Após o frémito da mais que justa indignação que suscitou a pública divulgação e discussão de diversos e repetidos casos de brutal retirada de filhos aos respectivos pais biológicos (e até também a perturbada reacção corporativa de alguns sectores postos em causa por essa mesma divulgação e discussão), creio que se impõe agora que se retirem algumas conclusões e se definam perspectivas para o futuro.
Praticaram-se, nesta matéria de retirada de filhos aos seus progenitores, autênticas barbaridades e o respectivo número – e já bastava que houvesse um só!… – é mais do que suficiente para que se possa eliminar a teoria de que se estaria apenas perante meras situações menos boas, casos isolados ou erros esporádicos e excepcionais. Mesmo sob uma perspectiva puramente quantitativa, estes casos não são poucos, nem muito menos meros “acidentes de percurso”!
Por outro lado, do ponto de vista qualitativo, aquilo que os casos conhecidos (e desde logo o da retirada de 7 filhos a uma mãe cabo-verdiana e que deu origem à vergonhosa condenação do Estado Português pelo TEDH – Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, através do Acórdão de 16/2/16 que pode ser lido aqui) claramente revelam é o predomínio, nas CPCJ – Comissões de Protecção de Crianças e Jovens, na Segurança Social, na Santa Casa da Misericórdia, nos magistrados do Ministério Público e nos juízes dos Tribunais de Família e Menores, de concepções e preconceitos ideológicos que tendem a identificar dificuldades financeiras ou concepções culturais ou religiosas distintas das da maioria, com factores pretensamente demonstrativos de uma alegada incapacidade para criar os filhos.
As vítimas deste tipo de situações são, numa clara demonstração da natureza de classe da Justiça, as pessoas mais pobres e vulneráveis que não conhecem bem os seus direitos e que não têm capacidade, desde logo financeira, para se defenderam adequadamente dos arbítrios e ilegalidades. As circunstâncias em que é muitas vezes obtida a assinatura dos pais nos acordos das ditas CPCJ (como a da ameaça recorrente de que, se não assinarem, o caso vai para Tribunal e em 48 horas perdem os filhos), a não audição (real e efectiva), dos próprios progenitores, a não realização de outras diligências de prova que não sejam as apresentadas pelos técnicos ou pelo Ministério Público, a não obrigatoriedade de presença de Advogado senão na parte final de todo o processo, põem a nu a forma como, com base numa simples denúncia anónima ou até – suprema das armadilhas – quando os pais pobres se dirigem à Segurança Social em busca de auxílio para as suas dificuldades, esses pais começam por ser “sinalizados” pela mesma Segurança Social e logo depois toda a máquina do Estado se põe em marcha para lhes retirar os filhos, nem que seja construindo a posteriori as respectivas “justificações”. Por exemplo, colocando as crianças em locais geograficamente distantes ou com horários de visitas impossíveis de cumprir para quem trabalha ou até exigindo pagamentos para essas visitas e depois invocando a (deste modo propositadamente criada) não vinda às mesmas para assim “justificar” a retirada das crianças e até a sua entrega para adopção.
De forma tão chocante quanto lamentável, o certo é que, mesmo após denúncias e situações muito graves, após inúmeras condenações (pelo menos 9!) do Estado Português no Tribunal Europeu dos Direitos do Homem por violação do artº 8º da Convenção Europeia, após vários relatórios e recomendações do Comité dos Direitos da Criança da ONU, após inclusive várias alterações à lei (em 2003 e em 2015), após em particular o já diversas vezes citado Acórdão de 16/2/16 do TEDH, em matéria de respeito pelos direitos das crianças e das suas famílias, está tudo no essencial na mesma, ou seja, terrivelmente mal!
Mais! Actualmente reina mesmo um estarrecedor silêncio por parte dos membros e dos responsáveis dos quatro órgãos de soberania. Com efeito, nem o Governo (cujo Ministro do Trabalho tutela a Segurança Social), nem o Parlamento (que podia e devia já ter debatido e começado a fazer inquéritos a sério sobre esta situação), nem o Presidente da República (que sempre se pronuncia acerca de tudo, mas que sobre esta matéria ainda não disse uma palavra), nem o Poder Judicial (com a Direcção da Escola de Formação de Juízes, o CEJ, a reagir muito indignado, mas apenas às críticas que lhe foram dirigidas, o CSM – Conselho Superior da Magistratura calado que nem um rato, nada dizendo por onde páram e como foram por ele avaliados os juízes responsáveis, nomeadamente, pelas 4 decisões, da 1ª instância ao Supremo Tribunal de Justiça, fulminados pelo referido Acórdão do Tribunal Europeu, e com os juízes em geral a ignorarem a realidade, e, mais, a darem guarida a teorias anti-científicas como as da “alienação parental”[1]). Mas também estão caladas a Procuradoria-Geral da República, a Provedoria de Justiça e a própria Ordem dos Advogados cuja Comissão de Direitos Humanos parece não existir e cujo bastonário a única posição que adoptou foi a de… ir manifestar o seu apoio à Direcção do CEJ – Centro de Estudos Judiciários.
Em suma, os representantes (ou os defensores) dos responsáveis, aos vários níveis, pelas barbaridades cometidas, não falam e muito menos aceitam debater, em pé de igualdade, as questões aqui em causa…
E, como muito bem se afirma na “opinião concordante” do juiz Presidente András Sajó no já referido acórdão do TEDH, “a história dos maus tratos para com as crianças e a discriminação é uma história de serviços públicos e privados fornecidos por ‘salvadores’.”
