«Todo o monumento da civilização é, ao mesmo tempo, um monumento de barbárie» Walter Benjamim, filósofo.
O navio negreiro passava ao largo de Sagres rumando ao porto de Lagos enquanto a vida corria entre profundos estudos dando lugar a excelsos navegadores, no ar, o vapor do cozido enchia de cheiros diversos a casa nobre do Infante que se detinha a mirar maravilhado o astrolábio e as cartas, dispostas em cima da mesa do seu salão com vista para o mar.
O navio que aportaria trazia escravos da costa ocidental africana com destino às minas de ouro do Brasil, um dos grandes achamentos Portugueses que haveria de arrecadar grandes fortunas a certas bolsas Portuguesas do reino.
Em pouco tempo morreriam 158 desses escravos. Foram atirados numa vala comum, como se se tratassem de lixo, em Gafaria.
A vida decorria pacífica junto ao mar atlântico que dava mundos ao mundos e dele tirava ouro, diamantes, açúcar e vidas humanas.
Habituámo-nos a esta ideia romântica, politicamente correcta de uma vida pacífica para os Portugueses no tempo das Descobertas, da colonização, da escravatura nas roças e nas feitorias.
Com a vida tranquila vinham também enormes feitos para o desenvolvimento humano. Mas essa é só uma parte da história.
A outra é um crime de mutilação cultural, de exploração, de expropriação, de roubo, de segregação, de matança e de violação.
Por debaixo do véu da aparente tranquilidade da história, escondemos demónios que inevitavelmente ressurgem.
Não se destruam o astrolábio, o padrão, o brasão ou sequer as algemas. Construam-se antes Padrões ao Conhecimento. Desconstruam-se os instrumentos do “Sebastianismo” e o silício, que servem apenas para aumentar a saudade e a auto-mutilação. Nenhum é necessário. Conhecer ambos é essencial.
Fazem parte de um legado cultural inegável e impossível de branquear sob pena de ser destruído com violência. Porque foi construído pela violência. Ou alguém sabe de um lugar onde a escravatura e o colonialismo tenham acabado de forma aprazível a tomar chá às 4 da tarde?
Que me lembre só a Xica da Silva conseguiu um bom acordo.
De resto houve morte para que a libertação chegasse. O homem branco não abria mão do seu privilégio nem da sua fonte de rendimento (tudo anda à volta do rendimento).
Num planeta com a doença crónica da fome e da violência, a cultura é a única arma de construção – por ter na sua matriz o respeito pelo outro e pelo conhecimento.
Ao fazê-lo elevamos a alma da humanidade, desconstruímos preconceitos e intolerâncias com vista ao Desenvolvimento Humano em Liberdade.
Façamos as perguntas – quem beneficiou e quem ainda hoje beneficia com a história da mentira?
Temos quase mil anos colectivos de experiência em empurrar com a barriga, negar, driblar, fazer de conta, esconder, voltar a negar, usar a peneira para tapar o sol e arranjar bodes de expiação.
As manobras de diversão centram-se no botão da mesma conversa “querem desprezar os nossos grandes feitos”.
O problema agregado aos grandes feitos é que escondem o brutal sistema político, de estrutura elitista com uma meia dúzia de poucos beneficiários e privilegiados que tapavam a barbárie. Ainda hoje. Que os beneficiários não querem destapar.
Pergunto – a quem serve dizer que há um movimento do politicamente correcto, que agora tudo é racismo, tudo é violação e tudo é cancelamento de cultura quando no passado os beneficiários primaram por usar estes mesmos princípios?
Em 1933, quando Hitler foi eleito democraticamente, uma peça de teatro de Hanns Jost tinha uma frase atribuída a Goring – “Quando ouço alguém falar em cultura, saco o meu revólver.”
Nos anos 60 surge a versão da cultura que melhor define a paz por Louis Pauwels “Quando me falam em revólver, saco a minha cultura”.
