Segundo foi noticiado a 29/05, pela hora do almoço, na faixa lateral da Av. da República, perto da Av. de Berna, em Lisboa, um técnico da Cruz Vermelha de Setúbal veio buscar a mulher ao seu local de trabalho. Como não tivesse lugar para estacionar, terá parado em cima do passeio (bastante largo naquela zona), ligando os quatro piscas e mantendo-se no interior da viatura. Pouco tempo depois, surgiu um elemento da EMEL que lhe ordenou que retirasse dali a viatura e que o ia autuar, o que o condutor recusou, referindo que ia chamar a polícia, tendo-se iniciado uma discussão entre ambos. É então que surge um segundo funcionário da EMEL, que, com ar ameaçador, encosta a cabeça à testa do cidadão em causa e que, perante a frase deste de que a conversa não era com ele, lhe desfere um potente soco que o atirou ao chão. Chega depois ainda um terceiro funcionário, e os três atingem-no violenta e repetidamente, ao murro e ao pontapé, numa agressão que lhe partiu o nariz e três dentes e que terminou com a intervenção de um conjunto de pessoas que por ali passava e com a condução da vítima ao hospital.
Perante a divulgação do sucedido e a indignação que tal suscitou, o próprio Presidente da Câmara de Lisboa veio afirmar publicamente ser tal agressão “inaceitável”. E a própria EMEL, sempre tão parca a dar informações e a prestar contas públicas da sua actividade, logo se apressou a referir – pasme-se! – que “reconhece as dificuldades do exercício das funções dos seus agentes de fiscalização de trânsito, tantas vezes alvo de intoleráveis agressões físicas e psicológicas no exercício das suas funções, como foi hoje o caso” (sic!?). Referiu também que já instaurara um inquérito e suspendera, (apenas) de funções de contacto com o público, os funcionários envolvidos, com o evidente propósito de sossegar a sobressaltada opinião pública e conseguir que se não vá mais além na análise não apenas daquilo que realmente ali se passou, mas também de tudo o que, e desde há muito, o tornou possível, senão mesmo até previsível. Porém, é essa análise que tem mesmo de ser feita e dela serem retiradas as devidas consequências.
Desde logo, os factos da referida agressão devem ser integralmente averiguados e, a confirmar-se o que foi noticiado, os seus autores não podem deixar de ser devidamente sancionados quer disciplinar, quer criminalmente pelo acto gravemente ilícito que praticaram, com todas as agravantes que ao caso couberem, e designadamente a do manifesto abuso ou mesmo usurpação de poderes, a da elevada intencionalidade da sua conduta e a da cobardia, jurídica e moral, da superioridade de número[1], bem como, obviamente, devem ser condenados na reparação ou compensação integral dos danos, patrimoniais e morais, causados. Para além, como é evidente, da reprovação, ética e social, da gravidade e da repugnante cobardia desta conduta por parte de quem, supostamente, está ao serviço da comunidade municipal e do interesse público.
É, contudo, necessário ir bem mais fundo do que isto, sob pena de, num próximo dia, incidentes destes se repetirem ou assumirem até uma natureza e uma dimensão ainda mais graves. Assim, é desde logo imperioso reconhecer que, nas últimas décadas, e em particular nos grandes centros urbanos como Lisboa e Porto, o espaço público foi sendo progressivamente tomado pelo automóvel e que o respectivo estacionamento (quer de particulares, quer de empresas de cargas e descargas) se foi tornando um caos completo. E todos seguramente conhecemos, para além do trânsito infernal, sobretudo às horas de ponta, bastantes comportamentos de falta de civismo por parte de condutores que estacionam em cima de passeios, de passadeiras, de linhas do eléctrico ou à porta de casas e garagens, como igualmente bem conhecemos o autêntico martírio em que se transformou, sobretudo em certas zonas da cidade, a circulação dos peões, em particular os mais indefesos como as crianças, os velhos e os deficientes[2].
Mas a verdade é que há décadas que as políticas públicas não foram de todo as que deviam ser, ou seja, as da séria aposta (e o consequente investimento) na criação de uma rede de transportes públicos eficazes, cómodos e baratos no interior da cidade e a instalação, às suas entradas, de grandes e seguros espaços de estacionamento – devidamente vigiados e gratuitos para quem vai de seguida usar o título de transporte público – para viaturas automóveis particulares. Ao invés, fomos assistindo à manifesta insuficiência dos actuais transportes públicos, como os da Carris e do Metro (com anos e anos de desinvestimento na fabricação, na manutenção e no fecho de carreiras ou alargamento de horários), a par do livre campear da especulação imobiliária no interior da área urbana, onde é, precisamente por isso, cada vez mais impossível um cidadão médio arranjar casa acessível, com centenas de milhares de cidadãos a terem que entrar e sair de Lisboa todos os dias[3], precisamente porque têm de viver fora da cidade e a ela têm de se deslocar diariamente para aí trabalhar e deixar os seus filhos em escolas, creches e infantários. E, não existindo transportes públicos em condições, as respectivas consequências são cada vez mais graves e vão-se tornando mais difíceis de resolver.
