Após os últimos incêndios e o início da época das chuvas, arriscamo-nos a que a destruição causada em árvores, matas, pastos, casas, empresas, animais, e sobretudo a tragédia da morte de 9 pessoas, 4 das quais bombeiros, sejam esquecidas, como, infelizmente, sempre tem acontecido, e que tudo se volte a repetir.
Não podemos permitir que, abandonados à sua sorte os que tudo perderam e esbatida a memória das – comoventes e mais que justas, é certo – homenagens aos que para sempre partiram, não se faça uma análise séria e rigorosa de todas as reais causas e consequências destes incêndios, e não se proceda à definição e execução de uma actuação estratégica para os evitar e combater. Tal implica saber quem perde e quem ganha com estes fogos, o quê ou quem os inicia, e, acima de tudo, o que é preciso fazer para os evitar e, quando ocorrem, como os detectar precocemente e combatê-los da forma mais eficaz.
Quem perde e quem ganha com os incêndios florestais?
São, antes de mais, todos aqueles que perderam o que era seu, sejam campos, árvores, plantações, animais ou explorações, e que, se escapam com vida, ficam sem meios de subsistência. Para além das vidas humanas e do património, estes fogos têm ainda outro tipo de impactos: na agricultura, na agropecuária, na qualidade de vida das populações das zonas afectadas, no emprego e no turismo. Por exemplo, um estudo de 2021, publicado na revista Enviroment and Development Economics e com base em dados de 278 municípios no período de 2000 a 2016, prevê que, a manter-se a situação actual de áreas ardidas, dentro de escassos 5 anos os custos anuais para a economia portuguesa, só em termos de turismo, possam estar entre os 35 e os 62 milhões de euros. E a afectação, desde logo, pelas cinzas e resíduos dos incêndios, das nascentes e cursos de água e até a elevação da temperatura das águas do mar (como sucedeu, recentemente, na zona de Aveiro) são outras, e ainda mal estudadas, consequências negativas dos fogos. Também os apoios e subsídios governamentais para alguma recuperação das áreas afectadas, designadamente para a reflorestação, e ainda todos os custos dos meios empregues para combater os incêndios (água, combustível, desgaste e destruição de viaturas e de outros equipamentos, aluguer de aeronaves, remunerações extraordinárias, etc.) representam enormes custos de natureza pública, que importaria também contabilizar com exactidão.
Contudo, há quem, notoriamente, beneficie dos incêndios, e não vale a pena procurar iludir essa questão. Desde logo, e como veremos já adiante, as empresas de aluguer e manutenção de meios aéreos, em particular dos meios mais pesados (aviões e helicópteros). Depois, os que estando por detrás de projectos de grandes negócios (sejam eles imobiliários ou de exploração mineira, por exemplo), relativamente aos quais a existência de zonas florestais ou de áreas classificadas (como Reserva Agrícola ou Reserva Natural) representa um obstáculo. De seguida, todo um sector crescente de empresas que se apresentam como especializadas em “recuperação ambiental” ou “reflorestação”. Ganham igualmente os que pretendem substituir, à conta dessa “reflorestação”, as árvores existentes por espécies arbóreas mais rentáveis (em particular por crescerem mais depressa e serem facilmente utilizáveis, por exemplo, na produção industrial de pasta de papel). E, finalmente, ganham todos os que lucram com o excesso de madeiras, ardidas ou semi-ardidas, no mercado, em particular quando se sabe que, para além das árvores totalmente queimadas, há também inúmeras que não chegam a arder por completo e cujo tronco pode assim ser aproveitado, representando uma evidente diminuição de custos para as empresas que utilizam essa madeira no respectivo processo de produção (de celulosa e pasta de papel), ao que acresce a energia mais barata (e “renovável”) que, para essas empresas e outras, representa o uso de resíduos e da biomassa das árvores atingidas pelo fogo. Seria por isso muito importante que se investigassem a fundo todos estes aspectos, e se apurassem e quantificassem todos os reais benefícios obtidos à custa dos incêndios florestais.
Como surgem os fogos?
Embora seja popular (por razões facilmente compreensíveis) atribuí-los ao fogo posto ou serviço de “interesses que sobrevoam” (tal como afirmou o Primeiro-Ministro), a verdade é que quer os investigadores criminais (designadamente da GNR e da PJ), quer os relatórios do Instituto de Conservação da natureza e das Florestas (ICFN) não confirmam nem que a maioria dos incêndios resulte de mão humana intencional (mas apenas cerca de 23%), nem conseguiram obter, neste ano ou em anos anteriores, indícios fortes da ligação da prática desses crimes a interesses económicos mais claros ou mais obscuros. E, das duas, uma: ou tal explicação está, no essencial, errada, ou, o que é pior ainda, os investigadores não sabem ou não querem investigar e qualquer destes pontos não podem ficar, como se verifica em cerca de 47% das causas, em “suspenso”.
Seja como for, tendo os incêndios origem humana (seja ela intencional ou, como parece ter sucedido num dos mais violentos incêndios das últimas semanas, negligente, designadamente devido à realização de queimas ou fogueiras, ao lançamento de foguetes ou uso de ferramentas eléctricas) ou origem “natural” (altas temperaturas, focos de ignição como vidros, relâmpagos ou descargas eléctricas), é na falta da sua detecção precoce, na quantidade de “combustível” que encontram pela frente e na ausência de combate com meios pesados desde o início, que parece residir a causa essencial da velocidade e violência da sua propagação.
