Perante o cada vez mais evidente descontrolo do estado da pandemia da Covid-19 e a já inegável situação de autêntica catástrofe em que se encontra a generalidade dos nossos hospitais, impõe-se não apenas fazer um balanço muito sério e rigoroso da actual situação, a todos os níveis, como também tratar de compreender como foi possível chegar-se ao ponto a que se chegou e, sobretudo, determinar o que pode e deve ser feito para o enfrentar e vencer.
Ora, é precisamente isto que os governantes, com António Costa à cabeça, persistem em esquivar-se a fazer, preferindo branquear o passado, designadamente os últimos 6 meses, silenciar as críticas, tomar medidas sem qualquer perspetiva estratégica e coerência, obviamente destinadas ao fracasso, para depois responsabilizar por tal fracasso a generalidade dos cidadãos e “justificar” assim novas e até mais “musculadas” medidas, tão descoordenadas e absurdas quanto as primeiras.
Quem foram, afinal, os “negacionistas”?
Impondo, com a ajuda e até a cumplicidade de uma comunicação social generalizadamente acrítica e complacente, o silenciamento das vozes discordantes – logo fulminadas com o epíteto de “negacionistas”, de “adeptos das teorias da conspiração” e de sabotadores da “grande união nacional” no combate à pandemia – o Primeiro-Ministro e os responsáveis da área de saúde começaram por desvalorizar a gravidade da pandemia (chegando até a Directora-Geral de Saúde a afirmar ser “muito pouco provável” que cá chegasse…). Depois, e para assim engendrar uma “justificação” para a não aquisição atempada e em quantidade bastante dos equipamentos de protecção individual (EPIS), como as máscaras, não recomendaram o seu uso, proclamando mesmo que davam “uma falsa sensação de segurança”, e desvalorizaram o adequado fornecimento dos EPIS aos profissionais de saúde.
Quando, finalmente, começaram a ser tomadas medidas de combate à pandemia, estas assentaram em alegados dados e pressupostos que não foram disponibilizados à comunidade científica, muito menos foram considerados por esta como demonstrados, mas que foram sempre apresentados, e impostos, como indiscutíveis. Assim se desvalorizou a importância e gravidade dos primeiros surtos de dimensão significativa, muito em particular em lares e residências de idosos ou em locais de trabalho (como, por exemplo, o centro logístico da Azambuja), ao mesmo tempo que se apontavam como grandes responsáveis pelo contágio da infecção (e lançando as polícias contra eles) os frequentadores dos cafés de bairros pobres (como o da Jamaica) ou os jovens (quando realizavam algum convívio ou festa).
As medidas que não foram tomadas
Quando se chegou a Julho e a intensidade da pandemia diminuiu, todos os esforços deveriam ter sido concentrados no colmatar das falhas já então conhecidas e no reforço da capacidade de resposta a uma situação que todos os cientistas já então afirmavam que se iria agravar. Por um lado, já nessa altura havia falta, mais ainda do que de instalações, equipamentos e materiais, sobretudo de recursos humanos, em especial qualificados (médicos, enfermeiros, técnicos auxiliares de enfermagem). Por outro lado, era gritante o falhanço – desde logo pelo número gravemente insuficiente de rastreadores (com uma proporção por habitantes, em Portugal, dez vezes inferior à da Alemanha, por exemplo) – na absolutamente vital detecção e rastreamento das cadeias de contágio, em particular através dos absolutamente vitais inquéritos epidemiológicos.
Igualmente se impunha a constituição de “equipes de intervenção rápida” para o tratamento ambulatório precoce, em particular das infecções mais ligeiras. Como se impunha a realização de testes rápidos de forma a rastrear, e muito rapidamente, todos os suspeitos de infecção e começar a acompanhar e a tratar de imediato os confirmados positivos. E ainda a implementação de um sistema informático de gestão integrada das camas hospitalares disponíveis em vez dos amadores contactos telefónicos caso a caso.
Por fim, impunha-se também a criação de soluções adequadas – através da afectação dos hospitais militares e da contratação e, se necessário (como foi evidente no caso do SAMS), da requisição civil dos meios dos sectores privado e social – para garantir o tratamento não apenas de todos os doentes Covid-19 (incluindo os inicialmente mais ligeiros) como também e sobretudo dos doentes não-Covid, não permitindo que se fantasiasse um pretenso aumento dessa capacidade de resposta do SNS por meio da diminuição e até da cessação do acompanhamento de doentes não-Covid, num criminoso lock down hospitalar e de centros de saúde, aumentando exponencialmente a mortalidade extra-hospitalar.
Ora, a verdade nua e crua é que nada disto foi feito, muito menos com a extensão e a profundidade que a mais elementar prudência e responsabilidade impunham.
