À hora a que escrevo estas linhas (na tarde de quarta-feira 31/3) não há – como verdadeiramente nunca houve… – quaisquer dúvidas de que o estado de emergência decretado por Marcelo Rebelo de Sousa há 15 dias irá ser renovado, com a concordância do Governo, aliás já publicamente manifestada, e pacificamente aprovado no Parlamento esta quinta-feira de tarde.
Perante a enorme gravidade da situação por que estamos a passar – e relativamente à qual não há nem que alimentar medos e pânicos injustificados que apenas agravarão ainda mais o actual estado de coisas, nem que falsear ou sequer atenuar as respectivas cores, que são negras – é, de facto, difícil procurar colocar as questões que racionalmente devem ser colocadas, até para aprendermos com esta crise e assim podermos combatê-la mais eficientemente e vencê-la.
A importância de se debater este assunto
Porém, não é por algo que entendemos que deve ser feito se apresentar como difícil que devemos desistir de o levar a cabo. Muito menos porque se procure impor as lógicas, próprias de sociedades ditatoriais e tão erradas quanto profundamente retrógradas, do “lá vêm as politiquices!” ou até do mais baixo ataque ou insulto pessoal contra quem divirja da corrente principal.
Relembremos que isso foi exactamente aquilo que o governo fascista fez quando, em 25 de Novembro de 1967, uma violenta queda de chuva destruiu dezenas de milhares de habitações e provocou a morte de mais de sete centenas de pessoas nas zonas pobres e rurais da grande Lisboa, muito em particular nos concelhos de Vila Franca de Xira, de Castanheira do Ribatejo e de Alverca. Com vista a evitar que se discutissem as verdadeiras razões daquela terrível tragédia (as miseráveis condições em que aqueles cidadãos viviam) e as respectivas responsabilidades políticas, o governo de Salazar pôs a censura a eliminar qualquer referência ao verdadeiro número de mortos (cuja contagem fez parar pouco depois dos 400), às acções humanitárias dos estudantes, à dor e ao desespero das populações atingidas e à real dimensão da tragédia.
Decerto que a maioria dos que clamam agora contra a “política” e a “politiquice” não será isso que desejam, mas devem então reflectir sobre onde conduzem afinal, também nos dias de hoje, esse mesmo tipo de posições.
Travar uma guerra medonha e sem quartel exige que se saiba com verdade e com a máxima precisão possível onde nos encontramos e qual a exacta dimensão quantitativa e qualitativa daquilo que temos que enfrentar. Não ganhamos nada em procurar iludir a realidade e em, sob o pretexto de não criar alarmismos, procurar desvalorizar as denúncias dos erros cometidos e das falhas existentes.
Ainda aqui regressaremos, mas, para já, detenhamo-nos na própria renovação da declaração do estado de emergência (e na justificação da sua pretensa necessidade), bem como nas questões que ela suscita.
Continuação do estado de emergência
Antes de mais, saliente-se a significativa circunstância de que foi o próprio Primeiro-Ministro António Costa a declarar expressamente na passada segunda-feira 30/3, o seguinte: “Com ou sem estado de emergência, e devido ao sucesso de baixar o pico da pandemia do COVID-19, vamos ter que prolongar as medidas que têm vindo a ser adoptadas”.
Eis, pois, a confissão mais explícita de que, afinal – e como sempre defendemos e é o próprio Primeiro-Ministro que o confessa –, para serem levadas a cabo todas e cada uma das medidas que têm vindo a ser adoptadas, não era necessário o estado de emergência com a suspensão dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos, ainda por cima por períodos infinitamente renováveis por períodos de 15 dias! Isto porquanto outros regimes jurídicos, designadamente os permitidos pela Lei de Bases da Protecção Civil e em particular a declaração do estado de calamidade a nível nacional, permitem e dão cobertura jurídico-constitucional a tais medidas!