Pois é precisamente aqui que residem os factores essenciais que importaria conhecer bem e modificar adequadamente. Mas é precisamente isso que não tem sido feito…
Por um lado, temos hoje um país grandemente desertificado no seu interior, com uma agricultura e uma agro-pecuária devastadas e destruídas por uma política agrícola da UE ditada e colocada ao serviço dos interesses das grandes potências agrícolas (como a França e a Espanha), com campos, matas e arvoredos completamente votados ao abandono por a sua exploração não ser minimamente rentável para os respectivos proprietários e com um regime de propriedade assente em pequeníssimos talhões cuja titularidade e responsabilidade se perde pela profusão de inúmeros herdeiros dos primitivos titulares.
Por outro lado, aceitou-se, muito pela imposição de grandes interesses económicos ligados à celulose e à pasta de papel, um modelo de florestação e de reflorestação totalmente erróneo, assente na aceitação da destruição das espécies autóctones (como o sobreiro, o carvalho, o castanheiro, o loureiro ou a azinheira) por espécies exóticas ou invasoras (como o pinheiro e, sobretudo, o eucalipto), de crescimento muito mais rápido, mas também muito mais combustíveis.
Ora, pelas razões já acima indicadas, torna-se evidente que não é possível esperar que pequenos proprietários em economia de subsistência, ou mesmo já falidos, ou que herdeiros ausentes, por vezes até desconhecidos, assegurem a limpeza das matas e o corte de árvores e arbustos. E tudo se agrava a cada hora que passa sem que se imponham adequados planos de ordenamento do território, com o Estado e os municípios a assumirem a responsabilidade de impedir que os campos e florestas se convertam em matagais e eucaliptos gigantes à espera de serem rápida e facilmente consumidos pelas chamas, porventura para no seu lugar surgir um qualquer empreendimento imobiliário de luxo ou uma mina, de lítio, por exemplo…
Medidas a adoptar
Importa, pois, definir e adoptar medidas sérias e coerentes de combate aos fogos florestais e que passam por medidas de prevenção, detecção e combate, como as que aqui, modesta mas reflectidamente, proponho.
Medidas de prevenção:
- Limpeza de matas, corte de árvores, abertura de valas e aceiros (corte ou desbaste da vegetação para impedir a propagação dos fogos), que têm de ser objecto de um planeamento e execução urgentes, a nível municipal, e com fundos públicos.
- Não permissão de substituição de espécies autóctones destruídas ou mortas por outras espécies, designadamente espécies exóticas.
- Revisão da lista das espécies arbóreas não invasoras que se podem plantar em Portugal, publicada pelo INCF, com base em estudos científicos sobre a matéria.
Medidas de detecção precoce:
- Criação de um sistema eficaz de visionamento e patrulhamento, assente em torres de vigia, patrulhas a pé e de carro, drones, câmaras e sensores.
- Recriação de um corpo especial de guardas florestais e guarda-rios, dotados dos devidos equipamentos, e com a missão essencial da fiscalização e detecção, sem prejuízo da participação de respectivas operações das forças policiais, designadamente da GNR, e da requisição do apoio das Forças Armadas (em particular quanto a meios aéreos) para aquelas missões.
Meios de combate:
- Terrestres
- Apoio efectivo às corporações de bombeiros em meios técnicos, materiais e humanos, com um orçamento anual devidamente preparado e debatido com a Protecção Civil, o corpo especial da Guarda Florestal e, sobretudo, com as próprias corporações de bombeiros.
- Definição do caminho para uma profissionalização crescente dos corpos de bombeiros, pois que o combate, sobretudo a este tipo de fogos (bem como a grandes catástrofes), exige profissionais de elevada qualificação e com uma carreira aliciante (em termos de remunerações e de progressão).
- Aéreos
- Criação de um sistema público de combate a incêndios, assente em meios ligeiros híbridos (que, em certas épocas e consoante as necessidades, possam ser mudados para outras utilizações, designadamente de emergência) e meios pesados (como os Canadair, CL-415 ou DHC-515, ou os Kamov, com capacidade para descargas de 5 ou 6 mil litros de água cada), mas adquiridos e mantidos pelo Estado, por meio de contratações públicas com total transparência e com especial supervisão da Autoridade Nacional da Aviação Civil (ANAC), para garantir a proficiência técnica dos mesmos, e do Tribunal de Contas, para garantir a transparência e legalidade dos contratos).
É que não se podem mais repetir as negociatas obscuras em torno dos 6 Kamov adquiridos pelo Estado português em 2006, por 348 milhões de euros, os quais, chegados a Portugal em 2008, implicaram ao longo dos anos dezenas de milhões de euros em reparações e substituições, tendo começado, um a um, a deixar de operar a partir de 2012, sendo que, em 2018, estavam todos fora de serviço, ficando a apodrecer no aeródromo de Ponte de Sor, para serem depois oferecidos à Ucrânia. Tudo isto com o Governo, entretanto, a alugar outras aeronaves a empresas privadas à razão de 35 mil euros por hora e a outros países por 5 milhões ao ano!
Depois de tanta tragédia material, e sobretudo humana, constitui mesmo um incontornável imperativo cívico debatermos a sério as causas e consequências dos grandes incêndios florestais, e estabelecer-se um plano de acção estratégico, que deve, ou melhor, tem que ser, adoptado, a fim de evitar e combater eficazmente! Sob pena de tudo aquilo a que temos vindo a assistir se volte a repetir.
António Garcia Pereira
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