Manobras de diversão e de desinformação
Pelo contrário, houve bastantes manobras de diversão, como o lançamento da aplicação “Stayaway Covid”, umas musculadas intervenções policiais contra bairros sociais ou sessões musicais, operações STOP à entrada da ponte 25 de Abril, nomeadamente às sextas-feiras ao final da tarde e até palmadinhas nas costas e a “prenda” da “Champions League” para os abnegados e extenuados profissionais de saúde. Verificou-se também a tentativa de encobrimento ou de desvalorização da terrível e crescente realidade do já referido exponencial aumento da mortalidade não-Covid e do risco, cada vez mais acentuado, para doentes crónicos como os oncológicos, os cardíacos e os diabéticos.
E houve, ainda e mais uma vez, o silenciar das vozes críticas ou simplesmente dissonantes, de par com o permanente auto-elogio do Governo, que muito gostou de se apresentar então como o melhor exemplo, em termos de combate à Covid-19, de toda a Europa e até um dos melhores do mundo…
Todavia, sem testagem rápida generalizada, sem efectivo controlo das cadeias de contágio, sem tratamento ambulatório precoce, sem reforço efectivo dos meios logísticos, materiais e humanos, do SNS, o que se preparava, face a uma nova e mais violenta fase da pandemia – que toda a gente, mesmo não especialista, sabia que se iria verificar –, e tal como algumas vozes (logo de imediato abafadas sob o argumento de que seriam “catastróficas” (e até “anti-patrióticas”) então denunciaram, era um autêntico desastre.
Simultaneamente, em vez de uma informação rigorosa e fidedigna, assente numa cultura de verdade e de responsabilidade e no diálogo aberto sem peias, sem preconceitos e em pé de igualdade entre os cientistas, aquilo a que se assistiu foi à imposição da ciência “oficial”. Mesmo os “especialistas” presentes nas reuniões do Infarmed são escolhidos aleatoriamente pelo Governo e em tais reuniões não participam as Ordens, nomeadamente dos Médicos e dos Enfermeiros, nem o Conselho Nacional de Saúde.
Os piores exemplos vieram de cima
Como assistimos também aos piores exemplos vindos de cima, das “selfies” e da partilha das bolas de Berlim na praia por Marcelo Rebelo de Sousa até ao ostensivo desrespeito, e designadamente em actos de cerimónias oficiais, pelas regras sanitárias que a DGS pregava para os cidadãos comuns. E, recorde-se ainda, quando as Ordens dos Médicos e dos Advogados denunciaram situações gravíssimas e perigosíssimas em lares de idosos, onde não havia o mínimo de condições de higiene e de saúde e era assim mais que previsível que aqueles cidadãos adoeceriam e morreriam em massa (como, aliás, tem vindo a acontecer), logo foram acusados pelo Primeiro-Ministro António Costa de “não terem competência” para fiscalizar e criticar o Estado, nomeadamente a entidade tutora de tais lares (o Ministério da Solidariedade e da Segurança Social) e de serem até uma espécie de “força de bloqueio”!
Também, em vez de se tratar de mobilizar, pelos bons exemplos vindos de cima, pela razão e pela persuasão, as populações (já pressionadas e fatigadas por meses e meses de restrições, confinamentos, proibições e ameaças), o governo do Sr. Costa optou pela combinação da política do terror e do choque (com horas e horas seguidas de notícias sobre os doentes e mortos da Covid-19, em Portugal e no mundo, e a aprovação de medidas sancionatórias, inclusive por meios inconstitucionais, como as resoluções, os decretos e as portarias do Governo) com as técnicas do marketing político e mesmo da publicidade enganosa. Por exemplo, pondo-se a DGS e o Governo sistematicamente a desmentir os relatos cada vez mais preocupantes, de quem estava, e está, no terreno e, infelizmente, conhece a realidade como a palma das suas mãos, dos médicos e enfermeiros aos bombeiros, passando pelos trabalhadores dos lares e por familiares de idosos doentes.
Deste modo, perante o agravar da pandemia, as consequências negativas decorrentes da ausência de visão estratégica e da permanente navegação à vista, aliadas à política da imposição do pensamento único, da ilusão do espectáculo e até da falsificação da realidade, não poderiam deixar de se avolumar.
Medidas avulsas e desfasadas da realidade
E, assim, as medidas decretadas já pelo final do ano passado revelaram-se completamente absurdas, por exemplo, obrigando os cidadãos – que tinham entretanto trabalhado a semana inteira – a amontoarem-se nos mercados e em supermercados aos Sábados e Domingos até às 13h, como se o vírus só aparecesse depois dessa hora e obrigando ao fecho de certo tipo de estabelecimentos (como os da restauração), mas mantendo outros (porventura bem menos seguros) abertos e fazendo com que muitos cidadãos tivessem de se deslocar de transportes públicos, sem nunca explicarem qual era o fundamento científico para tal e porque é que o vírus entraria e permaneceria em certos locais e não noutros, e a umas horas, e não noutras.
