar a imagem de que “não é autoritário”, mas antes um democrata dos sete costados, António Costa procurou apresentar o dito “desagendamento” como reflexo de um desejo sincero de que haja uma “discussão aprofundada” sobre uma questão que é “discutível”.
E por isso mesmo já usara do truque de encomendar a alguns membros do governo (como a Ministra de Estado e da Presidência, Mariana Vieira da Silva, em entrevista à LUSA, e a Ministra da Modernização do Estado, Alexandra Leitão, em entrevista à Antena 1) que dissessem, respectivamente, que o governo, afinal, estava confortável com qualquer que fosse o resultado da votação no Parlamento e que preferia que a aplicação STAYAWAY COVID não fosse obrigatória, recusando-se, sob o pretexto de que se tratava de “questão do foro pessoal”, a esclarecer se ela própria, Alexandra Leitão, já tinha ou não procedido a tal instalação.
Embora este tipo de governantes persista em tomar os cidadãos por burros, o certo é que não só essa resposta o que verdadeiramente significa é que a ministra em causa não só entende – ao contrário do que Costa defendeu e sustentou consecutivamente – que a aplicação não deve ser obrigatória, como também que ela não a instalou no seu telemóvel.
E, por outro lado, todos compreendemos que duas ministras só tomariam a iniciativa de exprimir publicamente estas posições se tal tivesse sido previamente combinado com o Primeiro-Ministro e autorizado por ele, precisamente como forma de “preparar terreno” para, perante a iminência da derrota, antecipar uma retirada feita na melhor ordem possível e de modo a disfarçar a desfeita, ao estilo do que António Costa precisamente ensaiou na tal entrevista “amiga” da TVI, invocando algo como: “se a questão é discutível e levanta muitas dúvidas (inclusive entre membros do próprio governo) eu, que sou um democrata, acho preferível fazer-se um debate mais aprofundado e por isso desagendei”…
É preciso ter descaramento, mas foi exactamente isso que António Costa fez. Sem que nenhum dos jornalistas que o entrevistaram (Anselmo Crespo e Pedro Benevides) tivessem ousado perguntar, por exemplo, se de facto as referidas dúvidas existiam, como e para que é que então António Costa tinha decidido a apresentação da proposta de lei e defendido a mesma com unhas e dentes durante dias seguidos.
É que – a ser verdade o que Costa referiu na dita entrevista – as referidas apresentação e defesa da proposta constituíram ou uma precipitação ou uma teimosia, uma e outra igualmente irresponsáveis e politicamente inaceitáveis.
Mas, embora lambendo discretamente as feridas, Costa fez mais. Por um lado, insistiu – perante, uma vez mais, o completo e passivo silêncio dos entrevistadores, que não o confrontaram com uma só que fosse das inúmeras questões que a aplicação suscita e às quais já me referi em artigo anterior[1] – em que a aplicação é segura. E, por outro lado, deixou absolutamente claro que não se tratou de uma retirada da proposta, mas sim apenas e tão só um seu adiamento para um momento posterior julgado mais oportuno.
Ou seja, António Costa quer manter engatilhado o “argumento” de responsabilizar, por um lado, os cidadãos portugueses em geral e, por outro, todos os que se lhe opuserem no Parlamento, pelas consequências das falhas e das incompetências do governo no combate à pandemia. Preparando assim ardilosamente as coisas para, se a COVID-19 continuar a crescer bastante, exclamar com a maior das hipocrisias e dos cinismos políticos: “Estão a ver? Não quiseram aprovar a aplicação que eu tanto defendi e agora têm aí o resultado!”.
E, note-se, já agora, que a própria necessidade de levar essa lei à aprovação (ou rejeição) pelo Parlamento, correspondendo a uma exigência da Constituição da República Portuguesa, uma vez que – como tenho sempre referido, a restrição de direitos, liberdades e garantias só pode ser determinada por lei, e lei da Assembleia da República ou decreto-lei do governo mas com autorização legislativa daquele[2] – o governo, ou melhor, os governos (quer central, quer os regionais) têm persistido em decretar essas restrições por meio de diplomas exclusivamente governamentais e, ainda por cima e em muitos casos, inferiores à lei, tais como meras Resoluções de Conselho de Ministros ou dos governos regionais.
Mas decisões judiciais como as do Tribunal dos Açores[3] e o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 424 de 05/08/2020, que declararam a inconstitucionalidade de tais expedientes governativos, mostraram a António Costa que, se procurasse impor a instalação e uso obrigatórios da STAYAWAY COVID por meio de mais um diploma governamental, e designadamente por uma das milhentas Resoluções do Conselho de Ministros, corria um risco muito sério, jurídico, mas também político, de ver tal diploma varrido da ordem jurídica portuguesa com a declaração da sua manifesta inconstitucionalidade.
Por outro lado, não deixa de ser curioso assinalar o facto de o governo pretender impor também a obrigatoriedade de máscara, para isso contando com uma proposta do PSD já que sendo a proposta de Costa (máscara + aplicação) uma única, a sua retirada implica para o governo a necessidade daquela “muleta” de Rui Rio. É que é quase ridículo, mas sobretudo politicamente inaceitável, que, sem a menor palavra de auto-crítica, as mesmas autoridades que há pouco mais de 6 meses (e não se tendo preocupado a tempo em adquirir o número adequado e suficiente de máscaras) nos procuravam convencer de que tais equipamentos não só não eram importantes no combate à pandemia como até perigosos por – lembram-se? – darem “uma falsa sensação de segurança”, venham agora impor e sob pena de pesadas multas (até 500€!) a obrigatoriedade legal do seu uso.
