Escravatura e hipocrisia em Odemira

Tudo aquilo que se tem vindo a passar em Odemira (pelo menos, desde há uma década para cá) parece concentrar o que pode haver de pior, de mais reprovável e de mais hipócrita por que se pode caracterizar a pessoa humana, muito em particular quando esta tem especiais responsabilidades públicas.

Assim, importa denunciar que, ao invés do que alguns (de autarcas a governantes) quiseram fazer crer inicialmente, as situações de sobre-exploração e de desrespeito pela dignidade humana de trabalhadores estrangeiros, imigrantes quase todos ilegais, empregues em condições absolutamente miseráveis em explorações agrícolas intensivas ou de colheitas sazonais, em particular (mas não só) no Alentejo, e muito em especial na bacia do Mira e em redor do Alqueva, eram e são completamente conhecidas de todos, e desde há vários anos. 

E, todavia, enquanto os nossos governantes, em nome do “desenvolvimento da actividade agrícola” e do respeitinho pela sacrossanta liberdade de iniciativa económica privada[1], nada faziam ou legislavam[2] sobre as condições de “contentorização” de trabalhadores (ou seja, sobre o seu empilhamento, quais sardinhas em lata, em contentores despudoradamente apresentados como instalações condignas), ou até (como fez, por exemplo, a então Secretária de Estado Cláudia Pereira) elogiavam o “exemplo”(!?) de integração de trabalhadores imigrantes que seria Odemira, apenas algumas – honra lhes seja feita! – instituições de solidariedade social, como a Caritas, ou religiosas, como a Diocese de Beja, denunciavam a indignidade, a sobre-exploração e o abandono a que tais trabalhadores estavam votados.

Desmascarada esta farsa da falta de conhecimento, eis que as entidades com poderes de fiscalização e de investigação, do SEF à ACT, passando pela PJ, desataram a anunciar que, afinal, até já estariam a correr inúmeros processos, inclusive processos-crime, designadamente na Comarca de Odemira[3], e também processos de contra-ordenação laboral, como se isso absolvesse os responsáveis políticos, quer nacionais, quer locais, do crime de rigorosamente nenhuma medida de raiz terem tomado para pôr cobro ao escândalo de uma escravatura moderna, montada e imposta aos olhos de toda a gente.

Uma verdadeira escravatura

Porque é de autêntica escravatura que se trata, com a hiper-exploração de pessoas tratadas como gado, deixadas nas garras das máfias do tráfico de seres humanos, com esquemas também há muito conhecidos.

Tais esquemas começam pela angariação de mão-de-obra em países, na sua maioria asiáticos (designadamente Nepal e Bangladesh), marcados pela fome e miséria extremas, sob a promessa de conseguirem algo mais para o sustento da respectiva família e estas pessoas acabam por aceitar pagar à cabeça a estes novos negreiros quantias entre os 10.000€ e os 16.000 para chegarem ao “El Dorado” do Alentejo, ficando assim devedores para o resto das suas vidas.

Trata-se desde logo de uma mão-de-obra que não reclama, quer por necessidade (porque o pouquíssimo que recebe é, apesar de tudo, mais do que consegue nos seus países de origem), quer sobretudo por medo de retaliações (já que são todos ilegais) e, mais do que isso, as máfias esclavagistas não hesitam em ameaçar e mesmo em espancar quem não cumpra com as suas exigências[4].

Claro que este tipo de empresários de sucesso da agricultura intensiva não sujam as mãos nestas contratações, recorrendo antes ao artifício da contratação de empresas intermediárias (que, aliás, crescem como cogumelos com sede nos mesmos lugares, como por exemplo, em centros comerciais da zona[5]), que são quem trata da “instalação”, pagamento e cobranças a estes novos escravos.

E para conseguirem o tão elogiado “sucesso económico”, são encafuados em contentores ou em “habitações” sobrelotadas e sem as condições mínimas de higiene e salubridade, que, aliás, já tinham conduzido a níveis elevadíssimos de doenças infecto-contagiosas (como a tuberculose), que eram perfeitamente conhecidas quer de entidades privadas (como as prestadoras de serviços nas áreas da segurança e da saúde no trabalho), quer das entidades públicas de saúde, sem que, todavia, ninguém se tivesse preocupado a sério com isso.

E a questão é que estamos a falar principalmente de actividades (como as estufas), que usam intensivamente o solo, que se caracterizam por jornadas de trabalho extensíssimas (algumas de mais de 12 horas diárias), com temperaturas que chegam perto dos 50º, a troco de salários muito baixos. Até porque, dos valores que lhes são pagos, são ainda descontadas quantias entre os 90€ e os 150€ mensais a título do seu “alojamento”, aos 8 e aos 9 por quarto, em casas que, subarrendadas desta forma, chegam a representar um ganho de 3.000€ por mês ou mais[6]! O que significa que, ao lado de um ultra-rentável negócio de tráfico e de escravização de seres humanos, há também um enorme e também muito rentável negócio imobiliário. É o empreendedorismo capitalista a funcionar no seu máximo esplendor!…

Este é que é o grande e central problema de Odemira e de outras zonas do país (Alqueva, Oeste, Ribatejo)! E todos aqueles, de governantes e autarcas a jornalistas e comentadores, que fingem terem desconhecido e só agora terem “descoberto” esta realidade e as proporções alarmantes que atingiu, o que praticam é uma gigantesca e até monstruosa manobra da maior ignóbil hipocrisia.