É claro que este tipo de governação, num primeiro momento, até consegue impor-se, tanto mais que aos “críticos” não se lhes permite que se possam fazer ouvir, mas a mentira e a irresponsabilidade não duram sempre e, num momento seguinte, a dureza e até a violência das consequências dessa forma de agir não podem deixar de se fazer sentir. E, assim, quando Portugal se revela o 1° país do mundo com maior número de infecções e o 2° com maior número de óbitos por cada 1 milhão de habitantes, torna-se impossível escamotear a enorme gravidade da situação dos doentes Covid e, de igual modo, a dos doentes não Covid.
E apesar de as ARS e as administrações hospitalares terem, claramente, instruções do Ministério da Saúde para não falarem, é de autêntica catástrofe o estado em que se vive hoje na generalidade dos hospitais públicos.
Quatro realidades indesmentíveis
Quatro coisas ficam, enfim, completamente a nu:
1ª Não há qualquer controlo efectivo de contágio e os (indispensáveis) inquéritos epidemiológicos não abrangem senão 13% das infecções, desconhecendo-se em absoluto de onde vêm os restantes 87%, pelo que as medidas tomadas o são em larga medida “às cegas” ou ditadas pela “ciência oficial”.
2ª A maior dificuldade com que os serviços de saúde neste momento se defrontam é, para além de instalações e equipamentos, a falta de profissionais de saúde em número suficiente, chegando-se ao ponto de um “hospital de campanha”, como o instalado no Estádio Universitário (muito importante para aliviar a pressão existente sobre os hospitais da cidade de Lisboa, em particular o de Santa Maria), depois de “inaugurado” há largo tempo com pompa e circunstância, só irá começar agora a funcionar, precisamente por falta de profissionais de saúde, que deveriam ter sido, há pelo menos 6 meses atrás, contratados, e que lastimavelmente não o foram!
3ª Equipes de intervenção rápida para o tratamento ambulatório precoce também é coisa que praticamente hoje ainda não existe, permitindo que aquilo que poderia ser um foco individualizado, rapidamente identificado e tratado, se possa afinal alargar mais e mais.
4ª Irremediavelmente atrasado na adopção das medidas necessárias e sem qualquer concepção estratégica do combate à pandemia, cada vez mais desmentido pela realidade dos números, ao Governo de António Costa restou uma política que tem (e cada vez mais) tanto de irresponsável e infundada quanto de absurda e até verdadeiramente surreal.
E, assim, António Costa, numa das suas comunicações mais recentes, sempre sem uma só palavra sincera de auto-crítica por tudo aquilo em que manifestamente o seu Governo falhou, tratou foi de responsabilizar a generalidade dos cidadãos pela situação existente (e que notoriamente se agravou com as “soluções” definidas, por razões político-eleitorais, para o período de Natal) e apresenta “grandes medidas” como as do encerramento dos postigos e das proibições da prática do paddle e do uso dos bancos de jardins!… Francamente…
O que importaria esclarecer
Entretanto, e muito significativamente, o Governo persiste em não esclarecer nem divulgar a origem das vítimas dos óbitos apresentados como “óbitos Covid”, mas os profissionais de saúde no terreno, a começar pelos bombeiros que os transportam, afiançam que, na sua grande maioria, tais óbitos ocorrem com pessoas bastante idosas (com mais de 70 anos e até mais de 80) e sobretudo com os que estão confinados em lares.
A isto acresce que – como o Governo e o seu Ministério da Solidariedade e da Segurança Social só agora parecem ter descoberto… – existirão cerca de 3.500 lares ilegais no nosso país e que, sobretudo esses, não têm, na sua grande maioria, condições mínimas de higiene, de segurança e de saúde, sendo mesmo absolutamente gélidos, situação esta tanto mais grave quanto os médicos referem que por cada 3 dias de frio acentuado – como aquele que se tem verificado no País – aumenta consideravelmente a mortalidade das pessoas mais vulneráveis, em particular as que sofrem de patologias do foro cardíaco ou respiratório.
E, também por isto mesmo, importaria não incluir tudo na designação genérica (e imprecisa) de “óbitos Covid” e distinguir com clareza as mortes por (ou seja, devido a) Covid das mortes com Covid (isto é, de pessoas que faleceram devido a outras patologias, mas que, havendo testado positivo, a sua morte é contabilizada como “óbito Covid”).