Hoje muitos de nós dizemos: quando disparam ódio, eu saco da minha lápistola com balas de cultura.
Desengane-se quem a considerar supérflua ou inócua. É outrossim, temida pelo poder. A cultura nas mãos erradas é uma arma de destruição dos beneficiários do colonialismo, do racismo, da segregação, da escravatura. Por isso é vital andar sempre com a lápistola no bolso.
(Parêntesis de quem se vê como uma aventureira despretensiosa e descobridora – como os Portugueses meus antepassados – não interessa se a cultura é clássica, se erudita, se popular. Toda ela tem lugar.
E, se o Sistema Educativo não consegue fazer-lhe ressuscitação manual colectiva, usemos a desfibrilhação, através do uso da educação individual.)
Falar de História e das “estórias” nela contidas, serve para impulsionar o desenvolvimento humano.
Dividir este honesto princípio entre Esquerda e Direita e saudosistas do império ou auto-flageladores e quejandos – conceitos criados para distrair do pecado original – é desonesto e quem o faz sabe-o.
O Racismo associado à Escravatura e aos Descobrimentos deve ser exposto, dissecado, falado, colocado ao serviço da Educação e da Cultura, tal como ocorreu, do início à abolição, até ao final do Império com as sequelas que hoje discutimos por ser obra com mão humana.
Perguntemos a quem serviu, quem ganhou, quem foi usado, quem traiu quem foi traído. Ficaremos todos mais ricos culturalmente com esse conhecimento.
Parece-me incrível que Historiadores e intelectuais da praça corram a assinar petições em defesa de brasões feitos de flores. Mas por favor expliquem na petição que não aceitam deportações de cidadãos Portugueses porque todos fazemos parte da História- colonos e colonizados, escravocratas e escravos.
Que todos então fiquem a saber que as fortunas por detrás daqueles brasões vieram de mão de obra escrava, nunca ressarcida.
Nas minhas buscas no Reino Unido aprendi que todas as famílias(e foram muitas), empresas e entidades que beneficiaram com o tráfico e o trabalho de escravos nas suas plantações e negócios, receberam muito dinheiro como forma de ressarcimento quando foi decretada a abolição da escravatura.
Reparem bem – os escravocratas receberam. Não os escravos.
Estes foram…abandonados onde estavam, sem nada. Sem a sua cultura, sem terra, sem direitos, sem cidadania. Nada.
Como aconteceu no final da Guerra Civil Norte-Americana com os estados escravocratas do Sul.
Este é mais um ponto para as sequelas sentidas hoje pelo racismo como estrutura de várias sociedades.
A mutilação cultural – ou o cancelamento de culturas (as africanas), começou a ser feita quando teve início o tráfico humano, para enriquecer as corôas Europeias e as bolsas de meia-dúzia. Agora não se mutila nem cancela a cultura “branca”. Tenta-se fazer justiça com o passado, expondo erros.
O colonialismo tirou partido da escravatura, usou o racismo como teoria de segregação e a evangelização como domínio cultural.
No exemplo Português veio-me à memória o Marquês de Pombal quando expulsou judeus(os meus antepassados fugiram na altura para as ilhas de Cabo-Verde).
Ou quando mandou reconstruir Lisboa pós terramoto, com o dinheiro vindo da extracção de diamantes feita por escravos no Brasil.
O valente Marquês tem ainda uma história particular no que diz respeito à institucionalização da “pureza do sangue” e, em caso de não comprovada pureza a sua consequente discriminação, como forma de mutilar a cultura de um ou mais grupos, vindo mais tarde a História a repetir.
Juntando naturalmente a Igreja Católica de Roma que há dois mil anos elimina e mutila crenças, autentica e impõe as suas doutrinas, histórias e cultura sobre todos os grupos. Gente inspiradora.
Por tudo isto compreende-se a necessidade de fugir à verdade.
