Barítono Coelho entrou lentamente no restaurante, “Toca do Minhoto”, em Massamá. Tinha dispensado o carro oficial e vindo de táxi. Estava de óculos escuros, chapéu à John Wayne enterrado até às orelhas e gabardina preta. Olhou em redor e vislumbrou de imediato Paulo Tropas, já sentado na mesa mais afastada da porta entrada, no lado direito da sala. Tropas sorvia já uma caipirinha, a palhinha ao canto da boca, enquanto percorria a lista com olho de entendido. Estava também ele de óculos escuros, boné de lavrador e samarra alentejana. Barítono acercou-se, puxou da cadeira, sentou-se com leveza e foi dizendo:
– Boas. Tu queres-me explicar, que raio de ideia é que te deu para nos termos que encontrar aqui com tanta urgência?! Não sabes que amanhã tenho três inaugurações e ainda nem li os discursos?! Vou ter que fazer serão a encornar aquilo tudo, e a ver se a rapaziada apanhou o tom certo e não me põe a dizer patetices! Tropas, pousou a palhinha no copo, com um leve sorriso enigmático, e foi dizendo:
– Vá lá, urgência é urgência. Urgência e comemoração, disse pausadamente. E bem te disse, é pegar ou largar. Até agora cumpriste. Vens bem disfarçado: a gabardina e o chapéu ficam-te a matar. Barítono não estava nada satisfeito, nem com o sítio, nem com o disfarce, e muito menos com a resposta de Tropas. E foi retorquindo:
– Olha, para já também quero uma caipirinha. Acenou ao empregado, que se aproximou e registou o pedido, e continuou: – Seja lá o que for que tu queiras, porque viemos para aqui a fazer figura de espiões saloios? As cadeiras são duras, eu não gosto de fumo, a sala é minúscula. Já não temos idade para brincadeiras destas.
Tropas, sorriu de novo e disse: – Mas que querias? Que fossemos para o Gambrinus? Nem pensar. Nós não somos o Socas. Ele é que só andava em restaurantes de luxo a ostentar a fortuna. Nós temos outro nível, Barítono. Nós somos pobres mas honrados, não é? O Socas é que era rico e está na lama da desonra.
Tropas deliciava-se com a sua própria argúcia e com o ar embasbacado de Barítono mas foi continuando: – Portanto, o sítio está explicado e não é preciso fazer-te um desenho. Quanto à ementa do jantar, já escolhi, deve estar a sair, é polvo à lagareiro com batata a murro, especialidade da casa. Quanto ao vinho é uma picheira do tinto carrascão da casa. Quanto à conta pago eu, em notas, não pedimos fatura, até porque a Luisinha Queque não vai saber que cá estivemos, evidentemente. Quanto ao assunto, é pegar ou largar.
Barítono estava quase a saltar da cadeira. Era um topete e uma impertinência aquele arrazoado de Tropas. Levou a mão ao chapéu, para o tirar, porque estava a ficar afogueado, tanta era a irritação.
Tropas, levantou a mão e foi dizendo brusco: – Eu aconselhava-te a deixar ficar o chapéu no sítio. Parece que queres estragar tudo. Ainda não viste que não podemos ser reconhecidos?! Queres que o Correio Daninho esteja aqui em cinco minutos e à meia-noite esteja tudo na internet como aconteceu com o Socas, com fotografias e tudo?!
Barítono recuou no gesto e o chapéu afundou-se de novo até às orelhas. E lá foi debitando:
– Até aí ainda vou. Agora, qual a razão para ter que ir para o polvo à lagareiro? Eu preferia carne, naco na pedra, por exemplo. E que raio é essa coisa do pegar ou largar? Queres explicar?
O empregado acercou-se. Pousou a travessa, o molusco bem nutrido ao de cima, as batatas a saltar cheirosas. À parte, uma travessa mais pequena com grelos de aspecto tenro. Desejou bom apetite aos estranhos clientes, que falavam por murmúrios e nunca tinha visto por aquelas bandas, apesar de lhe parecer que os conhecia de qualquer lado. Cogitou que devia ser impressão, e lá foi desandando. Não pensou mais no assunto, até porque já o estavam a chamar a outra mesa.
As perguntas de Barítono tinham ficado no ar, e Tropas esperou que o empregado se afastasse para poder responder:
– Bem, é polvo porque como fui eu que convidei e sei que tu não és esquisito, sou eu que escolho. E só pode ser polvo, por uma razão simples: não é carne nem é peixe. É molusco. E o molusco tanto anda à tona da água como nas profundezas do oceano. Isto não te diz nada? Qual é a coisa qual é ela, que vai água acima e água abaixo, e não é carne nem é peixe?
