Um menino de uma tribo.
Ngozi entre muitos irmãos das várias mulheres do seu pai escolheu Mara, filha da terceira mulher deste, para com ela dividir o seu pequeno mundo. Dois irmãos-criança um elo mágico.
No seu mundo, Ngozi tinha construído um círculo à sua volta. Lá dentro apenas entrava Mara, a sua irmã. E alguns amigos imaginários.
Ngozi e os amigos imaginários pareciam-se uns com os outros. Nada os diferenciava. Pensavam e falavam da mesma maneira. Tinha tomado a decisão de não se confundir. Via-se reflectido naqueles seus amigos porque todos eram iguais. Desta forma estava protegido entre eles, os seus iguais.
Aproximava o dia para a prova de valentia e virilidade na sua tribo, e, a cada dia que passava construía um muro mais alto. Não queria, não queria…
«Ngozi, ( dizia-lhe um dos seus amigos), ao elevares o teu muro, cresces mais depressa. Deixa-te ficar apenas no teu círculo. Estás protegido por nós.»
Ngozi isolava-se e cada dia estava mais taciturno. Mara era a única alegria da sua vida. Era uma menina radiosa, vibrante, cheia de vida, linda como o primeiro raio de sol de olhos amêndoa ouro vestida de veludo ébano, que o despertava todas as manhãs, na imensa savana tão sua familiar.
-«Ngozi anda, vamos fugir!» Ngozi assustou-se. Fugir?
Aquela menina sua irmã era atrevida! não era daquela sua tribo.Como podia pensar em fugir? «estás louca Mara? Então e as minhas obrigações? E as tuas?»
Ria-se e fazia o mesmo som da água da cascata a cair nas pedra, um som cristal, Mara agarrou a mão do seu irmãozinho e puxou-o: «para já vamos fugir da aldeia. Os embondeiros estão cheios de frutos. Anda, vamos colher uns quantos para a viagem, deles fazemos sumo que nos alimentará.»
Foram colhendo e comendo e já de barriga cheia, deitados debaixo da árvore mais larga que conheciam, sagrada e bela, falavam das respectivas sortes…
«Mara a ti cabe-te ser escolhida e comprada por algum homem da tribo e viver debaixo das suas regras e obrigações, que inclui seres tratada como um pilão de amassar o milho. Uma vaca é tratada com maior respeito», dizia infeliz Ngozi «Mas eu vou-te proteger sempre e se algum homem te tentar fazer mal, eu mato-o com a minha lança»!
Mara ria-se contente« meu irmãozinho, tu? Não és capaz de matar ninguém, mas sei que me queres bem e que me vais sempre proteger. Prepara-te antes para a tua prova! Tu sim tens um leão maior do que o meu para enfrentar e vencer. Estou preocupada por ti» afirmou segura fechando o rosto com preocupação. «Ao contrário do que te dizem os teus amigos, esses imaginários, tu devias sair, brincar com outros rapazes e preparar-te para a vida dura que vais ter : caçar, cruzar fronteiras, cuidar de várias mulheres… És tão frágil Ngozi, tão fechado.»
« Primeiro vais ter de matar um leão, com a tua lança, para provares a tua virilidade e isso parece-me tão improvável meu irmão. Que vai ser de ti?»
«Se algum dia pudesse, fugimos», pensou Ngozi sem nada dizer. Tinha que pensar num plano…
Calaram-se e ficaram a pensar no destino que lhes cabia em sorte.
Ngozi adormeceu. Naquele momento não tinha medo, estava ali com Mara, fora dos limites da aldeia e nada de mal lhes podia acontecer. Os pais estavam nas suas rotinas diárias e eles pouco contavam para a vida da tribo.
Mara pegou na flecha do irmão e aventurou-se. Queria tanto quanto o irmão libertar-se daquele mundo de regras, obediências e obrigações. Por Ngozi e por si tinha de pensar num plano.
Caminhava sem olhar por onde ia. De repente estacou com um barulho quase imperceptível a ouvidos de quem não convivesse com os segredos da savana.
Voltou-se em direcção ao barulho, que vinha do sítio onde tinha deixado Ngozi adormecido. Procurando ser silenciosa, o que bem sabia, com os seus 12 anos de treino nas brincadeiras, aproximou-se e o que viu gelou-a.
Um leão, a poucos metros, olhava para Ngozi. Parado. Preparando o salto.
Em poucos segundos, tantos quanto demora um pensamento a transformar-se em acção de sobrevivência, Mara agarrou a flecha e colocou-se em posição de disparar.
Ngozi tinha-lhe ensinado a arte para a qual se preparava há 14 anos. A sua prova de virilidade, de coragem e de força. Não podia dar tempo a que o leão se apercebesse dela.
Se hesitasse Ngozi morria e ela também. Àquela distância não costumava falhar. Nas árvores. Não podia falhar agora, pensou num último segundo.
Como um verdadeiro guerreiro, Mara puxou a flecha e disparou.
O leão levantou as patas dianteiras e saltou. Com a surpresa do embate da flecha no coração caiu ao lado de Ngozi.
Mara a tremer de medo, correu a puxar o seu irmãozinho que estava acordado a chorar, com as mãos a cobrirem-lhe o rosto:
-Ngozi estás bem?
-Sim Mara disse Ngozi por entre os soluços, que aconteceu?
Mara contou-lhe e abraçaram-se a chorar.
-Anda vamos voltar para a aldeia, contar que mataste um leão. Está aqui a prova. Vamos antes que o leão ferido se atire sobre nós…
-Mara minha irmãzinha, não vês que lhe acertaste no coração? Está morto, mas foste tu que o mataste, não eu.
-Mas a aldeia não sabe, só nós. E sabemos que tu não querias que isto acontecesse, mas tinhas de passar por esta prova. Anda, corre! Não vês que esta é a prova de que podemos fazer o que quisermos?
Correram de mãos dadas. De vez em quando olhavam para trás. O leão não tinha fugido. Mara acertara como só os grandes guerreiros, corajosos e viris conseguem. E salvara Ngozi seu irmão.
Nessa noite a festa na aldeia foi rija. Celebrava-se a bravura de Ngozi com cantos, danças, comida e muita bebida. Ninguém estava mais contente que Mara.
Ngozi pouco participava, mas como lhe era reconhecido um carácter fechado, ninguém prestou atenção nem deu importância.
Ninguém o viu desaparecer da festa horas depois desta ter começado.
Ninguém o viu ir buscar Mara, com um pequeno saco, a flecha e alguma comida (que tinha roubado da festa), nem ninguém os viu partir da aldeia.
Prometera a Mara que a iria proteger da vida que lhe tinha cabido em sorte. Ela tinha-o protegido com a sua própria vida salvando-o da morte.
Cabia a Ngozi cumprir a sua parte da promessa. Fugirem em busca da vida que queriam e não a que lhes era imposta.
Nessa madrugada, antes do sol de novo lhes desejar um bom dia, desapareciam por caminhos empoeirados, rumo a outros mundos.
Nessa noite Ngozi quebrava o seu muro e abria o círculo. Outros amigos haveriam de entrar. Matara o seu leão.
A vida que escolhiam era a sua casa. A família, o mundo que conheciam era a herança das suas vidas.
Mas não as suas fronteiras.
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