Tudo isto impõe, desde logo, a necessidade de se investigar e apurar, a sério e a fundo, todo o sistema de retirada de crianças aos seus progenitores e da sua entrega para adopções, desde os casos, já publicamente relatados, do lar ilegal da IURD até à actualidade, e isto com duas finalidades essenciais:
– apurar integralmente a verdade dos factos – que não prescreve! – impedindo assim que ela seja abafada, designadamente sob o “argumento” de que se trataria de meras e esporádicas situações menos boas;
– permitir definir formas e meios de combate, consequente e eficaz, a este escandaloso estado de coisas.
Mas é também desde logo óbvio que, quanto a apurar o que se tem passado, não podem ser as próprias instituições envolvidas (e responsáveis quer pelos seus silêncios e inacções, quer pelas respectivas acções e erros) a investigarem-se a si próprias.
Não podem ser as CPCJ, o ISS – Instituto da Segurança Social, o Ministério do Trabalho e da Segurança Social que a tutela, a Santa Casa da Misericórdia, o Ministério Público e o seu Conselho Superior do Ministério Público, os juízes e o seu Conselho Superior da Magistratura, bem como o Centro de Estudos Judiciários, a analisarem-se e a investigarem-se a si mesmos!
Deve ser (tem de ser) uma comissão cívica, não uma comissão parlamentar de inquérito com todas as limitações que, como sabemos, as caracterizam, mas uma Comissão Cívica Independente presidida, por exemplo, pela Provedora de Justiça e com representantes das vítimas deste tipo de abusos e das suas organizações, estruturas e entidades com competências na área da defesa dos Direitos dos Cidadãos e ainda com cidadãos de reconhecida idoneidade técnica.
Não é preciso que sejam doutores, magistrados ou “especialistas”. É preciso é que sejam simplesmente cidadãos sérios, descomprometidos e empenhados.
Finalmente, e como concretas medidas, legislativas e não só, a adoptar com urgência, eu deixaria desde já as seguintes sugestões:
– obrigatoriedade de constituição de Advogado em todas as fases dos processos de promoção a protecção de menores e sua não exclusão de qualquer diligência efectuada no processo;
– obrigatoriedade do registo, pelo menos áudio, de todas as reuniões ou contactos das CPCJ, ECJ, Segurança Social, IPSS, Santa Casa da Misericórdia;
– obrigatoriedade da publicação e do registo centrais (naturalmente com a salvaguarda da identidade dos intervenientes) de todas as decisões judiciais proferidas neste tipo de processos;
– garantia de controle e de recurso jurisdicionais de todas as decisões administrativas (desde as das CPCJ às das IPSS) susceptíveis de afectarem direitos, liberdades e garantias;
– debate público sobre o sistema e paradigma da formação dos juristas (em particular no Centro de Estudos Judiciários e na Ordem dos Advogados) e dos técnicos de acção social;
– obrigatoriedade da elaboração e pública discussão de relatórios anuais sobre a matéria dos processos de promoção e protecção de jovens por parte da Segurança Social, dos Conselhos Superiores da Magistratura e do Ministério Público, e da Provedoria de Justiça.
Porque a questão que permanece é, afinal, sempre a mesma: Quem protege estas mães e estes pais? E as crianças, meus senhores, e as crianças?
António Garcia Pereira
[1] Teorias baseadas ou inspiradas nas teses, já cientificamente desmentidas, do psiquiatra norte-americano Richard Garner e com as quais se tem legitimado a imposição às vítimas de violência doméstica, quer da residência partilhada dos filhos com os agressores, quer até da entrega a estes da guarda das crianças.
[…] aqui a parte I: E as crianças, meus Senhores, e as […]
Demasiado complexa esta matéria.
Não acredito no “negócio” generalizado, eventualmente alguns casos avaliados precipitadamente. Os técnicos que estão na linha da frente enfrentam muitas dificuldades e receios de que possam ser acusados de negligência. Jogam à “defesa”. É a salvaguarda da integridade física das crianças o critério mais ponderado, a maior parte das vezes no meio de grande confusão, conflito, pressão de “denúncias”, pseudo testemunhos, histeria, etc., etc.
Concordo, no entanto, com alguns aspectos aqui abordados ou analisados.
A meu ver, os técnicos ou recursos humanos são escassos, o trabalho em equipas pluridisciplinares cada vez mais raros. Colocam-se as crianças nas instituições como se fosse a resolução do problema ou o alívio das “consciências”…
Mas, quanto à adoção, em Portugal a burocracia é tal que a percentagem é pequena. Portanto, o perigo e apreensão não residem aí, o perigo é a “leviandade” e falta de perpetivas socio políticas a que profissionais estão sujeitos, entre outros. Na análise, aconselho que se coloquem também na pele dos que têm de dar respostas “a correr”.
Há muito que me apercebi de tudo o que o Drº Garcia Pereira refére e que me preocupo com estas matérias .
Existem pais biológicos , que nunca recuperam de tais traumas .
A qualidade dos profissionais , é muito importante .Uma parte significativa , entende que não se deve opor ás propostas da CPCJR .
A aquisição e conservação de provas , é da maior importância ….!!!
É importante a urgente intervenção no apuramento na idoneidade dos responsáveis e instituições que tomam estas decisões e qual o negócio que está desencadeando este tráfico de adoções.
Por uma justiça digna transparente e honesta.
Não a justiça corrupta.
Se forem investigar como deve ser vão por certo encontrar muitos rabos de palha de uns Srs. muito doutos em viver ás custas do Estado,governantes ,ex governantes, advogados, juízes e familiares de políticos, procuradores com ligações directas ás direcções das IPSSs de “acolhimento” . Uma teia que em tudo se assemelha a rede mafiosa que em nome das crianças vivem de subsídios do Estado. São os verdadeiros subsídio dependentes.