A requisição civil do Zmar

É dentro desta mesma lógica que não espanta, pois, que o Governo tenha levado a cabo uma nova manobra de intoxicação da opinião pública e de desvio das atenções, ao decretar[7], com grande pompa e circunstância, a cerca sanitária das freguesias de São Teotónio e Longueira-Almograve e “a requisição temporária, por motivos de urgência e de interesse público e nacional, da totalidade dos imóveis e dos direitos a eles inerentes que compõem o empreendimento Zmar Eco Experience, sito na Herdade A-de-Mateus em Longueira-Almograve, Odemira”.

Ora, para além de que não têm bastante fundamento científico as cercas decretadas (nem o número de casos positivos, nem muito menos os casos de doentes graves ou de mortes o justificaria, nem esta era, seguramente, a forma mais adequada para garantir o isolamento profilático, havendo tanto estabelecimento quer privado, quer público, e designadamente militar mais apto para o efeito), a dita requisição permitiu nova e gigantesca onda de hipocrisias e de manipulações, grande parte delas com base no alegado desrespeito pelos direitos humanos, não dos mal tratados, empilhados e abandonados imigrantes, desalojados e alojados à força pela calada da noite, mas sim… dos proprietários das “casas” existentes no empreendimento. 

Ao ponto de o próprio Bastonário da Ordem dos Advogados (que mantém, em simultâneo, a função de Presidente da Associação Lisbonense de Proprietários) ter prontamente acorrido a Odemira, em contacto permanente com o Presidente da República e em defesa daqueles mesmos proprietários.

O que é verdadeiramente o Zmar

Acontece, porém, que:

  1. O empreendimento “Zmar Eco Experience” situa-se em área de Reserva Agrícola Nacional e de Reserva Ecológica Nacional, não sendo, por isso, legalmente possível efectuar quaisquer construções a não ser as específica e especialmente autorizadas para certas finalidades;
  • Para aquele terreno, o que foi apresentado e aprovado em 2008 foi um projecto para parque de campismo (para tendas, caravanas e auto-caravanas e a ser usado, no máximo, por 1572 campistas), não se prevendo, sequer, a construção de casas amovíveis, que são as que lá se encontram, mas que terão sido toleradas exactamente por não serem imóveis, mas meras estruturas amovíveis e retiráveis a qualquer momento;
  • Todavia, a própria licença para parque de campismo[8] caducou em 03/12/2019, não tendo sido renovada, provavelmente porque a sociedade que detém a exploração do terreno (significativamente denominada “Multiparques a Céu Aberto – Campismo e Caravanismo em Parques, SA” e cujo último administrador era Francisco Manuel Espírito Santo Mello Breyner) foi declarada insolvente em 10/03/2021, sendo agora gerida por um administrador judicial;
  • O empreendimento em causa foi aprovado como Projecto de Interesse Nacional, não podendo jamais ter outra utilização que não aquela para que foi aprovado. Mas beneficiou de generosos apoios financeiros, quer do BES, pois claro, (falando-se em 30 milhões…), quer do Estado (7 milhões a fundo perdido do QREN e 3 milhões do Turismo) e contando com uma complexa e sucessiva operação jurídica que envolveu a constituição de uma sociedade – Multiparques – com um capital social de apenas 100 mil euros e que tinha como administrador único um agricultor de profissão (Joaquim Maria Montes), o qual permaneceu no cargo apenas 3 meses, e cuja administração passou depois por Ana Cristina de Oliveira Bruno, parceira em vários negócios do grupo BES com Michel Canals e Helder Bataglia, antes de surgir Francisco Espírito Santo Mello Breyner;
  • É certo que, entretanto, e já em fase de alegadas dificuldades económicas, a sociedade do Zmar terá vendido algumas das estruturas amovíveis de madeira a pessoas individuais, mas nem por isso estas se tornaram proprietárias de quaisquer imóveis, sendo simples titulares de tais estruturas, que não só não deviam ali estar, como podiam, e podem, a todo o momento ser mandadas retirar.

