Venham comigo para dentro de uma história, no meu contínuo movimento de desconstruir usandoalguma arte.
A invisibilidade do legado cultural africano e a sua Restauração, ou os equívocos da Educação Cultural das Civilizações Europeias?
Durante séculos tive a minha cultura cancelada e a imposição de outra cultura que dizia ser a única válida e a ser considerada. Não é ficção, é real.
Durante a chamada Colonização Europeia a minha arte foi usurpada, roubada, levada das suas casas (chamo-lhes territórios porque só depois da I Guerra Mundial se dividiu África a regra e esquadro e colocou bandeiras). Não é ficção,é real.
A razão? Disseram-me ser a minha cultura inferior, bárbara, brutal, animalesca.
A minha cultura é rica, poderosa, Imperial, Real,está representada nos melhores museus do Mundo, na música, na dança, nas Letras, nas Humanidades, nas Universidades, na Ciência, no Desporto.
Eu? Fui obrigada a aprender a desprezá-la, a mal-dizer o que dela me chegava, a sacudi-la com ódio e repulsa, como sendo a mão do diabo. Obrigada a aceitar sem pensar a que me era dada, para me reeducar.
Outras mulheres e homens a guardaram por mim, a honraram, a amaram, a praticaram. A salvaram.
Agora está mais do que nunca a ser exposta. A ser levada a sério. A verdade do passado, escondido e negado por séculos, a vir ao de cima. A ser valorizada e reconhecida. A ter lugar de fala.
Obrigatório que assim seja!
Tive o meu género anulado. A razão?
Disseram-se que ser mulher preta é ser bárbara, animalesca, pagã, ordinária, gentia, com cabelo de bicho, sem serventia para mais que não fosse fabricar descendência escrava para o trabalho que fosse necessário, ser violada quando apetecesse ao dono, homem branco, ser violentada sob todas as formas e que a todas elas me deveria submeter dando a outra face, a outra mão, oferecendo sempre a minha aceitação.
Cortaram-me estrutural e sistematicamente o acesso à educação, à justiça, aos mais elementares direitos humanos. Até fizeram leis para que ficasse registado a nossa não existência como sub-humanas. Sabes a razão?
Por ser preta. Isso mesmo, de uma cor diferente. Apenas.
Chamaram-nos bruxas, queimaram-nos, amordaçaram-nos, violentaram-nos, cortaram-nos estrutural e sistematicamente o acesso à educação, à justiça, aos mais elementares direitos humanos. Até fizeram leis para que ficasse registado a nossa não existência como sub- humanas. Sabes a razão?
Por sermos mulheres. Todas.
O ventre – berço da Humanidade.
Uma qualquer espécie de paz e fim das divisões só virão com a filosofia imbuída no conceito Sawubona. Este vem de algumas tribos africanas.
Quando alguém faz algo errado é levado para o centro do grupo e em lugar dos demais expressarem a sua emoção com raiva, ódio e desprezo pela pessoa trabalham a emoção até todos conseguirem aceitar a pessoa e a pessoa saber que nesse processo também se liberta de um peso.
Quando o processo de compreensão, aceitação e valorização está completo, quem está no centro agradece com “Shikoba” – “eu existo para ti”.
Negar que factos são factos, que existiram e existem, têm impacto ainda nos nossos dias e continuar a escondê-los nada faz de bem à aceitação, compreensão e valorização.
Quem está no centro da aldeia é o opressor, o colonizador, o homem branco. Como colectivo, não individualmente. Os casos individuais vão parar aos tribunais que farão Sawubona de outra maneira.
A mulher africana ainda não foi objecto de um processo sério para “ver a sua importância e receber a valorização devida”- (sawubona). Ainda não pode dizer “ shikoba”.
Nota Histórica africana
Desmond Tutu e Nelson Mandela tentaram fazer o processo “Sawubona” com a Reconciliação Nacional relativamente ao apartheid. Vivia em Moçambique e fiquei fascinada com o processo. Acompanhei com imensa dor. Percebo até algumas nuances do ódio que ainda está presente. O processo não foi interiorizado nem valorizado. Ainda.
Aconselho a quem desconhece o processo a ir entendê-lo.
Houve outras escravaturas e cancelamentos vindos de outros povos? Pois houve e provavelmente haverá mais.
Isso invalida que se fale desta, das responsabilidades dos que a tornaram lei e hoje a negam bem como aos seus efeitos presentes agora? Não será melhor descolonizar o assunto? Fazer a catarse?
O processo Português, por ter tido responsabilidades e ser o protagonista desta história em vários séculos de cancelamento de culturas e género, tem de obrigatoriamente fazer este processo de descolonização e valorização nunca antes feito.
Sawubona – Assumir, clarificar, ver, dar importância, valorizar e respeitar, dizer “ eu vejo-te, eu assumo, eu dou-te importância, tu és importante para mim”, para que a mulher africana, a cultura africana e a mulher branca possam dizer : “ shikoba”.
Anabela Ferreira
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