A História Portuguesa como a das demais “gloriosas potências” Europeias está recheada de exemplos de feitos extraordinários e de aberrações humanas como aquelas que se contam no Museu da Escravatura em Lagos, por ironia de um destino culturalmente sofisticado, situado na Praça do culto Infante Dom Henrique.
A liberdade e o Desenvolvimento Humano deveriam ser as únicas cenouras na frente do nariz da Humanidade. Por falta de respeito para com a cultura, ainda não chegámos a esse patamar. Mas sobretudo por falta de interrogações.
Porque não colocar o caldeirão do cozido na mesa para que este seja dissecado?
Quem beneficia que se cale ou neguem Culturas e Histórias completas?
Neste país pequeno onde uma generosa parte da sua população continua a viver em condições de pobreza e iliteracia, onde só uma minoria aprendeu a navegar o barco negreiro – porque os restantes são escravos, num país que tem compulsiva, cíclica e sistematicamente milhares de emigrantes por razões de pura sobrevivência, num país que deu grandes descobertas ao mundo, num país que levava no ventre das naus da sua Companhia das Índias centenas de desgraçados miseráveis e analfabetos para colonizar os portos que achava, neste país que fez uma guerra colonial absurda, traiu os seus soldados deixando-os a sós com stress pós traumático, que usou os soldados das terras colonizadas dividindo-os, traindo-os, segregando e estruturando a sua política através de uma rede de interesses políticos, económicos e sociais cuja matriz está no pecado original – o racismo que manifestava sem ambiguídade: há uns seres superiores a outros.
De que têm medo? Do poder da cultura? Do poder do conhecimento? Do poder da verdade?
Esse mesmo país que recebeu com muito pouca vontade centenas de milhares de refugiados das ex-colónias, Portugueses que fugiam da terra deles, que era dos outros, e, descendentes naturais das suas terras que juntos neste país se vieram a tornar os motores essenciais de desenvolvimento do país capital do império.
Nesta ainda hoje atarefada democracia em se fazer parir, indivíduos não têm culpa do passado aberrante e humilhante dos beneficiários destes sistemas e regimes, mas têm obrigação de possuir esse conhecimento como colectivo. Dissecar as carnes e o cerne do cozido.
O império até à sua queda da cadeira, foi o pai rico que deixou os filhos passar fome, enviou os enteados para morrer e ainda assim a filharada sofre de Síndroma de Estocolmo e Sebastianismo.
Façamos como se estivéssemos a investigar uma cena de um crime e perguntemo-nos: “quem beneficiou?
Com todo este cozido de vários séculos, quem ainda hoje beneficia com a divisão e a manipulação de histórias, com o não conhecimento de todos os lados que compõe a História? Quem continua a cancelar o direito da História ser contada nas várias narrativas?
A quem interessa cancelar o conhecimento da cultura como arma de construção da alma da Humanidade?
Injecte-se toda a perícia investigadora na cena do crime.
O móbil do crime, os descendentes dos perpetradores, os ideólogos do jogo, andam por aí. Pelos vistos nunca morrem. Ficam na clandestinidade do ovo, destilando insidiosamente o veneno do ódio e do racismo, do nacionalismo, do fascismo, minando os caminhos do desenvolvimento humano.
Como o fascismo, matando todas as ideias. Matando a cultura.
Amílcar Cabral que foi um homem da Cultura tanto quanto da luta armada pela independência contra o Estado colonizador e ditador, é um dos heróis da Humanidade(meu em particular), ouviu dizer ontem como eu ouvi hoje, que não houve ditadura nem racismo nem colonialismo. Dizem que não passa de um farsa de quem quer cancelar a grandiosa História Portuguesa. Tão grandiosa quanto bárbara.
Digo eu que não passa de uma manobra de distracção dos saudosistas beneficiários dos crimes.
Se Amílcar Cabral fosse vivo de novo sacaria da sua arma e dispararia cultura. Eu continuarei a usar os seus ensinamentos.
Anabela Ferreira
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