Mas essa foi mais uma questão sobre a qual os cordatos e bem-comportados jornalistas da TVI não interpelaram nem questionaram, muito menos com a acuidade que a importância do assunto impõe, Sua Excelência Reverendíssima o Senhor Primeiro-Ministro…
Mas o que é mais importante que tudo o resto é que todas estas propostas, manobras, entrevistas e declarações públicas visam afinal encobrir a questão essencial – por um lado, a Covid-19 é, indiscutivelmente, uma pandemia perigosa, mas os governos em geral, e em especial o português, estão a tratar de produzir intencionalmente um efeito de choque sobre a generalidade dos cidadãos para assim conseguirem fazer passar medidas extremamente gravosas de restrição de direitos e de aumento de poderes, designadamente policiais, ao mesmo tempo que, por outro lado, encobrem e escamoteiam as suas próprias responsabilidades na má resolução das questões da saúde e no deficiente tratamento dos doentes Covid e não Covid.
Pegando na frieza dos números e, naturalmente, sempre sem escamotear a gravidade da Covid-19, podemos constatar que, por exemplo, e de acordo com os dados da Pordata, em 2018 faleceram em Portugal um total de 113.051 pessoas, representando as mortes por doença respiratória 11,7% desse total, ou seja, cerca de 13.000 óbitos.
Por outro lado, a manterem-se os números actuais – que registam 2.228 mortos de pacientes infectados com a Covid-19, no momento em que escrevo este artigo – tal implicará no período de 12 meses um total de cerca de 3.800 mortos, o que representará sensivelmente 29,2% do total de falecimentos por doença respiratória e 3,36% de total dos óbitos.
Por outro lado ainda, um recente relatório do Instituto Nacional de Estatística (INE), intitulado “A mortalidade em Portugal no contexto da pandemia COVID-19”, desde o início deste ano até 04/10/2020 morreram 68.227 cidadãos, o que representa um acréscimo de 7.474 óbitos relativamente à média do período homólogo (mesmo período de tempo de Março a Outubro) dos últimos 5 anos, mas, desses óbitos “a mais”, apenas 2018 (isto é, 27%) foram Covid. O que significa que no espaço de tempo referido houve mais 5.456 mortes não Covid, sem que aparentemente nenhum responsável político ou administrativo ou algum jornalista se pareça importar com esta situação.
Porquê? Porque é fácil de compreender que se todos os dias, durante minutos e até horas a fio, as televisões despejassem a mesma torrente de notícias e reportagens e comentários sobre os óbitos não Covid que fazem relativamente às mortes Covid, há muito que o completo pânico e o absoluto terror se teriam instalado no nosso país. Só que não serviriam para justificar confinamentos, operações STOP, aplicações informáticas, etc.
E, já agora, também importaria que as autoridades de saúde esclarecessem de forma cabal e definitiva a que é que exactamente se referem os números das mortes e de infecções Covid com que todos os dias somos bombardeados. É que uma coisa é um paciente falecer como consequência directa e necessária da infecção Covid-19 (óbito por COVID) e outra bem distinta é o doente, que tendo embora Covid-19, falece por outras causas como, por exemplo, tumor, enfarte do miocárdio, AVC (óbito com Covid). Como importaria também que as autoridades de saúde explicassem o que significa falar-se em “casos” de Covid e em pessoas que “testaram positivo” – se estamos a falar apenas dos que se encontram infectados e contagiando outros com quem contactaram ou também dos que, tendo estado em contacto com o vírus, o seu sistema imunitário desenvolveu anti-corpos conseguindo assim criar imunidade relativamente ao mesmo (o que é completamente distinto de “infecção”).
Ao baralharem e confundirem tudo, as autoridades de saúde, os responsáveis governamentais e os jornalistas “amigos” tratam de criar, não o retrato fiel e rigoroso da realidade, mas sim produzir e amplificar a imagem propagandística e devastadora que interessa aos poderes instituídos para assim poderem governar mais facilmente cidadãos paralisados pelo medo e pelo choque.
E, entretanto, desviar as atenções daquilo que é também realmente essencial:, mais de 1 milhão de consultas e bem mais de 100 mil cirurgias em atraso para os doentes não COVID; falta (e, mais do que isso, incapacidade de retenção), bem como completo esgotamento, dos profissionais de saúde; não realização de todos os inquéritos epidemiológicos que deveriam estar a ser feitos; centros e delegações de saúde e mesmo serviços inteiros incapazes de responderem às necessidades, cada vez mais prementes de serviço; completa descoordenação e ausência de medidas de rectaguarda relativamente aos hospitais que começam a atingir e até a ultrapassar a sua capacidade de resposta, etc. Tudo isto, tal como vêm repetidamente assinalando os médicos de saúde pública, os administradores hospitalares, os directores de serviço, os médicos, enfermeiros, técnicos e auxiliares que estão todos os dias no terreno e bem assim, por exemplo, o actual e cinco anteriores Bastonários das Ordem dos Médicos, cuja carta a Ministra da Saúde tratou com uma arrogância e um desprezo que não deveriam ser admissíveis num regime que se diz democrático.
A isto se soma a completa ausência de capacidade de comunicação, de pedagogia e de condutas de “exemplo vindo de cima” de que o governo, e em particular o Ministério da Saúde, têm dado provas, com a postura sistemática de que os ignaros e miseráveis cidadãos comuns “só aprendem pelo chicote e pela pancada”.
De nada disto curam a sério o governo e as autoridades de saúde e de nada disto lhe pergunta a generalidade da comunicação social.
Porque realmente é bem mais fácil governar um bando de carneiros, profundamente perturbados e assustados do que um conjunto de cidadãos activos, conscientes e até exigentes!…
António Garcia Pereira
[1] Stayaway Covid? Stayaway Ditadura!
[2] Nos termos dos art.º 18º, n.º 2 e 3 e art.º 165º, n.º 1 al. b).
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