Da série ainda a evolução vai no adro…
Ser mulher no país mais rico e desenvolvido do mundo (assim dizem relatórios) é em certa medida pior ou igual que viver num qualquer pior país à vossa escolha. Escolho Cuba como exemplo. Um némesis da América que sozinho aguenta um embargo imposto por ela há anos sem fim, e, contudo… Sem-abrigo por todos os lugares dos quarenta e nove estados, pobres e abandonados, com fome, sem acesso a escola e a médicos, mas com muitas armas, compradas nos supermercados, são um desrespeito à pirâmide de Maslow, por não assegurar as necessidades básicas a milhões dos seus cidadãos e contudo…engolido pela corrupção e mandar no mundo.
Quando eu era mais pequena em Portugal sonhava que o mundo deveria ser um lugar seguro, propício à evolução. Não do tipo que encontramos hoje nem nas caixas de comentários, em grupos com a mesma filiação, comunidades, partidos ou seja lá o que for e, na vida colectiva em geral. Sonhava com o topo da pirâmide de Maslow. Ainda não esqueci esse sonho, contudo, está muito embaciado. Um dos despertares na adultez só processei quando entendi a minha identidade. Sou mulher e preta, cresci num país colonialista, racista e fascista, que não sabe ainda o que fazer às mulheres como eu. Estudar era o meu céu de Maslow. Aqui voltarei.
A grande América traz-me um “conundrum” (dilema) maior. Vivi lá por um tempo. Admirei-lhe a majestade. As diferenças. A democracia. New York a vibrante cidade, um ano pós o 11 de Setembro. Um peso na alma, no coração da diversidade, da democracia. Iniciava-se um mundo novo com o esplendor do ódio e o fim da democracia a despontar. Em simultâneo com os confrontos com os seus demónios, incapazes que são de os vencer, a pujante América de negócios trazia nos detritos e nos escombros das torres, a sua penumbra. De como nasceram, de onde vieram, quem lá estava, como foram ocupando os territórios, a sua incultura, o seu egocentrismo. Como desconhecem a própria história…Contudo, a arrogância e a prepotência impunham-se. A única linguagem que no final de tudo conhecem é a da violência? Da corrupção? E do sexo não permitido? Da religião que não os liberta mas castra? Ou são escapes às suas incongruências e falhas? Matam inimigos e conspiram para matar, destituir quem não lhes agrada. Corleones em família. Um caso de estudo para os psicólogos.
Se eu não consigo mudar a opinião do meu governo para não se deixar enrolar na retórica da senhora UE sobre a guerra na Ucrânia e sobre a identidade/Nação/Cidadãos, que a Palestina deve ver defendida por todos os cidadãos do mundo, responsabilizando os senhores das guerras e do genocídio em curso (a cada dia que passa mais determinado está o Bibi em matá-los todos como Hitler fez), logicamente não consigo mudar uma folha ao vento, na tal América, terra de corporações, negócios, dinheiro e violência, um lugar inóspito para as mulheres.
A mulher, sobretudo a mais pobre – no escalão abaixo vem a mulher preta, a índia, a indiana, a mexicana, ou imigrante de qualquer lugar e cor pálida – confronta-se com um mundo hostil e inóspito. Não tem dinheiro para servir as grandes corporações, apenas para produzir-lhes a riqueza que ostentam, ganha menos de sete dolars à hora, tem de ter três trabalhos, não pode amamentar um filho porque ao fim de uma semana de parir tem de estar a trabalhar, ou ambos morrem à fome, não consegue pagar habitação, engravida de um homem e tenha sido por violação ou descuido (o homem não é naturalmente responsável…), não tem qualquer poder sobre o seu corpo.
Ela pertence ao homem porque assim está o sistema alicerçado pelos homens que odeiam mulheres. A mulher, controlada que está há séculos, ajustou-se e coopera com o sistema tendo de si uma imagem muito negativa, a sua auto-estima roça o nível abaixo do zero, e de tanto se auto-desprezar por se achar insignificante e querer agradar, muitas vezes é a sua (e das outras) a pior inimiga, vergando-se e usando as mesmas tácticas e estratégias masculinas com o intuito de se valorizar. Os homens que não a querem ver ter poder, fazem como as hienas, riem-se e como os abutres, comem-lhe a carcaça.
Por estas razões – e muitas mais – ver uma mulher no poder, representante não apenas do género – o facto de ser uma mistura de pai Jamaicano emigrante e de uma Indiana emigrante, ambos estudantes brilhantes que vingaram na América, cumprindo o tão badalado “sonho americano” – essa mulher advogada, qualificada, culta, ex Senadora, ex Promotora Pública, Vice-Presidente e candidata a primeira mulher 46ª Presidente, que fala de direitos das mulheres ao seu corpo, a sair da pobreza, a ser reconhecida pela inteligência e sobretudo pelas suas capacidades e talentos, tem naturalmente de ser um balão de oxigénio no mundo feminino e masculino – por todos os que anseiam que o mundo mude. Antes ela que outra trampa qualquer. Só saberemos se ela vai partilhar a cartilha da testosterona, da guerra, da pobreza e dos negócios se a América lhe der essa chance. Pior que está não fica. Pior que o cenário que se avizinha perante o candidato opositor nunca poderá ser, digo eu com os meus modestos estudos.
Até eu, que sei de uma América como péssimo, aterrorizador, violento polícia ditador do mundo, tenho de a ver como alternativa potencial. Se nem eu tenho qualquer influência nas mudanças dentro da minha casa (o meu país) e vejo os fascistas crescerem e tomarem o poder, tenho para mim que é por consciência, o dever de apoiar estas mulheres, até prova em contrário. Algumas já deram provas de terem em si o pior dos homens, com vestido da Prada. Continuarei a apostar nas que têm potencial, até agora na sombra da vice-presidência (alguém sabe o que o Pence e o Biden fizeram enquanto vices?), até ser surpreendida e me a sua política me fazer mudar de opinião. “Ai e tal, ela é igual ao outro”. Não sei meus senhores, agradeço a opinião mas ela nunca foi Presidente. Deixem-na ser. Deixem-na tentar e logo falamos. Prognósticos…
Se ela conseguir “grab him by the ballots” tem uma grande Ka-mala pronta para entrar na Casa Branca. E ka-tarefa. Casa essa construída por gente preta, descendentes de profícuos reinos africanos, homens e mulheres de culturas ricas, centenas de línguas com significados profundos, escravizados por gente branca que os odiava, só por serem pretos. Não a aprecio só por ser mulher e ter sangue misturado, aprecio porque também é tudo isso e a elas sempre tem sido negado o poder.
Alguém sabe se ela vai ser engolida de certeza? Mesmo de certeza? E se for? Indiquem-me um homem melhor posicionado. Do outro lado do espectro espreita o fascismo, a falta de inclusão, mais corrupção e mais negócios para os mais ricos, com um misógino velho racista e de ego desmedido. Na perspectiva americana, ela pode ser a tal. Ou não.
A tal. Tudo o que eu em menina em Portugal sonhava que um dia o país se livrasse, na figura de Salazar. Para isso fui estudar. Para ver as mulheres com poder, senhoras do seu nariz e vivermos num mundo mais evoluído e menos hostil.
Essa América chegou ao seu ponto abaixo de zero evolução, está hoje confrontada com os seus demónios e esta mulher, pode fazer frente a estes homens que outrora odiaram os seus antepassados, pode enfrentar a pobreza, o ódio às mulheres, fazendo frente ao destino. Se ela quiser. Eu esperanço.
Anabela Ferreira
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