Não obstante tudo quanto antecede, os ditos proprietários privados começaram por se insurgir – o que até seria compreensível – contra a possibilidade de serem desalojados das casas amovíveis, em particular a minoria daqueles que têm ali a sua residência permanente. Mas quando o Governo – que realmente nenhuma distinção faz no despacho de requisição – veio dizer que iriam ser ocupadas apenas as casas da titularidade da própria Zmar, o que se ouviu desses proprietários foi, de uma forma geral, o repúdio por terem os trabalhadores imigrantes por perto, como se estes tivessem peste. Ou seja, já não era a propriedade, mas sim a proximidade que os interessava e incomodava…

O despacho do Supremo Tribunal Administrativo

Os mesmos proprietários interpuseram junto do Supremo Tribunal Administrativo uma providência cautelar, cujo deferimento provisório foi logo desatendido pelo Tribunal, o qual simplesmente a recebeu liminarmente e, como é de lei, ordenou a citação do Governo para responder/contestar. Acontece que, de acordo com a mesma lei, o acto cuja eficácia se pretendeu que fosse suspenso só o fica efectivamente se a entidade administrativa não aprovar uma resolução fundamentada (que, obviamente, o Governo já tinha preparada para apresentar no momento seguinte ao da citação) declarando que o interesse público impõe a continuação da execução do acto em causa.

Mas o simples despacho de admissão liminar da dita providência foi logo transformado pelos proprietários, pelos jornalistas e pelos comentadores e especialistas do costume como uma efectiva suspensão do acto e uma “grande vitória” para os mesmos proprietários!? 

Às 4 da madrugada, por ordem de Cabrita

O Governo, através do inefável Ministro Cabrita, mais interessado em fazer passar uma imagem de “firmeza” e de “competência” do que em resolver qualquer problema, manda a GNR ir arrancar, pelas 3 horas da madrugada, umas dezenas de trabalhadores imigrantes das suas degradadas habitações e irromper, rebentando com o portão do empreendimento e avançando com 4 dezenas de elementos do Corpo de Intervenção e cães-polícias, para impor o dito realojamento nas instalações do Zmar, repetindo, aliás, a mesma rábula que já fizera aquando do assassinato do cidadão ucraniano nas instalações do SEF do Aeroporto de Lisboa, ou seja, tendo o desplante de voltar a vociferar, para quem o criticava, algo como: “bem vindos agora à luta pelos direitos humanos, que eu já cá estou há muito tempo!”.

E depois ainda vimos cada responsável a inventar despudoradamente a sua mentira para justificar a hora daquela operação militar: a Ministra da Presidência invocou problemas de “tradução” com os imigrantes, o Presidente da Câmara de Odemira falou na necessidade e na dificuldade de articulação com a administração do empreendimento, e o responsável da GNR afirmou, mais prosaicamente, que aquela era a hora mais adequada do ponto de vista da “segurança”, isto é, apanhando os residentes enfiados nas suas casas e a dormir…

O essencial são as vítimas da escravatura!

Todo este decadente e degradante espectáculo – que, aliás, torna a situação um alvo fácil para toda a sorte de populismos e oportunismos – serve acima de tudo também para escamotear o essencial. 

E o essencial é que, com a responsabilidade e a conivência de todas as forças políticas da área do poder, nelas se incluindo também as que se dizem de esquerda, Portugal está, e desde há já vários anos, transformado num autêntico paraíso para os beneficiários dos processos laborais baseados na sobre-exploração e na indignidade humana, para as máfias de tráfico de seres humanos, para os empresários cujo “sucesso” é alcançado com estes mesmos processos (nos quais, todavia, não sujam directamente as mãos) e para os dirigentes políticos que, em nome do “desenvolvimento” económico e da não hostilização dos grandes interesses empresariais, desviam a cara para o lado e fingem não ver como seres humanos são assim destratados num país que eles próprios tanto gostam de apresentar como um Estado de Direito e um exemplo no que toca ao respeito pelos direitos humanos.

António Garcia Pereira


[1] São as mesmas razões que explicam por que razão não há inspecções a sério relativamente ao trabalho a mais não pago ou à utilização abusiva de trabalhadores precários (através de Empresas de Trabalho Temporário – ETT), de forma generalizada em certos sectores, como a Banca, ou em determinadas empresas, como a TAP.

[2] É o caso da famigerada Resolução de Conselho de Ministros n.º 179/2019, de 24/10, que estabeleceu “um regime especial e transitório” de alojamento de trabalhadores da área de Aproveitamento Hidro-agrícola do Mira, definindo 7,60m² como área “de referência”, por pessoa, em geral, e de 3,43m² por quarto ou dormitório.

[3] Foi agora publicamente referido que só na Comarca de Odemira estariam a correr 12 processos pelo crime de ajuda à imigração ilegal e que, desde 2018, o SEF já teria sinalizado 138 casos de tráfico humano.

[4] Existem também casos de violentas agressões físicas com fracturas de braços e mãos.

[5] Em Vila Nova de Mil Fontes, por exemplo, pululam as empresas, muitas delas com sede no mesmo local, cujo objecto social é definido como sendo “actividade de serviços relacionada com a agricultura”.

[6] É o caso, em Odemira, de uma casa arrendada à Santa Casa da Misericórdia local, com três quartos, albergando mais de trinta pessoas, pagando cerca de 100€ cada.

[7] Pelo Despacho n.º 4391-B/2021, de 29/04.

[8] N.º 247 RNET.

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