Depois, as políticas municipais para Lisboa, sempre e infelizmente, foram as de privilegiar tudo o que represente dinheiro para os cofres desse verdadeiro monstro de burocracia e interesses instalados que é a Câmara Municipal de Lisboa. Na verdade, após se ter como que institucionalizado, e durante muito tempo, a dispensa – mediante o simples pagamento pelo construtor de multas à autarquia – dos legalmente obrigatórios lugares de estacionamento em número suficiente para os respectivos moradores, na construção ou reconstrução de prédios, assistiu-se, não ao desincentivo do estacionamento no interior da cidade, pela garantia de alternativas adequadas, mas sim ao “chamamento” de ainda mais carros com a proliferação de parques subterrâneos. “Solução” esta, aliás, com outros e graves inconvenientes, tais como o da completa impermeabilização de vastas áreas do solo e subsolo urbanos e das consequentes e sempre repetidas inundações em caso de maior precipitação (como o Arquitecto Ribeiro Teles sempre previu e alertou).
Finalmente, a lógica predominante passou a ser a da completa “legalização” da invasão automóvel, desde que ela servisse para encher os cofres da Câmara, ou seja, a da extensão do parqueamento pago (a peso de ouro nalgumas áreas) a praticamente toda a cidade e a instituição de um corpo especial – a EMEL – que assegurasse a máxima eficiência na cobrança das taxas de estacionamento e da aplicação de multas e de taxas de bloqueamento, remoção e depósito de veículos, numa lógica de cobrar mais, e o mais rapidamente possível, e com argumentos de pretensa autoridade policial.
Ora, aqui reside precisamente uma das principais fontes de problemas – é que a EMEL não é uma polícia e os seus trabalhadores não são agentes policiais com os respectivos estatutos, poderes e deveres. Os funcionários da EMEL são trabalhadores do regime laboral privado[4], não prestam juramento para o exercício das suas funções e não partilham do estatuto de funcionário público.
Todavia, numa lógica profundamente errada de privatização dos serviços e funções do Estado – tal como se verificou, por exemplo, com os portageiros – foi consagrado por lei (de duvidosa constitucionalidade, aliás) que os funcionários da EMEL e de outras empresas similares pudessem ser “equiparados a agentes de autoridade administrativa”[5], embora unicamente para efeitos de fiscalização do estacionamento público e dos serviços de apoio à mobilidade públicas, bem como do levantamento dos respectivos autos de contra-ordenação. Mas apenas isso, pelo que, repete-se, os funcionários da EMEL não são polícias e as viaturas em que se deslocam (designadamente para autuar, bloquear ou remover veículos mal-estacionados) não são veículos prioritários, não realizam serviço urgente e, logo, não são veículos a cujos condutores o art.º 64.º do Código da Estrada permita que, desde que adoptadas todas as medidas de precaução e segurança, possam não respeitar as regras e sinais de trânsito.
Significa isto, por exemplo, que os funcionários da EMEL não podem dar ordens ou exigir a identificação a um cidadão, como não podem estacionar os respectivos veículos em violação do Código da Estrada, como quando ocupam uma faixa de rodagem ou uma passadeira, como lamentavelmente vemos todos os dias na cidade de Lisboa.
Porém, como estas questões nunca são discutidas com o rigor e a profundidade devidas, a verdade é que foi sendo criada e desenvolvida pela própria EMEL, com a plena cobertura do Município, uma “doutrina” de autêntica “tropa de elite”, para-militar ou para-policial, actuando acintosa e crescentemente à margem da lei e com a arrogância típica de quem se sente impune e “com as costas quentes”.
Foram assim atribuídos aos funcionários da EMEL carrinhas, motorizadas, reboques e fardamentos propositadamente muito semelhantes, quer em termos de cores, quer em termos de desenho, aos da Polícia; os funcionários passaram a ter uma parte significativa da respectiva retribuição constituída por comissões ou prémios atribuídos em função de objectivos numéricos de multas[6], bloqueamentos e remoções ou reboques que consigam realizar; são continuamente controlados por meio de geo-localização por parte das respectivas chefias, que a cada dia ou hora decidem onde devem primordialmente “atacar”. A cultura corporativa que lhes é incutida é a tal “doutrina” de que podem agir, e designadamente multar, imobilizar e rebocar, bem como destratar os cidadãos visados pela sua acção, como bem entenderem, sob o “argumento”, que eu próprio já ouvi, de que simplesmente questionar ou obter esclarecimentos sobre a sua actuação seria cometer o pecado, ilegal, de “perturbar a sua actividade”!…
É evidente que assim se criou e se foi consolidando uma inadmissível cultura da “caça às multas”, agravada pela relação directa com aquilo que se ganha ao final do mês, da falsa (mas propositadamente induzida) ideia do estatuto de polícia dos seus membros e da incorrecta percepção de que estes podem usar os meios que lhes estão atribuídos como bem (ou seja, mal) lhes aprouver, sem terem que dar justificações a ninguém e sem qualquer respeito pelos basilares princípios constitucionais da igualdade, da proporcionalidade, da justiça, da imparcialidade e da boa fé.