Outra questão interessante será a de verificar a forma como votam desta vez partidos políticos (como o PCP e os Verdes) que se dizem defensores dos trabalhadores, mas que, aquando da aprovação do estado inicial de emergência, se abstiveram. Para depois de assim actuarem como Pôncio Pilatos, esquivando-se a tomar uma posição expressa de apoio ou de discordância, virem apresentar protestos e denúncias acerca das situações (por exemplo, de despedimentos ilegais) que precisamente o estado de emergência que eles deixaram passar já se sabia que iria possibilitar, senão mesmo incentivar. Ou então, como fez o Bloco de Esquerda, votar a favor da medida e vir depois fazer o mesmo tipo de discurso!
E começam os despedimentos ilegais…
Já agora, será também interessante constatar se o Presidente da República, nesta nova declaração de decretamento, quanto às questões essenciais, reproduz ou não o mesmo texto que aprovou há 15 dias atrás, continuando, muito significativamente, a mandar suspender os direitos constitucionais quer à resistência contra ordens ilegais quer à greve. E não determinando – ao invés do que logo foi decidido, por exemplo, em Itália e em Espanha – a proibição pura e simples de despedimentos e de dispensa de trabalhadores precários, confirmando assim e por inteiro o sinal de classe do dito estado de emergência. Que, obviamente, também não é afastado por se vir agora (e apenas agora) fazer uma proclamação formal e abstracta de que o Governo poderá impor limitações aos despedimentos nas empresas privadas.
Que interesses foram prosseguidos com a suspensão daqueles dois direitos que não fossem os dos patrões? E a que é que logo assistimos?
Depois de mecanismos e expedientes totalmente ilegais como o gozo forçado de férias (pois, excepto nas micro-empresas, se não houver acordo do trabalhador, o patrão só as pode marcar unilateralmente entre Maio e Outubro), os “acordos modificativos” (baixando ilegalmente os salários sob a ameaça de despedimento), o termo de contratos a prazo e de contratos de trabalho temporário (sob pretextos falsos, como os da extinção de postos de trabalho, quando do que se trata é de contratar trabalhadores ainda mais precários e ainda mais baratos, como a TAP está a fazer com o seu call-center) e, finalmente, o fecho de fábricas e empresas (sob a capa de despedimentos colectivos, como o caso de Coindu, em Braga, ou de lay-off em empresas que até receberam auxílios do Estado e acumularam dezenas de milhões de euros de lucros nos últimos anos, como a Renault, em Cacia-Aveiro).
Tudo isto, mais do que previsivelmente, se multiplicou a partir do decretamento do estado de emergência, ao ponto de a CGTP falar agora em, pelo menos, 1600 trabalhadores despedidos ilegalmente e de a própria UGT referir também a denúncia de dezenas de casos desses.
E o que diz a Ministra do Trabalho sobre todas estas denúncias? Refere que as encaminhou… para a ACT! Ou seja, para a mesma ACT cuja capacidade de fiscalização, de intervenção e de autuação era, já antes desta crise, praticamente inexistente por força da opção política dos governos, pelo menos dos últimos 20/25 anos, no sentido de a enfraquecer e a esvaziar de meios (humanos, materiais e técnicos) e não hostilizar os patrões, em particular os dos sectores económicos considerados essenciais, com os Bancos e as grandes multinacionais à cabeça.
E quase ninguém fala sobre a dramática situação em que se encontram os nossos pescadores, sem qualquer espécie de apoio e com as famílias à fome e a quem é vedado o acesso ao Fundo de compensação salarial, ficando assim sem nenhum rendimento.
Como ninguém quer saber dos 150 estivadores do Porto de Lisboa postos na rua com a insolvência fraudulenta da sua entidade empregadora A-ETPL, criada pelos patrões da estiva, mas a serem agora substituídos pelos mesmos patrões através de outra empresa, a PORLIS, por trabalhadores sem formação.