Barítono estava cada vez mais irritado. Agora até tinha que andar a brincar às adivinhas. Não estava a perceber nada daquilo, apesar de saber que Tropas nunca dava ponto sem nó. Por isso, decidiu assumir uma postura humilde, de ignorante, e retorquir: – Não, não estou a ver mesmo o que seja.
– Pois bem, é simples, e é pena que não tenhas visto logo. É o submarino! Rematou Tropas triunfante e ufano. – Estava-se mesmo a ver. Só tu é que não eras capaz de ver esta.
Barítono ainda não estava a perceber o que é que o submarino tinha a ver com a urgência de tão secreto encontro, pelo que, acima dos óculos escuros, as sobrancelhas franzidas desenhavam um grande ponto de interrogação. Tropas continuou:
– Meu caro. O processo dos submarinos foi hoje arquivado. Está tudo prescrito. Aquelas atoardas todas que andavam por aí a pairar sobre mim estão enterradas e paz à sua alma. Eu diria, como no jogo da batalha naval: submarino ao fundo! – Já ninguém me chateia. Havia pois, toda a urgência em comemorar.
Barítono começava a entender, mas foi dizendo: – Até aí eu vou. Mas porque haverias que ter que comemorar isso comigo hoje, nesta figura, neste sítio e com esta pressa toda?! E que história é essa do pegar ou largar?
– Meu caro, é simples. Esta também é fácil. É a coligação. A coligação é para pegar ou largar. E é para responder até eu pagar a conta. Nem mais um segundo.
Barítono ia saltando da cadeira e ia-se engasgando. O garfo escorregou-lhe da mão e caiu-lhe no regaço sujando a gabardina. Lá o apanhou, e pôs de lado. Chamou o empregado – que lhe trouxe outro lestamente -, e foi dizendo: – Mas tem que ser já? Não vês que tenho que reunir o partido?!
– Tem que ser já. O partido é contigo: és o chefe, resolve. Andaste a dizer que só me querias para a maioria absoluta, que a seu tempo se veria, e eu caladinho, sem nada poder dizer por ter o submarino à perna. Meu caro, o submarino foi ao fundo; agora é pegar ou largar.
Barítono Coelho, sentiu primeiro calores e depois calafrios. Quis tirar de novo o chapéu mas recuou a tempo quando Tropas lhe levantou os olhos por debaixo dos óculos escuros. Um silêncio pesado caiu sobre eles. Já tinham acabado o repasto. Encheu o copo com o resto do tinto que ainda havia e bebeu o copo todo num só trago. O empregado apresentou-se com a dolorosa, e ficou expectante à espera de ver qual deles se chegava à frente, e perguntou simpático se queriam factura. Tropas disse logo que não e foi abrindo a samarra para procurar a carteira.
Mas já Barítono se tinha antecipado e colocado três notas de 20 aéreos na mão do empregado que ficou estupefacto quando ouviu Barítono a dizer-lhe convicto e afável:
– Está tudo certo, pode ficar com o troco. Deve ter tido cortes no ordenado, e nas horas extras, feitas por esses malandros do Governo. É para ter um Natal melhor. Estava tudo excelente, desde o polvo até às caipirinhas e aos grelos. Você merece, havemos de vir mais vezes. Agora aqui para o meu amigo, e com testemunhas, quero só dizer o seguinte: – Em relação ao pegar ou largar que ele me colocou, só tenho a dizer-lhe que pego. Aliás, como se viu, já peguei e também já paguei, porque a conta ficou comigo.
Tropas exibia um sorriso beatífico. O empregado desfez-se em vénias e agradecimentos, sem perceber nada da mensagem final. Mas, que raio, era lá com eles. Já não se lembrava de gorjetas tão chorudas desde que a crise tinha começado por volta de 2010.
E mais uma vez teve a impressão que já tinha visto aqueles dois em qualquer lado.
(*) Nota da Redacção: Estátua de Sal é pseudónimo dum professor universitário devidamente reconhecido pelo Noticias Online.
estou estupefacta e já nada que venha do senhor Estátua de Sal me surpreende ,pois bem eu não sou universitária sou apenas uma pessoa comum , que gosta de ler ,não sou de todo ignorante ,gostava muito de conversar com o Álvaro Cunhal que por sinal era uma pessoa incrivelmente humilde,sempre que vinha a Viana do Castelo era na casa do meu tio que ficava.Não quer dizer com isto que eu seja comunista,sou simpatizante ou partidária de partido nenhum ,os atributos dos partidos deixo a vosso critério .quanto há Crónica do Estátua de Sal está perfeito os meus parabéns .