Ensaio sobre a hipocrisia!

António Filipe, deputado comunista, foi fotografado na sala de espera dum hospital privado!

Conhecido que é o tradicional secretismo dos comunistas, no que à sua vida privada diz respeito alguns, como foi o caso de Álvaro Cunhal, até parece que não existem para além do partido, a fotografia podia ter dado origem aos mais variados comentários e pensamentos, tais como: “Os comunistas também adoecem”; “Cá se fazem, cá se pagam”; “Toca a todos”; etc. etc.. Podia, mas não deu, o que a fotografia dum eventual momento menos bom na vida de António Filipe provocou foi a cada vez mais useira, e exclusiva, onda de indignação nas redes sociais. Indignação prontamente aproveitada por alguns comentadores com graves problemas digestivos que ainda não conseguiram aceitar a Constituição da República Portuguesa.

Para os menos atentos, sobre a origem dos problemas digestivos explico, aquela parte onde se explica que os governos nascem do parlamento e que há eleições para eleger deputados não há eleições para eleger primeiros-ministros, aquela parte em que se torna clara que é duma maioria parlamentar que se forma um governo e não duma minoria.

Os pafiosos saudosistas aproveitam para inflamar e incendiar as massas. Inflamar e incendiar as massas que no fundo são tácticas comunistas cada vez mais usadas e aproveitadas pelos saudosistas do pafianismo.

Antes de continuar uma declaração de interesse. Não sou comunista, não gosto do comunismo, não confio nos comunistas nem na sua forma quase religiosa de seguir uma ideologia muito teórica e pouco prática.

Feita a declaração de interesse vamos lá, com calma, analisar o duplo infortúnio de António Filipe.

Tem, em primeiro lugar, o infortúnio de necessitar de recorrer a cuidados médicos o que, por si só, é sempre algo não desejável. Em segundo lugar, mas não menos importante, tem o infortúnio de, no mesmo local e na mesma hora estar presente uma besta que resolve, de forma cobarde e traiçoeira, invadir a privacidade do cidadão António Filipe e, não contente com isso, resolve partilhar a sua alarvidade nas redes sociais dando-se ao despudor de, insatisfeito com a alarvidade, tecer comentários bestiais (versão brasileira do termo) sobre o facto do deputado comunista recorrer a cuidados privados de saúde e não a um serviço público.

Só mentes pouco oxigenadas conseguem confundir o que é o direito ao serviço público, universal e tendencialmente gratuito nos cuidados de saúde e o direito à livre escolha dos cuidados de saúde. Uma coisa e outra não são a mesma nem sequer são comparáveis.

O estado tem de garantir a todos os cidadãos um serviço público de excelência, seja na saúde, na educação, na justiça ou em outras áreas, igual para todos e acessível a todos. O serviço público tem de estar disponível, acessível e com capacidade de resposta às públicas necessidades. A saúde, a educação, a justiça têm de ser garantidas pelo estado, têm de ser públicos. O que o estado não pode, nem deve fazer é alimentar interesses privados em detrimento do serviço público.

Chegados a este ponto chegamos ao que é a livre opção, de acordo com as possibilidades de cada um, de recorrer a serviços públicos ou a serviços privados que no fundo é a mesma entre comprar um passe social ou um mercedes, ou levar o almoço de casa em vez de almoçar num restaurante. Certamente quase todos preferiam o mercedes e almoçar no restaurante, mas de acordo com as suas posses têm de se contentar com o passe social e com a marmita.

É neste ponto que a ideologia choca com a prática, na utopia ideológica comunista todos são iguais e todos têm acesso às mesmas coisas. A prática comunista, onde ela ainda existe, prova precisamente o contrário, há o mesmo tipo de elitismo que existe no capitalismo.

O facto de António Filipe ser comunista não o pode impedir, tendo ele capacidade financeira para isso, de recorrer ao sector privado, é a sua opção, é a sua escolha. O que tem de estar devidamente garantido é que António Filipe, sendo comunista ou reacionário terá o mesmo tipo de serviço e a mesma disponibilidade quer recorra ao público quer ao privado.

O que tem de estar garantido é que os nossos filhos têm a mesma educação e oportunidades querem frequentem uma escola pública quer frequentem uma escola privada. O que tem de estar garantido é que quando recorremos a um tribunal temos o mesmo apoio jurídico quer recorramos a um advogado oficioso, quer sejamos patrocinados por um dos grandes nomes da praça, para isso seria necessário ter advogados a fazer oficiosas e não estagiários que nem sabem fazer um requerimento ao processo. O que tem de estar garantido é que quando, por infortúnio, temos de recorrer a um médico ou a um serviço de saúde do sector público temos o mesmo tipo de tratamento que teríamos se recorrêssemos ao sector privado.

O resto é pura retórica e oportunismo político.

Já agora, para terminar, falta saber se António Filipe estava na sala de espera dum hospital privado para usufruir ele próprio dos serviços ou se, pelo contrário, estaria apenas a acompanhar um amigo/conhecido reacionário a não ser que para os pafiosos moralistas seja igualmente um crime o facto dum comunista estar na sala de espera dum serviço privado. Pode a peçonha pegar-se!

Jacinto Furtado

 

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