O que é que isto tem que ver com o combate ao COVID-19? Nada! Mas mostra bem aquilo para que de imediato serviu a declaração do estado de emergência, ao mesmo tempo que se expropriava sem dó nem piedade os trabalhadores da sua principal arma de luta contra estas mesmas barbaridades, ou seja, a greve.
O escândalo da TAP continua…
E um dos casos mais paradigmáticos disto mesmo é o da TAP.
Com um papel meramente simbólico do Estado na respectiva gestão e esta totalmente entregue ao Sr. David Neelman e aos seus quadros, com o Sr. Antonoaldo Neves à cabeça, a TAP tem acumulado prejuízos sobre prejuízos (118 milhões relativamente a 2018, ano em que a Administração distribuiu por si e pelos seus amigos 1.17 milhões de prémios, e 106 milhões relativamente a 2019) e a respectiva Administração amarrou a Companhia à compra, em condições mais que suspeitas, de dezenas e dezenas de aviões Air Bus, cujo custo médio por mês ronda um mihão de euros por aeronave.
O estouro de uma empresa gerida desta forma (ou seja, para salvar e enriquecer a Companhia Azul do Sr. Neelman e para encher os bolsos aos seus Administradores e amigos) era mais do que inevitável. E por isso se começou a anunciar para breve quer a saída desses mesmos administradores, quer dos próprios accionistas privados (Pedroso e Neelman). Mas seguramente que tal escândalo e as suas causas e responsáveis não deixariam, em condições normais, de ser debatidas e até desmascaradas.
Ora, que melhor pretexto para “justificar” e passar em claro as responsabilidades por todos estes buracos financeiros e gestionários da TAP do que o COVID-19?
E aí está! Após semanas e semanas a ameaçar trabalhadores, do quadro e fora do quadro, eis que a Administração toma a decisão de colocar a esmagadora maioria dos seus trabalhadores (9.000) em regime de lay-off, pelo menos durante 3 meses, reduzindo-lhes os salários a 2/3 da remuneração-base invocando a redução da operação, e pondo os restantes 10% em regime de horário reduzido e como salário limitado a 80% da sua remuneração fixa mensal, ou seja, perdendo 20% do salário e todas as retribuições complementares.
Desta forma – e para mais numa Empresa onde formalmente o Sr. Costa e o seu governo nos quiseram fazer crer que o Estado, após o crime da sua privatização praticamente gratuita, tinha entretanto recuperado o controle – agora miraculosamente desaparecem os criminosos actos de gestão, os buracos financeiros onde a Companhia foi metida, os milionários prémios pagos a quem praticou tais desmandos, os compromissos a que quer o Estado português quer a TAP foram por esta gente vinculados, e os seus autores escapam-se, impunes, pela porta baixa!…
Ora, foi precisamente para permitir a impunidade de crimes como este, e não como medida estritamente necessária para salvar vidas, que o estado de emergência foi decretado e o direito à greve suspenso!
Medidas de combate correctas, mas tardias
Voltando agora ao combate ao COVID-19, convém recordar que – tal como pôs a claro, numa recente e importante entrevista ao Diário de Notícias, o Prof. Carlos Robalo Cordeiro, Director da Faculdade de Medicina da Universidade de Coimbra e membro do Conselho de Escolas Médicas e do Gabinete de Crise da Ordem dos Médicos – o essencial das medidas que têm sido adoptadas pelas autoridades de Saúde portuguesas têm sido correctas, mas sempre atrasadas e quase sempre por pressão da própria sociedade civil, a começar a dos próprios profissionais da Saúde e das suas organizações.
“Testar, testar, testar!” é a recomendação número um da OMS, mas é isso que não temos feito de forma suficiente, sempre sob o eterno argumento da “racionalização dos recursos”, ou seja, da “falta de verbas”.