E quanto à questão da estatística dos casos positivos, importaria igualmente salientar – como fez recentemente o anestesiologista Dr. Pedro Girão numa interessante entrevista à SIC – que uma coisa é testar positivo e outra é estar doente (de Covid) e que esses testes positivos não podem servir para escamotear o real impacto das outras doenças de que o paciente sofre. Pedro Girão sublinhou também a absoluta necessidade de, sobre estas questões, existir um debate sério e equilibrado em que se oiçam e discutam visões distintas acerca da melhor forma de combater a pandemia, sem estigmatizar ou excluir nenhuma à partida.
Por outro lado, o Dr. António Ferreira, médico do Hospital de São João, manifestou a sua oposição à lógica actualmente em curso de imposição de um “pensamento único” (sic) sobre estas matérias e expressou a sua perplexidade e até indignação perante o enorme desprezo manifestado pelas autoridades relativamente às questões da Ética da Saúde.
Fechar os postigos e abrir todas as escolas
Os dados disponíveis e o estudo do Professor Carlos Antunes da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa apontam para que o grupo etário que mais “arrasta” o contágio seja o dos jovens entre os 12 e os 24 anos (mais de 150 por cada 100 mil habitantes), com incidência não só mais elevada como também sempre a aumentar. Por outro lado, a manutenção de todas as escolas abertas calcula-se que implicará, entre alunos, professores, funcionários e encarregados de educação, uma deslocação diária de cerca de 2,5 milhões de pessoas, estimando-se um acréscimo de 10 mil mortos directamente decorrentes dessa mesma circulação, tornando-se assim absolutamente incompreensível a decisão de as manter abertas, ao mesmo tempo que se encerram, por exemplo, ginásios, barbeiros, cabeleireiros e restaurantes, e se mandam abrir (para não ter que dar apoio aos pais que não têm onde deixar os filhos enquanto trabalham) os ATL e as igrejas.
António Costa decide manter abertos todos os estabelecimentos de ensino (do básico ao superior), bem como os referidos ATL, sob o argumento sumamente hipócrita da “protecção dos alunos mais desfavorecidos”. Como se estes não estivessem, há anos, sem os recursos tecnológicos de que necessitam e como se, não tendo assegurado tais recursos (de 1 milhão e 200 mil computadores prometidos há meses atrás pelo Governo para serem distribuídos pelos alunos “mais desfavorecidos”, afinal, foram apenas distribuídos 100 mil!?), a forma “airosa” de pretensamente assegurar tal igualdade seja a de os mandar vir, nestas circunstâncias de enorme gravidade, todos para a escola!
Pressionado pelo agravamento da situação, António Costa, ainda e uma vez mais sem reconhecer qualquer falha ou erro na sua actuação, ensaiou na passada terça-feira no Parlamento mais uma das duas manobras táticas: sempre encerraria as escolas acaso se verificasse um aumento (que ele já sabia que iria seguramente acontecer) dos casos de infecção da chamada estirpe inglesa. Ora, isto para poder finalmente decidir o encerramento das escolas, mas poder invocar tê-lo feito não por reconhecer ter estado errado, mas para cumprir aquilo que já prometera.
Por outro lado, importa não esquecer que, mesmo nas situações de confinamento decretadas, mais de metade das pessoas com mais de 55 anos (54,9%) vive sozinha, pelo que o decretamento de medidas como aquelas têm necessariamente de ser acompanhadas de organização e execução de medidas de apoio social, que não podem ficar, como em larga medida têm ficado, deixadas à boa vontade dos vizinhos ou de organizações não governamentais.
E que colocar forçadamente em casa, sem trabalho ou sem receber e sem apoios sociais efectivos e condignos, quem vive exclusivamente do seu salário, para mais num país em que temos ¼ da população abaixo do limiar da pobreza, em que 80% dos trabalhadores recebem salários inferiores a 900€ e em que já existem 800.000 desempregados, significa condenar centenas de milhares dos nossos concidadãos a uma morte lenta.
E, enfim, não só não combater eficazmente a pandemia Covid-19, mas também praticar, como pretensa medida desse combate, o abandono dos outros doentes (mesmo que com doenças muito graves tais como o cancro), significa também agravar drasticamente tais patologias e atirar escusadamente para a morte esses mesmos doentes.
Claro que a situação é muito difícil e não existem soluções milagrosas para ela. Mas o que é cada vez mais inaceitável e mesmo insuportável é a postura dos governantes e responsáveis políticos que, sempre sem aceitarem uma crítica e sempre cheios do seu poder e da sua arrogância, vão empurrando o país para o abismo insistindo que a culpa é dos outros.
Governantes que assim actuam podem enganar muitos durante bastante tempo, mas seguramente não conseguirão enganar toda a gente durante todo o tempo. E devem, por isso, ser chamados a enfrentar não apenas as suas responsabilidades políticas e éticas, mas também jurídicas e até criminais, pelas gravíssimas consequências causadas, mais do que pela sua incompetência, pela sua infindável arrogância!
António Garcia Pereira
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