E é, exactamente por todas estas razões – que assim não podem nem devem ser esquecidas! – que todos os dias assistimos ao ostensivo estacionamento ilegal de viaturas da EMEL, a técnicas da “emboscada” (por exemplo, à porta das farmácias de serviço) ou do aproveitamento da sinalização deficiente ou dificilmente visível, e até à escandalosa e discriminatória diversidade de critérios: perseguem implacavelmente quem, embora em contravenção, está a trabalhar e em nada perturba o trânsito de outros veículos ou de peões, ou quem deixou passar um minuto sobre a hora-limite do pagamento, mas não “veem” veículos, sobretudo de alta gama, à porta de hotéis ou de lojas de luxo, como todos os dias sucede, por exemplo, na faixa direita descendente da R. Castilho, após o cruzamento com a R. Joaquim António de Aguiar, ou ao fundo da Av. Miguel Bombarda). E sobretudo reagindo, na maioria das vezes com incorrecção e até com incontida agressividade, quando algum cidadão tem a ousadia de questionar alguma dessas suas formas de actuação.
Como sempre tenho afirmado, enfraquecer os princípios e defender ou até simplesmente aceitar os estatutos de “tropas de elite” e/ou de “justiceiros”, sejam eles quais forem, conduz invariavelmente ao abuso, ao arbítrio e até à violência, como era previsível que acontecesse. E por tal razão, já em 01/03/2018 eu próprio escrevia, em artigo publicado no “Notícias Online”, com o título “A EMEL e os seus abusos”, o seguinte:
Toda esta situação, até pelo número de casos e de condutas que se vão acumulando, e com toda a panóplia de meios empregues (brigadas a pé, de moto, de automóvel, de carrinha/escritório e de reboque, às 9H01 e às 18H59, num frenesim, não de evitar infracções, mas sim de, a todo o transe, caçar multas), piora em cada dia que passa. E devido à permanência das questões de fundo, não só não resolve nada de essencial (embora vá enchendo os bolsos camarários…) como um dia é mesmo capaz de acabar mal.
E é também por isso que agora, no banco dos réus de uma opinião pública esclarecida e civicamente exigente, não se deveriam sentar apenas os “valentes” autores materiais da agressão do passado dia 29/5, mas também todos aqueles que os criaram e apadrinharam e os que, por acção ou omissão cúmplice, os têm sucessivamente apoiado e até encorajado!
António Garcia Pereira
[1] Para os padrões que nos pretendem impor como “dominantes”, parece ter-se tornado “normal” vermos – como temos visto inúmeras vezes! – 2, 3, 4 ou mesmo mais atacantes mostrarem a sua “valentia” golpeando violentamente um antagonista indefeso e prostrado no solo…
[2] Sem dever deixar de se notar que hoje, e até em nome de concepções que se dizem “verdes” e “progressistas”, os peões da cidade se veem todos os dias ameaçados por condutores de bicicletas e trotinetas, que não só não respeitam semáforos, passeios ou passadeiras, como insultam e até ameaçam os peões que os critiquem por tais condutas…
[3] Os números mais recentes da Pordata referem 380 mil pessoas a entrarem (e depois a saírem) por dia em Lisboa!
[4] Art.º 41, n.º 1 dos Estatutos da EMEL, publicados no Boletim Municipal 3.º SUP 1312 de 11/04/2019 e art.º 13.º e 67.º do Regime Jurídico do Sector Público Empresarial aprovado pelo Dec.-Lei n.º 133/2013, de 03/10.
[5] Art.º 9 do Dec.-Lei n.º 146/2014, de 09/10, com a redacção dada pelo Dec.-Lei n.º 107/2018 de 29/11.
[6] Não obstante a política de opacidade da EMEL, fala-se em “prémios” da ordem dos 300€ mensais, pelo menos.
Exatamente o que se passou neste caso, se passou comigo em 2018 que através de falsas acusações e com o trabalho de equipa entre a PSP e a EMEL que acreditou nas mentiras dos agentes da EMEL a PSP pediram-me a identificação e levantaram-me um auto com todas as mentiras.
Onde diziam que os tinha ameaçado e que ficaram com medo de ali trabalharem o que levou uma inexperiente juíza a condenar -me a pagar 500 € indenizatório ao agente da EMEL e trabalho comunitário no valor de 900 € uma farsa com a conivência da PSP e a justiça portuguesa a fazer parte deste saque aos cidadãos portugueses alguma coisa tenho o processo onde se pode comprovar o assalto autorizado aos portugueses