Porém, a última coisa que alguém em Portugal – cujos cidadãos foram forçados pela União Europeia, pelo Banco Central Europeu e pelo FMI a meter até agora, dos seus pobres e esfarrapados bolsos, mais de 20 mil milhões de euros para tapar os buracos das gestões fraudulentas e (tal como então se dizia) “combater o perigo sistémico” da Banca – pode pretender questionar agora é onde ir buscar fundos para dotar o País de todos os meios de prevenção, de contenção e de combate ao “perigo sistémico” do COVI-19. Como é óbvio, e antes de mais, à própria Banca e aos milhões de euros de lucros que tem embolsado ao longo dos últimos anos!
Proteger, antes de mais, devidamente – e testar, testar sempre! – todos aqueles que, precisamente pelas funções que desempenham, correm maior risco de contágio. Dotá-los de todos os equipamentos individuais de protecção de que necessitam. E prover as instituições hospitalares de todos os instrumentos e equipamentos adequados para tratar doentes e salvar vidas constitui, juntamente com a contenção máxima do relacionamento social, a prioridade das prioridades.
Demasiado lentos a reagir
Todavia, não obstante a propaganda oficial em contrário, a verdade é que não apenas as nossas autoridades governamentais – mesmo depois das experiências da China e, posteriormente, da Itália – têm vindo a reagir a reboque dos acontecimentos e por pressão de quem mais de perto lida com a situação, como também o nosso Sistema Nacional de Saúde revelou, não obstante o esforço hercúleo e heróico dos seus profissionais, todas as fragilidades e insuficiências decorrentes de opções políticas (tendentes à sua desvalorização e até destruição) profundamente erradas e que foram tomadas pelos sucessivos governos de há 30 anos para cá. E isso não pode ser escamoteado nem esquecido.
Como referiu recentemente, numa entrevista ao “Observador#, o Prof. Nicholas Christakis, director do Human Nature Lab da Universidade de Yale, Portugal e os restantes países ocidentais foram lentos a reagir ao verem que nascia uma pandemia na China, acrescentando: “pusemos todos a cabeça debaixo da areia e agora estamos a pagar por isso”.
Presentemente, para procurar transformar o tsunami do COVID-19 numa maré mais ou menos normal, é indispensável aplicar medidas firmes de distanciamento social, de auto-isolamento, de confinamento em casa, de encerramento de todos os locais de concentração de pessoas (das escolas, universidades e igrejas aos recintos de quaisquer espectáculos). E também falar, sempre, verdade!
Os números
Jorge Buescu, matemático e prestigiado professor associado da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, chamou muito recentemente a atenção para a circunstância de que o número real dos infectados no nosso país poder ser 11 (onze) vezes superior ao dos dados oficiais! E um grupo de doentes da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto e de investigadores do Centro de Investigação da mesma Universidade (CINTESIS) lançou o alerta de que, no actual estado de coisas, centenas de mortes provocadas directa ou indirectamente pelo COVID-19 podem estar a escapar aos radares das autoridades públicas.
Para se obter a confiança e adesão dos cidadãos para as medidas adoptadas, é absolutamente essencial que as autoridades públicas não faltem à verdade, não ignorem as denúncias, algumas delas verdadeiramente lancinantes de quem está no terreno (dos profissionais de Saúde nos hospitais, por exemplo no de Bragança, aos técnicos e responsáveis dos lares de idosos, por exemplo) e não cometam gafes como a do engano quanto ao número real de infectados no Porto e a da consequente defesa de medidas erradas, como a do cordão sanitário àquela cidade.
Salvar vidas, sempre!
Entre “salvar a economia”, como alguns defendem (como os negacionistas Bolsonaro e Trump) e “salvar vidas”, obviamente que a escolha tem de ser a de salvar vidas. Mas protegendo, apoiando e protegendo precisamente quem é mais pobre, mais fraco e mais vulnerável, e não o oposto!
E se dizer isto, e lutar por isto, é “fazer política”, então, viva a Política! Pois que, sem ela, continuaremos a esconder a cabeça debaixo da areia, a cometer erros e a possibilitar que mais vidas se percam.
António Garcia Pereira
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